Democracia hard: homens, feminismo e machismo ao contrário
Oreet Ashery. Marcus Fisher, boy to man, 1974–2007
Muitas mulheres não sabem que são feministas (vide o delicioso http://blocomulheresrodadas.blogspot.com.br/2015/04/ei-moc-voce-e-feminista.html de Debora Thome e Renata Rodrigues do super Mulheres Rodadas). Ao mesmo tempo, sabemos que o lugar social denominado “mulher” não garante o feminismo de ninguém. Feminismo é também uma espécie de consciência sobre jogos de poder que envolvem sexualidade e gênero (e classe e raça, quando a consciência começa a ficar bem concreta) e de contra-consciência revolucionária na intenção de alterar um estado de “dominação masculina” que é basicamente um esquema que organiza a desigualdade na esfera pública, institucional, cultural e doméstica.
Ainda que pudesse ser meio lógico que uma mulher fosse feminista, a vida não é muito lógica e seguimos vivendo do jeito que é possível.
A quantidade de homens que vêm apoiando a causa feminista e, até mesmo, aderindo afirmativamente à ela, tem se tornado interessante. Verdade que para ser feminista uma pessoa não precisarser mulher, mas é também fato que o feminismo está absolutamente ligado à história das mulheres. O feminismo está ligado à crítica da dominação masculina em cujo contexto mulheres foram alienadas e violentadas, física e simbolicamente, como se fossem alguma coisa de abjeta, como se fossem alguma coisa de “subordinada”, de “secundária”. Se formos buscar na história veremos toda uma tradição tratando a “mulher” como um erro da natureza. Em muitas famílias, ainda hoje, quando nasce uma menina…
Ora, o que a gente chama de “dominação masculina” e de “patriarcado” (ainda que se possa falar muito sobre isso) tem a ver com a produção de um contexto em que esquemas de gênero tradicionais persistem organizando modos de pensar e agir em família e na sociedade em geral. Essa produção de contexto tem a ver com a criação de sujeitos “subalternos”, “secundários”, “inessenciais”, que podem servir aos que se fazem – ou são feitos – como “essenciais”. E se não podem servir, em uma versão mais crua, há quem pense que esses “inessenciais” devem desaparecer (daí a homofobia, o feminicídio, a matança dos pobres e negros… E ódios do tipo).
Mas talvez a gente possa dizer que a pessoa marcada como “mulher” e a pessoa marcada como “homem” sofreram e fizeram sofrer de modos diferentes. Precisamos pensar mais nessas “marcações”. O poder sempre “marca”. Não há mulher no mundo que não tenha sido “marcada” em sua vida. Os homens não são marcados. Só quando são gays, ou negros, ou trans. Quem disse algo nessa linha foi Simone de Beauvoir, uma feminista que até hoje sofre as “marcas” de ter sido amante-amiga de um filósofo muito conhecido chamado Sartre.
A diferença dos sofrimentos vividos ou causados tem a ver com os privilégios de uns que implicam a humilhação de outros… No caso, o feminismo sempre foi uma crítica e uma revolta contra os privilégios dos homens. Não há privilégios de mulheres em relação a homens em contexto de classe e raça iguais. Hoje em dia, o feminismo continua sendo essa crítica, mas é muito mais ainda, porque o feminismo evoluiu como um diálogo impressionante, bem preparado, bem posicionado e capaz de virar certos mundos, aparentemente muito arrumadinhos com seus esquemas patriarcais, de cabeça pra baixo.
Mais uma coisa. Por mais que pessoas marcadas como homens possam ter sido feministas em algum momento da história e hoje em dia existam cada vez mais homens simpatizantes do feminismo e afirmativamente feministas (e até feministas mesmo em suas práticas cotidianas ou em seus trabalhos teóricos), é um fato que o feminismo histórico (e materialista-histórico) é uma luta de mulheres, uma luta de um conjunto de pessoas marcadas como mulheres. Claro que os homens podem aprender com isso. O feminismo não pode excluir os homens alegando a categoria da “natureza” que foi usada pelos homens para dominar as mulheres. As mulheres também podem aprender com o feminismo, é preciso dizer. Todo mundo pode aprender. O feminismo é uma filosofia incrível.
Algo que sempre é bom levantar, para podermos pensar mais e com mais cuidado, é que a expressão “mulher”, assim como a expressão “homem” são questionáveis hoje em dia quando já passamos por tantas “desmontagens” históricas e percebemos que as identidade, sob as quais somos definidas, foram construídas e, por isso, podem ser desconstruídas. É neste sentido que os corpos e personagens históricos aglutinados sob a identidade “mulher” construíram o feminismo como uma luta contra o patriarcado enquanto poder masculino exercido em escalas diversas. Os homens podem ter criado consciência, mas como indivíduos aglutinados sob o nome “homem” foram sujeitos nascidos com o privilégio de não serem marcados como mulheres.
Gays, trans, lésbicas, e tantos outrxs são marcados diariamente e usam sabiamente a marcação para fazer política. Uma outra política.
Os homens não são marcados. E certos homens, conscientes de seus privilégios apenas por serem homens (como um branco que sente vergonha de ser branco em um mundo racista), passam a defender o feminismo que os desconstrói como homens. Não vejo por que proibir os homens de praticarem feminismo como desconstrução de seu próprio gênero. Isso é necessário e desejável.
Ser “homem”, assim, de um jeito absoluto, é uma coisa a ser questionada. Dia desses, brincando em um debate com o meu amigo Pereio, disse a ele com a ironia que nem sempre aparece nos textos: homem é uma coisa muito antiga, está ultrapassada…
Hoje várias feministas se revoltam quando homens aparecem na cena feminista reivindicando um lugar nessa luta. Há uma razão nessa revolta que, por mais inclusivo que o feminismo deva ser, não pode ser deixada de lado. É que o feminismo de um homem nunca será igual ao feminismo de uma mulher. Porque o feminismo é histórico, cultural e sempre relativo. A diferença entre o feminismo de um homem e de uma mulher é concreta para as mulheres e para todos aqueles que sofrem sob privilégios na ordem masculinista da cultura.
O sujeito do feminismo não é uma ficção teórica ou teológica. Ele é encarnado. A mulher (seja lá como ela for feminista) é essa encarnação. Essa diferença dos feminismos não precisa desaparecer. Do mesmo modo que a diferença do feminismo entre os gêneros em geral, entre as próprias mulheres que são, em si mesmas, singulares, como pessoas que são. A diferença existe e só mudará quando mudarem as condições sociais e políticas a partir das quais elas foram, afinal, geradas. Neste momento, a diferença existente pode elevar-se à singularidade e fazer parte de processos dialógicos. De diálogo, aliás, as feministas entendem. Não existe feminismo sem diálogo, sem inclusão e sem respeito à singularidade que constitui cada feminista em sua luta.
Reconhecer essa diferença define um gesto de inteligência hermenêutica e justiça histórica. Algumas feministas se preocupam que os homens que se dizem feministas estejam “roubando” um protagonismo que é historicamente feminino, justamente o protagonismo construído pelas mulheres por meio do feminismo, protagonismo que se confunde com o próprio feminismo. Protagonismo em qualquer área sempre foi uma prerrogativa masculina. Um privilégio que os homens colocaram para si mesmos por se afirmarem como eles mesmos. Isso é fácil de entender na prática quando um homem alega ser homem para não realizar serviços domésticos.
As mulheres foram barradas (assim como pobres e negros, e todos os que foram marcados por suas diferenças em termos de classes sociais, raça, etnia, religião), foram realmente proibidas de exercer protagonismo em áreas diversas e só ultrapassam essa condição em função dos avanços das lutas feministas. Não podemos esquecer isso para fazer avançar a história.
O protagonismo foi dos homens em função de uma identidade com o próprio poder, ela mesma construída historicamente, e que só o feminismo pode mudar. Hoje quando falamos em mudança, não se pensa em uma mera inversão, do tipo “feminismo como machismo ao contrário”. Há quem tema algo assim. Esse temor tem a ver também com a escalada histórica do discurso misógino anti-feminista nos termos dos quais “se é feminismo é algo ruim”…
Um “feminismo como machismo ao contrário” é impossível por que ele teria que ser feito por homens que continuassem usando o mesmo esquema de poder contra o qual o feminismo luta.
O feminismo, em qualquer uma de suas formas, é sempre uma ético-política que tem em vista um mundo de democracia forte, profunda e radical, em que gênero, raça, classe, religião (e acrescento sempre “critérios plásticos de normalidade”) venham a ser respeitados para que possam ser superados como marcadores da desigualdade. Agora são marcadores de políticas revolucionárias.
O feminismo construiu-se como luta das mulheres e revela-se hoje como a ético-política capaz de incluir na teoria e na prática todxs. Coisa que a dominação masculina jamais desejou.
Por isso, o feminismo tem ainda algo de “apavorante”. Mas apenas para quem não gosta de democracia versão hard.