De que maneira você resolveria um problema como o Führer?
A Linz09, que começará neste mês, precisará lidar com um problema histórico bastante espinhoso
Em fevereiro de 1945, enquanto os russos se aproximavam de Berlim, Adolf Hitler ordenou que seu segundo arquiteto favorito, Hermann Giesler, reproduzisse em pequena escala, a cidade onde nasceu, Linz, e a colocasse em seu bunker.
Uma das últimas fotografias tiradas de Hitler mostra-o sentado em uma mesa baixa, estudando a ponte Nibelungen, que ele havia construído sobre o rio Danúbio, como um prelúdio para obras mais grandiosas. Em seu último testamento, Hitler deixou para a cidade de Linz sua coleção de arte particular. Linz, na fantasia de Hitler, iria se tornar a capital cultural da Europa.
Neste ano, esse sonho será realizado. Após uma decisão inesperada, talvez tomada durante uma bebedeira, Linz foi a cidade escolhida para suceder Liverpool como centro artístico para o ano de 2009. É uma decisão que vai além da sátira e da razão.
Mesmo que houvesse razões culturais para celebrar a cidade de Linz – e de fato existem algumas – qualquer pessoa que vive na União Europeia sabe, com certeza, que o ano de 2009 marca o aniversário de 70 anos da guerra instaurada por Hitler e também os 120 anos de seu nascimento. Nenhum ano com o algarismo nove em sua composição é um bom ano para falar sobre a genialidade de Linz, independentemente do tempo que se passou.
Em Linz propriamente dita, não há como escapar do nome que começa com a letra H. A ponte Nibelungen ainda cruza o rio, e é impossível não reparar na varanda da Prefeitura, de onde o führer realizou seu primeiro discurso para as massas, em março de 1938. Moradias baratas que ele construiu para operários durante o boom nazista ainda são conhecidas como “Hitlerbauten”. Embora ele tenha nascido em um subúrbio do vilarejo de Braunau e ainda que não haja nenhuma placa em qualquer parede, Linz ainda é a cidade de Hitler, assim como Salzburg é a de Mozart e Stratford é a de Shakespeare.
Desde que foi nomeada a Capital da Cultura, estive ansioso para ver como Linz iria responder ao desafio – ainda mais que cultura, para Hitler, sempre caminhou ao lado de política e de raça. Para fugir desse estigma, Linz precisaria desconstruir e redefinir o significado de cultura em uma sociedade heterogênea. Mas como fazer isso?
Recentemente, descobri. O primeiro ato de Linz09 será a exposição “Linz: a capital cultural do Führer”, que mostrará os projetos criados por Hitler e as obras artísticas que ele programava exibir no maior museu da Europa. Ao longo de oito meses, o evento sobre Hitler representará a sufocante mediocridade da arte do Terceiro Reich, e permitirá a comparação com quatro escultores austríacos da década de 1930: Barlach, Kasper, Thorak e Wotruba.
“A única forma de lidarmos com Hitler é sendo completamente honestos”, afirma Martin Heller, diretor artístico da Linz09, dando a impressão de que deu essa mesma resposta diversas vezes. Quando chegou em Linz, Heller, um artista pós-moderno da Suíça, notou que não havia nenhum transporte público ligando Linz ao campo de concentração Mauthhusen, localizado nas proximidades da cidade. “Vamos incluir o campo de concentração em nosso programa cultural e instalar uma linha de ônibus para fazer o trajeto”, promete. “O prefeito tem sido prestativo. Não há limites sobre o que podemos discutir”. Uma difusa rede de túneis localizados nos subterrâneos de Linz, utilizados como esconderijo e depósito durante a guerra, será exposta durante a programação como metáfora para a memória silenciada.
Expor o passado, no entanto, não é o bastante. Heller, que comandou o museu de design de Zurique e a Exposição Nacional da Suíça em 2002, trará à mostra Linz09 seu léxico de ironias pós-modernas e a linguagem da pop art. Seu slogan publicitário é um ovo frito ao lado de uma vírgula invertida. Não procure por significados: eles não existem. Heller pretende fragmentar a percepção de cultura até o ponto em que ela perca toda sua dimensão política.
“Em um determinado momento, cheguei a dizer que não deveríamos sequer chamá-la de Capital da Cultura”, revelou durante a cerimônia de posse. “Vamos apenas afirmar que queremos ser interessantes. Não somos Salzburg ou Viena. Linz será diferente – a cidade precisa ser diferente.”
Um teste para essa tendência iconoclasta será Anton Bruckner, o sinfonista monumental nascido na vila de Ansfelden e enterrado na cripta do monastério de Santo Florian, que Hitler pretendia transformar na “Bayreuth de Bruckner”. Preterido apenas por Wagner na paixão musical do führer, Bruckner era figura constante nas rádios durante as solenidades do partido nazista. Integrar Bruckner à programação de Linz09 é quase tão complicado quanto neutralizar a figura de Hitler.
Salzburg, em seu ano de Mozart em 2006, levou aos palcos todas as suas óperas. Linz, em vez de interpretar as onze sinfonias e as diversas missas, programou apenas uma sinopse enxuta: todo o trabalho de Bruckner em uma hora, ou os grandes hits de Bruckner. O objetivo é tanto um tributo lacônico quanto um comentário irônico. Reduzido a uma hora, Bruckner ou irá adquirir uma nova roupagem ou irá provocar risadinhas públicas. É tudo uma questão de contexto.
Em vez de imitar a mostra realizada em Liverpool sobre o batido Klimt, Linz está saqueando os museus da Áustria para montar uma exibição que poderá colocar uma peça religiosa medieval ao lado de um nu pintado por Paul Klee, sugerindo uma continuidade da cultura que supera a distinção de épocas transitórias marcadas por fé e por ideologia.
Heller sabe que isso também não irá reabilitar a cidade. Transformada por Hitler, Linz, que de pequena cidade comercial tornou-se um importante centro industrial, permanece dominada por operários e altamente multicultural, com visível influência da minoria islâmica. Em vez de impor noções monolíticas sobre cultura, Heller e seus curadores solicitaram contribuições do público.
Choveram mais de 1.700 ideias e muitas fazem parte da programação: roteiros sobre órgãos, novas linhas de ônibus e arte sobre os telhados. Há também os prédios públicos obrigatórios no programa: um novo centro para Ars Electronica, um dos principais grupos em arte tecnológica, e uma casa de óperas construída pelo arquiteto londrino Terry Pawson. De todo modo, o objetivo de Linz09 é fugir das amarras da cultura oficial e abrir espaço para novidades criativas.