Des-heterossexualizar a cidadania é ainda uma frente de batalha

Des-heterossexualizar a cidadania é ainda uma frente de batalha

 

A cidadania – aqui entendida como um conjunto de direitos civis – é marcada pela sexualidade e construída sobre o paradigma heterossexual, consequência de um modelo de vida que naturaliza a relação entre o sujeito e a heterossexualidade. Esse é um dos pontos principais do trabalho da professora argentina Leticia Sabsay (na foto), socióloga especializada em estudos de gênero, professora da Universidade de Londres, integrante do grupo de pesquisa “Vulnerabilidade e Resistência” dirigido pela filósofa Judith Butler na Universidade de Columbia. Nesta entrevista, ela fala sobre como a dimensão queer se apresenta como uma estratégia política mais radical para fazer frente ao momento político conservador, contrário a todo reconhecimento e inclusão da diversidade sexual.

CULT: A noção de cidadania sexual é parte do que poderíamos denominar como uma “maquinaria da colonização” ou há uma leitura específica que se direcione à dos direitos humanos e sexuais?

Leticia Sabsay: Quando falamos do conceito de cidadania sexual, as primeiras coisas que nos vêm ao imaginário são as leis como as do casamento igualitário, identidade de gênero e basicamente uma quantidade de demandas que têm a ver com a inclusão e   reconhecimento dos direitos sexuais das chamadas minorias, ou sexualidades não-heteronormativas. É necessário deixar claro que a cidadania sempre foi sexual; quando ela não está marcada pela sexualidade, geralmente é construída com base no pressuposto heterossexual. Quando não é sexual, tende a ser heteronormativa, porque está montada sobre um modelo de sujeito e um modelo de vida que é concebido como “naturalmente” heterossexual.

Por sua vez, há necessidade de se generizar a cidadania,  porque quando ela não é generizada, tende a ser masculina. Também é preciso sexualizá-la, isto é, “des-heterossexualizá-la” ou “des-heteronormativizá-la”. Creio que este é um campo político que não se pode abandonar.
O problema se dá quando todas as demandas de liberdade sexual e de justiça sexual passam a ser reduzidas ao discurso do direito, e este aparece como o único âmbito que pode dar conta de todo o imaginário do que é uma demanda de justiça e liberdade sexuais. Aqui temos um problema, porque o discurso dos direitos pode envolver algumas coisas e excluir outras.

Se nosso horizonte de ideias de justiça e liberdade sexuais se esgota em direitos específicos de reconhecimento,  estamos deixando sempre muitas situações e muita gente de fora. Por outro lado, a cidadania sexual é um conjunto de direitos e o direito é sempre normalizador, é uma moeda de duas faces.

Depois das leis de casamento igualitário e de identidade de gênero, você poderia identificar os grupos ou as demandas políticas que permanecem de fora?

O caso do trabalho sexual, de alguma maneira, é o sintoma de que há algo que não está funcionando bem nessa ideia de liberdade e justiça, que o que se inclui e se reconhece tem a ver com uma ideia muito particular; uma sexualidade muito higienista, monogâmica, sã, prolixa, que não se encarrega de outras visões que têm a ver com questões de desejos e prazeres não-normativos, que não se esgotam na orientação sexual, ou nas hierarquias sociais, de condição de vida, de classe. Como se regula esse direito? Essa é outra instância que, evidentemente, a luta pelos direitos não alcança. O caso do trabalho sexual, da prostituição, marca o sintoma de tudo o que envolve essa cidadania sexual, tão liberal quanto higiênica. Liberal, porque segue pensando nesse sujeito abstrato do Liberalismo, e também no sentido de que não exerce papel no social.

A lei de casamento é exemplar nesse sentido, posto que, segundo muitos, se converte numa variação que reforça a heteronorma. Eu vejo que ela faz as duas coisas: varia e altera a heteronorma. Mas, independentemente disto, o que se reforça é a norma do casamento, incluindo os ideais de monogamia, fidelidade e cônjuge como o modelo ideal de viver e compartilhar a vida, que, além disso, conserva certas normas em torno da vida sexual. O trabalho sexual está fora deste universo, de uma sexualidade marcada pela monogamia, o higienismo, a presunção de que temos uma identidade sexual única e nítida.

Então por que a lei do casamento, por exemplo, é um direito a que não podemos nos opor? Porque, no meu ponto de vista, a lei do casamento tem menos a ver com o reconhecimento do direito de um coletivo particular do que com um ideal antidiscriminatório e universalista. Outra questão é se o casamento deve ser a única forma de reconhecimento e proteção por parte do Estado para formações que se relacionam com a organização de cadeias afetivas ou de cuidado mútuo, de responsabilidades mútuas, uma noção ampliada de família. São lutas distintas. Deve haver casamento para todos, mas pregando que essa relação não seja o único ideal e figura que dê legitimidade às formas variadas de intimidade e de organização de cuidado e sustento mútuo da vida cotidiana das pessoas.

Esses problemas são evidentes na hora de pensar em asilo político por razões de orientação sexual. No momento em que colocamos em pauta leis internacionais e tratados de asilo, esse é um debate muito importante. Quando alguém chega de outro background cultural pedindo asilo a algum país da União Europeia, por exemplo, há um processo de tradução cultural para que a pessoa que afirma ter sido perseguida por razões de orientação sexual possa construir-se como alguém legível, oficial, como uma vítima de perseguição aos olhos da polícia das fronteiras desse país.

Estamos assistindo a uma reconfiguração de coalizões de demandas e atores emergentes como ambientalistas, jovens contra a repressão policial e trabalhadores sexuais, mas o que nos preocupa é que a demanda que vai se legitimando implique numa heteronormatização, que deixa fora das agendas as reivindicações mais libertárias, relativas a práticas sexuais dissidentes. Como você vê esta situação em termos de demandas por configuração de sujeitos e de políticas sexuais?

Muitas vezes, nessas políticas de coalizão, as possibilidades de incluir um coletivo que questiona uma moralidade sexual, vêm ao custo de que estes coletivos renunciem à inclusão de suas demandas na agenda do momento, com a promessa de incluí-las mais tarde; isso que você disse sobre a heteronormatização é a demanda que precisa ser enfrentada na formação de coalizões, entretanto, é muito difícil lutar por espaço na agenda das políticas de coalizão.

As agendas dos grupos mais vulneráveis ou daqueles que desafiam questões mais profundas, relativas à moralidade sexual, são sempre deixadas para depois. A hegemonia do discurso recorrente habilitou um movimento conservador muito forte contra o trabalho sexual. Associar “prostituição” e tráfico de pessoas é uma das vias pelas quais, por exemplo, o trabalho sexual se naturaliza como heterossexual, já que a tradição do tráfico de pessoas vem da interpretação da mulher como objeto, de um esquema muito clássico – de um sujeito masculino ativo no marco do patriarcado – no qual as mulheres não têm outro papel a não ser de objeto, sendo subjugadas, instrumentalizadas e usadas para fins sexuais.

Esse discurso funciona também num contexto pós-colonial, onde se repete essa versão heterossexualizada do neocolonialismo: de um lado, um sujeito ativo e dominante, representante da dominação de um “Ocidente avançado”; do outro, a emblemática “mulher vítima de uma sociedade tradicional”, sem assistência nenhuma. Na realidade, na União Europeia, o discurso antitráfico funciona como uma política antimigratória, que evita a entrada de trabalhadores sexuais na Europa. O reforço da cooptação do debate sobre trabalho sexual com o do tráfico de pessoas foi fortemente impulsionado em nível internacional quando a ONU promulgou o Protocolo de Palermo contra o tráfico de pessoas, no ano 2000.

O paradigma do tráfico sexual funciona com medidas concretas e regulamentações legais para legitimar as campanhas conservadoras contra o trabalho sexual. É absolutamente ineficaz aos fins que diz ter, e vulnerabiliza, precariza ainda mais as pessoas que diz defender, proteger, e as que pretende resgatar. O discurso do tráfico de pessoas se sustenta com esse argumento de que, na realidade, há uma tentativa de “salvar” e defender as mulheres em situação de exploração. A única coisa que esse discurso faz é piorar as condições de vida dessa população.

Primeiramente, a eles é negada a palavra: se uma trabalhadora sexual diz “a escolha é minha, eu decidi”, ela será desautorizada, sua palavra será interpretada como a de um tipo de vítima de Síndrome de Estocolmo, de alguém supostamente incapacitado ou que não conta com a autonomia moral necessária para ser considerado como sujeito de direito no sentido clássico, como alguém que pode falar e atuar por si mesmo.

Uma desresponsabilização?

Totalmente. Essa destituição opera também na indústria do resgate, ou da Igreja, nessa história de que elas são levadas, trazidas, se apropriam delas. Isso é tráfico sexual, não? Movem seus corpos, vão de um lado para o outro, de casa em casa, totalmente destituídas de suas subjetividades. O discurso do tráfico de pessoas, em particular o discurso abolicionista do feminismo, parte do pressuposto de que nenhum sujeito em possessão de suas faculdades poderia escolher, jamais, dedicar-se ao trabalho sexual, argumento moral que não tem lógica. Ao mesmo tempo em que é necessário defender que a ideia de trocar sexo por dinheiro é um trabalho, como defendem todos os sindicatos e associações de trabalhadorxs sexuais, também se deve problematizar a noção de escolha. As escolhas feitas por nós como sujeitos estão relacionadas às condições sociais; também é certo que há grupos mais vulneráveis que outros, e com menos possibilidade de escolha que outros. Em que condições se elege e em que condições se pode escolher um trabalho? Não é somente pensar em escolher o trabalho sexual, mas nas condições em que este foi escolhido, o que as medidas punitivas, proibitivas e abolicionistas não permitem pensar.

Quais poderiam ser as estratégias políticas que visam  rearticular os grupos de defesa dessas opiniões?

Efetivamente, estamos num momento político que vai percorrendo regiões distintas com um discurso conservador. Onde há uma dimensão do queer e uma dissidência sexual mais radical para que haja a formação de estratégias políticas que a representem? Essa volta conservadora contra o aborto não vem sozinha, mas carrega a força crescente do discurso do tráfico de pessoas em todas as campanhas, a tendência à perseguição do trabalho sexual e medidas contrárias ao reconhecimento e à inclusão da diversidade sexual.

Na Irlanda, todas as campanhas pró-vida e contra o aborto ressurgiram fortemente. Na Espanha, o governo do Partido Popular tentou anular a lei do casamento igualitário. As manifestações que aconteceram na França quando a lei do casamento foi discutida, em 2013, foram impressionantes. Por isso eu digo que, com base nos movimentos de dissidência sexual, temos que pensar com cuidado em como intervir; não é para fazer campanhas com um objetivo único, mas para formar coalizões por um lugar mais queer.

É  preciso denunciar essa tendência de restringir as liberdades a respeito do que fazemos com nossos corpos e como queremos usá-los. Há muitas restrições legais que quase sempre criam distâncias sociais e precarizam ainda mais quem já faz parte desse grupo. Nesse contexto, a campanha pelo aborto seria reintroduzida. A lei do aborto é fundamental, sobretudo para aquelas pessoas que não podem pagar por clínicas ilegais, que só atingem uma minoria. O aborto é um assunto de classe.

É necessário se perguntar sobre a ingerência e os papeis que o Estado deveria ou não ter sobre os corpos das pessoas. Como ter um Estado que proteja e habilite ao mesmo tempo? Essa sempre é uma tensão difícil; por um lado, o Estado protege certos direitos ou assegura a provisão e justa distribuição de certos recursos sociais (acesso à saúde, à educação etc.), mas, ao mesmo tempo, não deve ter a ingerência sobre como utilizamos nossos corpos. Esta é uma discussão que aparece a todo tempo em grupos: como articular as demandas ao Estado para que haja menos controle possível por parte dele? Como fazer para que o Estado seja suficientemente democrático para cuidar sem controlar?  

Como você acha que se pode rearticular a Teoria queer junto a outros conceitos como o de descolonização, ou colocar em foco as questões do pós-colonialismo proveniente de lugares de língua inglesa?

Falando em política, é válido citar minha experiência plurinacional e anticolonialista do Estado boliviano, historicamente bastante valiosa. Há uma discussão na região Andina sobre o que implicaram as políticas de construção nacional em função da mestiçagem que ocorreu nas culturas e povos originários, de onde veio essa estrutura de nação moderna. A região da América Latina é muito diversificada, e, apesar de possuir uma história de colonização comum, também apresenta trajetórias de modernização, em certo sentido, paralelas, porém diferentes.

A história de escravidão no Brasil, relativa à colonização portuguesa, por exemplo, é muito diferente da experiência da região Andina, do Cone Sul. A vinculação entre identidade nacional e mestiçagem, no caso do Brasil, é diferente da região Andina (que também não é homogênea, se olhada de perto), e do caso da Argentina, onde a Campanha do Deserto [política implantada pelo governo de tomada do território de povos naturais da região do Pampa e da Patagônia] se configura como o emblema de uma política massiva de genocídio. Essa diversidade torna difícil pensar numa generalização sobre a descolonização, que é também diferente de uma oposição política ao modelo neocolonial.

Do ponto de vista acadêmico, creio que as teorias de descolonização de Walter Mignolo, Ramón Grosfoguel ou de Boaventura de Sousa Santos – com suas ideias de epistemologias fora do usual – são muito mais problemáticas. Epistemologicamente, um lugar de enunciação (neste caso, o do “outro” na colonização) não garante, necessariamente, um lugar mais verdadeiro ou mais justo. É certo que, como dizia Audre Lorde, não se pode desmantelar a casa do amo com suas próprias ferramentas; precisamos de desobediência epistemológica, mas esta não se adquire com a exterioridade absoluta em que creio que estão pensando esses teóricos descoloniais.

Tradução de Patrícia Homsi

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