Depois da revolta: o Chile em chamas

Depois da revolta: o Chile em chamas
Protestos no Chile já duram quase cinquenta dias e não dão sinais de trégua (Foto: Ivan Alvarado)

 

Numa casa de chá no centro de Valparaíso, cidade chilena que é patrimônio da humanidade pela UNESCO, lê-se na lousa que fica na entrada: “Minha casa de chá se reserva o direito de admissão (de novo). Proibida a entrada dos Carabineros de Chile. Eu nunca poderia falar com um estuprador abusador.” Os carabineros são polícia ostensiva do Chile, que está no olho do furacão dos protestos que tem tomado as ruas do país desde meados de outubro: são eles que têm feito abordagens truculentas, lançado gás lacrimogênio não apenas sobre manifestantes mas sobre pequenos grupos aglomerados, mesmo que estejam esperando apenas o ônibus; pior, são eles que têm linchado, estuprado, assassinado e feito desaparecer manifestantes.

A violência dos carabineros conta com a conivência do Judiciário, que discute, em diferentes instâncias, se o uso de balas de borracha e armamento por parte dos policiais é ou não permitido e em que condições, se o uso de capuzes por parte dos manifestantes deve ou não ser considerado crime. Numa rádio local de Valparaíso, uma jornalista, atônita, pergunta-se: será que tais deliberações vão chegar aos policiais em ação? Quem vai garantir que elas sejam cumpridas? Enquanto isso, em nível nacional, Estado, a Câmara dos Deputados acaba de aprovar um projeto que endurece as penas contra saques, ocorridos em um contexto de “calamidade pública ou alteração da ordem pública”, o que abre espaço para a criminalização da mobilização social.

Na mesma casa de chá, J & J, ao lado do aviso há um inquietante painel com cartolinas, que cobrem toda a vidraça do estabelecimento, e que trazem relatos manuscritos de garotas jovens que foram abusadas ou que conhecem alguém nessa situação. Mesmo antes de a loja abrir, ressoam continuamente, em duas pequenas caixas de som, o hino do coletivo feminista local Las Tesis, que vai ganhando o mundo com uma canção direta, cujo efeito se dá pela clareza da letra e pelas contundentes pausas entre os versos: “O patriarcado é um juiz, que nos julga por nascer e nosso castigo é a violência que você não vê. O feminicídio. A impunidade ao assassino. O desaparecimento. O estupro… E a culpa não era minha, nem onde eu estava, nem como estava vestida. E o estuprador é você. É a polícia. São os juízes. É o Estado. É o presidente. O estado opressor é um macho estuprador”. Quem passa na rua, na manhã da primeira segunda-feira fria de dezembro, para e lê, silenciosa e respeitosamente, os relatos, escuta a canção hipnótica e sente os efeitos daquela instalação chocante, lúgubre e tão real. No mesmo momento, é possível se surpreender porque na rua pode passar alguém com o olho enfaixado.

Não apenas os corpos e mentes, mas todo o centro de Valparaíso está tomado pelas cicatrizes do conflito: pichações, grafites, cartazes, faixas, sempre trazendo palavras de ordem contra o Estado, contra o presidente Sebastián Piñera mas, acima de tudo, contra os “pacos”, os policiais protagonistas das ações de repressão. A violência das frases estampadas dá a dimensão de uma fúria reativa, fruto da violência do próprio estado chileno, já denunciado por organismos internacionais. Há frases sem espaço a ambiguidade, como: “Aborte para não ter um milico!”, “Piranha sim, policial jamais!”, “Crie milicos, e eles te arrancarão os olhos”.
Os dados do Instituto Nacional de Direitos Humanos do Chile são desconcertantes e não deixam margem a dúvidas: 8.168 chilenos foram presos ao longo das últimas sete semanas; 241 pessoas apresentam feridas oculares; há registros de 88 casos de violência sexual por parte da polícia chilena. Até o momento, direta ou indiretamente, 24 chilenos já foram mortos em consequência da repressão policial.

Para um brasileiro habituado à militância catártica e bem humorada das redes sociais, uma luz vermelha acende: a violência está nas ruas da cidade, e não apenas na periferia; as frases de ordem dão conta de que o perigo é real, de que mulheres estão sendo agredidas, estupradas e mortas; que militantes estão perdendo os olhos, que se posicionar é perigoso. Há uma dimensão de realidade que as bravatas digitais não conseguem dar conta. Sente-se um misto de solidariedade e medo.

Quem estava pensando em visitar a região já se deu conta da situação: destino turístico junto com a vizinha Viña del Mar, Valparaíso transformou-se neste dezembro em pouco menos que uma cidade fantasma: afora os rostos cansados dos trabalhadores locais, pouco se veem as caras rechonchudas dos turistas consumidores, sobretudo os do hemisfério norte. Dados oficiais dão conta de que no melhor mês do turismo local, apenas 50% da rede hoteleira está ocupada. Após um mês e meio de revolta, detonada pelo aumento das passagens de metrô em Santiago mas causada por um histórico bem anterior de opressão, o país segue em chamas e a economia começa a sentir uma retração sem precedentes recentes. Entre os locais, o semblante é sisudo. Teme-se pelo futuro e ninguém sabe como vai se encaminhar a crise.

Placa em casa de chá no centro de Valparaíso (Foto: Wilson Alves-Bezerra)
Placa em casa de chá no centro de Valparaíso (Foto: Wilson Alves-Bezerra)

Saindo da costa do Pacífico e rumando à capital – de dia, por conselho de amigos locais –, Santiago oferece também uma visão singular. O bairro boêmio de Lastarria e mais especificamente a Praça Itália – agora rebatizada pelos manifestantes como Praça da Dignidade – apresenta as marcas do conflito: as paredes ocupadas pela reação simbólica à violência do Estado. Pede-se não justiça, mas vingança; pede-se não a renúncia, mas a cabeça do presidente; sugere-se que os policiais se suicidem; diz-se que a democracia é a ditadura dos ricos, que os ricos saqueiam e os pobres apenas tomam de volta o que lhes pertence. Bancos, supermercados e lojas instalaram tapumes de metal, com travas soldadas, para evitar os saques frequentes. Tudo fecha mais cedo, o toque de recolher oficial foi suspenso, mas na prática os comerciantes e parte dos cidadãos o incorporaram.

Várias estações de metrô da cidade continuam interditadas, não se sabe se por depredação ou por uma tentativa de dificultar o acesso ao centro. O trânsito, já costumeiramente caótico, é piorado pela quase ausência de semáforos com funcionamento normal. Guardas de trânsito portam irônicas placas dizendo “Pare”. Antes mesmo que anoiteça, na Praça da Dignidade, três ônibus da tropa de choque dos carabineiros já aguardam ostensivamente pelos protestos diários da região: nas portas dos coletivos, guardas ostentam cassetetes e escudos. A dignidade não parece fazer parte de seu repertório mental.

Embora nos bares da região, nas mesas esparramadas pela calçada beba-se chopp em cristalinas canecas, um garçom vem gentilmente advertir-me de que devido aos acontecimentos recentes, tem-se cobrado a conta no momento do pedido. Antes que seja possível sequer pensar sobre o enunciado, dois policiais atravessam a rua Huérfanos, e ouvem por todos os lados gritos que ecoam naquele fim de tarde: “¡Violador! ¡Culiao! ¡Asesino!”. Os policiais seguem impassíveis, eles estão em minoria e partem em direção à Praça, escoltados pelos xingamentos.

A noite apenas começa, e antes mesmo do anoitecer o comércio já está fechado. Jovens começam a circular pela rua e gritar: “Piñera, assassino, igual ao Pinochet!” Olham para o alto dos prédios da rua Merced e pedem para as pessoas descerem. Das salas e quartos, ouvem-se os gritos inequívocos: polícia assassina. A ditadura está de novo no discurso e nas práticas, não é seguro estar nas ruas, não é seguro se opor.

Há poucos meses o Chile era palco de uma opressora estabilidade: sem serviços públicos gratuitos de educação, saúde ou aposentadoria, a população parecia ter-se acostumado à carestia, a financiar por anos uma cirurgia de emergência, a pagar para estudar nas universidades públicas e não ter sequer um banheiro, público ou privado, onde urinar sem ter que pagar algo por isso. De repente, a bomba.

Foto Wilson Alves-Bezerra
Grafite no centro de Valparaíso (Foto: Wilson Alves-Bezerra)

Não é exagerado perguntar-se o quanto o Brasil está longe desse limiar. Em nosso país, o atual governo flerta com a previdência chilena e com a ditadura de Pinochet, propõe um projeto privatista do sistema universitário como o Future-se, e parece, no limite, clamar por uma convulsão social para poder impor um regime de exceção.

Depois de terem liberado o seu Bacurau interior, os chilenos agora se perguntam – atônitos – para que lado há de se encaminhar a situação. Qual é a forma possível de organização política e social que garanta uma transformação positiva para o povo, essa parece ser a grande questão. Do outro lado da cordilheira, no Brasil, deveríamos nos perguntar o mesmo: o que queremos?

A revolta de outubro já tem suas vítimas, seus culpados, sua linguagem, suas canções, seus gritos de guerra, sua iconografia e modos de proceder dos dois lados – o dos manifestantes e do Estado. O que não tem e parece estar longe de alcançar é uma resolução. Os tapumes de metal dos comerciantes, a raiva da população contra a polícia, e a surdez e violência do Estado dão mostras de que o conflito ainda vai durar muito. É como diz uma pichação ao lado do metrô Bellas Artes: “Se normalidade significa voltar ao beco, eu prefiro a insurgência.”

Wilson Alves-Bezerra é crítico, tradutor e escritor. Escreveu Vapor barato (Iluminuras, 2018), O pau do Brasil (Urutau, 2016), entre outros

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