Os 70 anos – e o futuro – da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(Arte Revista CULT)
Em 10 de dezembro de 1948, ainda no rescaldo da Segunda Guerra Mundial, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, portanto, completa 70 anos na próxima segunda-feira (10). Um documento relativamente curto, cujas palavras são bastante conhecidas, direta ou indiretamente, porque inspiraram a redação de diversos outros textos legais e políticos pelo mundo. No Brasil, o eco da Declaração pode ser ouvido com muita clareza no texto da Constituição que promulgamos no aniversário de 40 anos daquela “Carta das Cartas”.
Criticada por diversas razões e perspectivas, sua importância histórica e política, entretanto, é inquestionável. Primeiro, porque se opunha aos horrores do nazismo, dando os contornos do que deveria ser uma humanidade inconciliável com a existência de regimes autoritários. Segundo, porque consolidava, num único documento, um vasto repertório de direitos que, durante séculos, constituíam de modo mais ou menos esparso o que era chamado de direitos humanos. Terceiro, porque dali em diante a Declaração passou a pautar, de modo claro, o conjunto dos direitos fundamentais que os países-membros da ONU incorporariam, com destaque, aos seus direitos nacionais.
Direito à vida, liberdade, igualdade, fraternidade, tolerância, não-discriminação, segurança; proibição da escravidão e da tortura; acesso à justiça, devido processo legal e presunção de inocência; respeito à privacidade e à intimidade; direito de ir e vir, direito de asilo e de nacionalidade; liberdade de pensamento, consciência, religião, opinião, expressão, reunião e associação; direitos políticos, econômicos e sociais; direito ao trabalho, direitos sindicais e proteção contra o desemprego; direito à educação e à cultura, enfim, o núcleo desses direitos todos passou a se confundir com o dos direitos reconhecidos, em seus próprios países, a uma parcela imensa da população mundial, pressionando também a outra parcela a reconhecê-los.
Sabemos, claro, as inúmeras perversões sofridas pela ideia de levar os direitos humanos a todas as nações (no geral, por parte das nações mais ricas e pretensamente democráticas do mundo…), mas ainda assim é válido tomar os direitos elencados na Declaração Universal como um parâmetro básico para aferir o respeito à dignidade das pessoas nas mais diversas partes do planeta. Hoje, por exemplo, quando os direitos que citei acima parecem ser – e são tratados como – “direitos demais”, talvez fique ainda mais evidente a importância de uma Declaração como a de 1948.
Devia ser desnecessário dizer que o fato de tais direitos terem sido declarados não os transformou em realidade concreta no dia seguinte. Pelo contrário, declarar os direitos é levar a luta por eles a um novo patamar, muito importante, sem dúvida, mas ainda longe da vida cotidiana da maior parte das pessoas. Tais direitos agem, no corpo das constituições aprovadas sob sua influência, como um compromisso a ser respeitado, como um projeto a ser executado irrestrita e permanentemente. Ao declará-los, nada está conquistado ainda, mas já sabemos o que queremos conquistar.
É por isso que seu aniversário de 70 anos vai ser lembrado em todo o mundo de formas diferentes. A Declaração é apenas em parte um documento do passado. Ela se alimenta do que foi observado noutros tempos, foi escrita numa determinada época, mas seu apelo é fundamentalmente em direção ao futuro, à transformação das sociedades em que tais direitos não estejam sendo garantidos e respeitados. Sua natureza, portanto, é a transformação, seja pelos obstáculos peculiares com que se depara em cada país e em cada época, seja pelas novas necessidades que a humanidade apresenta.
Hoje, quando olhamos para a Declaração, olhamos não para um texto idêntico àquele escrito há 70 anos, mas para um texto sobre o qual pesam 70 anos de sucessos e fracassos, de concordâncias e discordâncias, de defesas e ataques. Um texto que, por mais que conheçamos em detalhe, transforma-se a cada novo enfrentamento a que é submetido num mundo em que a defesa dos direitos, ou melhor, em que a dignidade da vida das pessoas é constantemente subjugada pelos interesses do capital.
E esse é outro traço curioso da vida dos direitos humanos: tais direitos existem e se justificam pelo modelo de sociedade que o capitalismo instaura (ainda que tanta gente, hoje em dia, diga que ter liberdade e igualdade é “coisa de comunista”…), mas sua defesa torna-se, a cada dia mais, uma afronta ao capitalismo. É bom frisar: não é porque os direitos humanos – por assim dizer – não gostam do capitalismo, mas porque o capital não tolera qualquer limitação para os movimentos de que sua valorização depende. O fato de que, em seu avanço histórico, esses direitos tenham se expandido (cada vez mais detalhados, amplos e conectados entre si para mútuo fortalecimento) pode ser visto como a razão para tantos atritos, mas não passa de mais uma das muitas (perversas) inversões ideológicas de que o capital se beneficia. Na verdade, estudar a história do capitalismo das últimas sete décadas, entender tudo que foi feito para que o capital se safasse das encruzilhadas a que chega por sua própria força, elucida muito bem cada derrota na história dos direitos humanos no mesmo período.
Se este aniversário da Declaração vai ser visto, em grande parte do mundo, através de lentes muito sombrias, diante da ascensão de grupos políticos que defendem tudo aquilo que a Assembleia Geral repudiava, artigo por artigo, em 1948, é algo que deveria nos preocupar bastante, ainda que não seja novidade, na história da Declaração, conviver com as múltiplas formas do autoritarismo. Ou melhor: nos últimos 70 anos, não foram poucos – e ainda são muitos – os países que vive(ra)m sob regimes que nega(va)m qualquer vigência aos direitos escritos na Declaração. Daí se pode concluir, entretanto, mais do que qualquer demérito para aqueles direitos, o mérito que tiveram – e podem ter – ao servir de base para a acusação dos regimes autoritários.
No caso brasileiro, temos a responsabilidade de dizer que, em nossa própria história, a Declaração Universal dos Direitos Humanos viveu muitos anos à sombra de uma ditadura, mas tão grave quanto a memória daquele período específico (de 1964 a 1985) é o fato de que, nas nossas instituições e nas mais variadas camadas da sociedade, não tenhamos conseguido aprofundar a chamada redemocratização (em que os direitos humanos têm papel fundamental) e, muito menos, estabilizar na prática o que foi posto no texto da Constituição. Distante disso, lidamos agora com a retomada do poder por um grupo político profundamente identificado com a ditadura militar, que não esconde seu orgulho diante da história de violência perpetrada por torturadores e, não bastasse, foi eleito em grande parte por quem admira suas propostas autoritárias.
Este aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos não é, portanto, uma efeméride qualquer para os brasileiros que prezam a democracia. É uma data e um texto que ganharam significação extraordinária em meio às ameaças que se avolumam no nosso horizonte. É hora de lembrar, como nunca, que os direitos humanos são um instrumento de resistência – resistimos por meio deles –, mas também uma razão para nossa resistência – resistimos por eles. Porque sabemos que, quando tais direitos são atropelados, nossas condições de vida e de luta também o serão.
TARSO DE MELO é poeta e advogado, doutor em Filosofia do Direito pela USP. É um dos coordenadores do ciclo de leituras de poesia Vozes Versos (Tapera Taperá) e do selo Edições Lado Esquerdo.
(1) Comentário
Os Direitos Humanos são vitais para uma humanidade sadia e melhor maneira de garantir cada um precisa para ser feliz. Infelizmente os protagonistas ou alienados do mercado econômico não vêm nada de bom nesses direitos. Eles põem os lucros acima de tudo e o humano, principalmente os desfavorecidos pelo sistema, como objetos, e os marginalizam mais