De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?

De que filosofia do acontecimento a esquerda precisa?

Segundo Alain Badiou: recuperar a ontologia e impedir que a ação política perca seu solo de orientação

Vladimir Safatle

 Alain Badiou é um nome que, aos poucos, firmou-se como referência importante nos debates sobre a renovação do pensamento de esquerda. Juntamente com Jacques Rancière e Etienne Balibar, Badiou representa atualmente o desdobramento intelectual mais visível das experiências de maio de 1968. Mas, no seu caso, tal desdobramento não levou à constituição das políticas multiculturais da diferença ou da crítica pós-moderna dos universais. Marcado profundamente por uma certa articulação entre psicanálise e marxismo, ou seja, por um certo althussero-lacanismo conjugado a partir de longa militância maoísta, Badiou foi capaz de conservar temáticas clássicas do pensamento de esquerda em um tempo que parecia negar-lhes o direito de cidadania. Afinal, quem hoje estaria disposto a insistir no papel dos universais, na relação intrincada e necessária entre violência e política, na crítica à democracia parlamentar, no formalismo da concepção liberal de liberdade, na política como campo de realização da verdade de uma situação, na função central da igualdade como ordenador das lutas políticas e na armadilha que consiste em suspender a política através da ética?

De fato, Badiou não teme em defender tais posições através de produção extensa que ultrapassa o quadro do que entendemos por filosofia política, já que se trata, no fundo, de reflexão sobre os impactos, no interior do campo do político, de uma ontologia renovada.

Desde o inicio dos anos 1970, Badiou tenta articular dois projetos. Por um lado, trata-se de recuperar a ontologia e, com isso, desenvolver uma teoria complexa capaz de dar atualidade a conceitos como acontecimento, ser, sujeito e verdade. Por outro, trata-se de impedir que a ação política perca seu solo de orientação e o fundamento de uma crítica radical da contemporaneidade. Livros como O ser e o evento (Jorge Zahar/UFRJ, 1996), Ética; um ensaio sobre a consciência do mal (Relume Dumará, 1995), Compêndio de metapolítica (Instituto Piaget, 1998), O século (Idéias e Letras, 2007) e os não traduzidos Saint Paul: la fondation de l´universalisme (PUF) e Logique des mondes (Seuil: 2006) devem ser lidos como momentos convergentes desse duplo projeto.

Ontologia e política

Grosso modo, podemos dizer que Badiou compreende muito bem que a política não pode ser guiada por exigência de realização de ideais normativos de justiça e consenso que já estariam presentes em alguma dimensão da vida social. Pois isso nos impede de desenvolver uma crítica mais profunda que nos permita questionar a gênese de nossos próprios ideais de justiça e consenso. Ou seja, a crítica não pode ser apenas a comparação entre situações concretas determinadas e normas socialmente partilhadas. Essa é, no fundo, uma crítica de juizado de pequenas causas que se contenta em comparar normas e caso. Antes, a verdade crítica tem a força de se voltar contra nossos próprios critérios de justiça e consenso democrático, já que ela se pergunta se nossa forma de vida não é mutilada a ponto de se orientar por valores resultantes de distorções patológicas.

Daí porque Badiou não teme sequer fazer a crítica da democracia parlamentar como forma mutilada de vida social que tenta esvaziar a possibilidade de todo acontecimento radical, assim como não teme fazer a crítica da colonização da política pela ética. Pois se trata de mostrar como a experiência contemporânea da ética é assombrada pela temática da finitude do indivíduo, desse indivíduo exposto ao sofrimento, à morte, às catástrofes históricas das múltiplas formas de campos de concentração. Em suma, indivíduo que deve ser primeiramente reconhecido na sua condição de vítima em potencial. Como se a “humanidade” do homem só aparecesse quando o interrogamos na sua condição de vítima.

Mas essa redução do sujeito à condição privilegiada de vítima é uma maneira astuta de reduzir o campo do político, pois se trata de levá-lo a transformar suas demandas políticas em exigências de reparação subjetiva, transformar expectativas de reconfiguração do campo social em demanda de cuidado e reconhecimento. Assim, Badiou pode lembrar que algo une refugiados vítimas do “mal radical”, pacientes com depressão, vítimas de seus próprios corpos, neuróticos vítimas de constelações familiares, trabalhadores vítimas do desmantelamento do estado de proteção social (e que não procuram superá-lo de maneira revolucionária, mas simplesmente continuar protegidos). A lista é heteróclita e extensa. No entanto, ela demonstra como uma lógica convergente atua em campos autônomos da vida social. Trata-se de uma lógica que, ao mesmo tempo em que reconhece a correção das demandas sociais, desloca-as para um campo fora do político com sua dinâmica de modificações estruturais, ou seja, para um campo de demandas de reparação direcionadas a um poder que deve ser reconhecido como tal para poder satisfazer tais demandas.

Essa maneira de criticar a política é uma temática presente no pensamento francês dos últimos 30 anos vista, muitas vezes, como fruto de uma certa crítica totalizante que, ao se voltar contra a extensão dos nossos valores, acaba por perder o solo que poderia fundamentá-la. Pois em nome de qual valor criticamos os valores socialmente partilhados? Em nome do que estaríamos dispostos a colocar em risco nossas estruturas jurídico-institucionais? Por outro lado, essa crítica, ao se transformar em crítica da ética, parece ser animada por um certo anti-humanismo militante. E em nome de que podemos dizer que nossa “humanidade” é uma construção que visa a nos rebaixar à condição política de vítimas?

É nesse ponto que Badiou propõe uma operação filosófica de grande envergadura que consiste em fundamentar a crítica social em uma ontologia capaz de refletir sobre os modos de manifestação do ser e de constituição de sujeitos. Mas, com isso, parece que encontramos mais problemas que soluções. Pois uma forma de vida fundamentada em uma ontologia do ser não seria uma verdadeira porta aberta para um certo totalitarismo que procura medir nossas potencialidades a partir de um discurso que visa a falar em nome do próprio ser? E por que afinal a esquerda precisaria dessa “tentação ontológica” para fundamentar sua crítica social? Não bastaria simplesmente apelar à existência do sofrimento social resultante da opressão de classe, da pauperização persistente e das práticas disciplinares presente em múltiplas instituições sociais?

Não para Badiou. Pois como a crítica quer ser totalizante, como ela quer invalidar valores e não apenas casos, o sofrimento social não pode ser compreendido como advindo da impossibilidade de realizar expectativas de justiça devido à realidade da opressão e da miséria, expectativas de realização de si devido à realidade das práticas disciplinares. Esse sofrimento social deve ter uma raiz ontológica, pois está vinculado à impossibilidade de manifestação de algo de fundamental para a determinação dos sujeitos. Pois sujeitos não são apenas individualidades resultantes de processos de socialização e de formação do Eu que se desenrolam na família, nas instituições, nas comunidades, no Estado. Sujeitos são operações que colocam indivíduos para além do que família, instituições, comunidades, Estado podem produzir e legitimar. Sujeitos são operações que resultam em algum tipo de ancoragem em um ser que se manifesta como ruptura. O que o permite afirmar: “Como ele o é de uma verdade, um sujeito se substrai a toda comunidade e destrói toda individuação.”

Podemos compreender o caráter radical dessa ontologia através de uma querela que procurou arrastar Badiou para a arena do anti-semitismo (ver artigo publicado na Folha de S. Paulo de 01/07/2007). Há alguns anos, o autor tem publicado pequenos livros de intervenção intitulados Circunstâncias. Guerra do Iraque, revolta nas periferias francesas, o problema da imigração: esses são alguns temas de tais intervenções. O último desses livros tem como título “Alcances da palavra ‘judeu’”. Nele, Badiou coloca em circulação uma idéia fundamental para a esquerda: não é aceitável estabelecer relações entre nação, Estado e povo. Nem a nação enquanto construção do imaginário, nem o Estado enquanto aparato jurídico-institucional podem estar relacionados ao povo como identidade. Pois isso significa colonizar a política com uma lógica que bloqueia o que há de determinação universal em todo e qualquer sujeito. Nação e Estado devem ser assim absolutamente indiferentes às diferenças, isso no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a afirmação da diferença de qualquer conteúdo político. Pois o espaço do político não deve ser marcado pela afirmação da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qualquer exigência identitária. No limite, isso nos leva a criticar a existência de uma nação e um Estado judeu, da mesma forma que devemos criticar a existência de uma nação e um Estado francês (com seu Ministério da imigração e da Identidade nacional), de uma nação e de um Estado brasileiro etc. Badiou aproveitava tal raciocínio para insistir na necessidade da criação de um Estado binacional entre Israel e Palestina (como já fizeram Edward Saïd e vários outros).

Essa sempre foi uma perspectiva defendida por uma esquerda marcada pelo internacionalismo e pelo universalismo. Que hoje em dia, tal perspectiva seja vista como crime (já que acusar alguém de antisemitismo é vê-lo como um criminoso racista da pior espécie), isso só demonstra como se tenta restringir a todo custo o espectro do debate político através da criminalização da esquerda. Mas há uma linha reta que vai da criminalização da esquerda ao mais desenfreado totalitarismo.

Paixão pelo real

Se voltarmos à articulação entre ontologia e política em Badiou, devemos admitir que essa “tentação ontológica” corre o risco de ser uma mera construção peculiar de engenharia intelectual francesa se não fizer prova de alto potencial explicativo. É nesse ponto que vale a pena voltarmos os olhos para um pequeno livro no qual Badiou articula ontologia e uma versão muito própria de filosofia da história. Recém lançado no Brasil, O século se apresenta como uma reflexão filosófica sobre os sentidos das experiências históricas do século 20. Podemos dizer, seguindo Badiou, que o sentido do curto século 20 com suas rupturas, catástrofes e inventividade foi a realização de uma “paixão pelo real” e da procura pelo “homem novo”.

O termo “paixão pelo real” é uma construção que visa a dar uma resposta determinada a questões como: qual é a origem do sofrimento social que sustentou, no século 20, a crítica às nossas formas de vida naquilo que elas têm de mais fundamentais? A resposta de Badiou é: nosso sofrimento vem de uma paixão, um afeto produzido pelas exigências de manifestação de um real “horrível e entusiasmante, mortífero e criador” que deve, no limite, livrar-nos de uma subjetividade esgotada a fim de instaurar um homem novo. Afeto que fornece a inteligibilidade do movimento do século em sua dinâmica fundamental.

Esse real do qual fala Badiou vem de Jacques Lacan. O psicanalista francês havia desenvolvido a teoria de que o comportamento humano era orientado a partir de três instâncias distintas: o Imaginário (dimensão de imagens ideais que guiam a conduta), o Simbólico (dimensão das estruturas sociais) e o Real. Aqui, o Real não deve ser entendido como um horizonte de experiências concretas acessíveis à consciência imediata. O Real não está ligado a um problema de descrição objetiva de estados de coisas. Ele diz respeito a um campo de experiências subjetivas que não podem ser adequadamente simbolizadas ou colonizadas por imagens. Isso nos explica porque o Real é sempre descrito de maneira negativa, como se fosse questão de mostrar que há experiências que só se oferecem ao sujeito sob a forma de processos disruptivos.

Nesse sentido, Lacan insiste que a lógica do comportamento humano não pode ser totalmente explicada a partir do cálculo utilitarista de maximização do prazer e de afastamento do desprazer. Há atos cuja inteligibilidade exige a introdução de um outro campo conceitual com sua lógica própria, um campo que desarticula distinções estritas entre prazer e desprazer por colocar o Eu sempre diante de uma certa dissolução de si que produz, ao mesmo tempo, satisfação pulsional e terror. Indistinção entre satisfação e terror que Lacan chama de “gozo”.

A sagacidade de Badiou consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição e procura. Recalcar essa história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o nazismo, o horror, as ilusões do modernismo etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se esse impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com conseqüências políticas é, no fundo, uma maneira de pregar o evangelho de uma vida mutilada, que prefere se atrelar à finitude, à colonização pulsional, a assumir uma temporalidade que se manifesta como ruptura e negação. Ou seja, a filosofia da história que Badiou propõe não é cumulativa ou teleológica, mas ela visa a fornecer as condições nas quais uma verdade aparece como “interrupção”, como “exceção radical”. Ela visa a fornecer condições para pensar uma história, atrelada á exigências de reconhecimento do que se manifesta na estrutura pulsional dos sujeitos, na qual acontecimentos sejam possíveis.

É claro que há várias questões no interior da experiência intelectual de Alain Badiou que são passíveis de problematização. De qualquer forma, a importância de uma experiência intelectual nunca foi mensurada pelas respostas que ela é capaz de dar, mas pelos problemas que ela é capaz de produzir, condição para a impulsão do pensamento. E, nessa perspectiva, o pensamento de Badiou é de grande importância para a contemporaneidade.

Sobre algumas problematizações possíveis, fiquemos ao menos com uma. Badiou partilha com várias outras correntes de esquerda, a defesa de que “a decisão política não é constrangida pela economia”. Maneira de defender o espaço do político contra a lógica administrativa que visa a impor modos de gestão da vida. Isso o leva a retomar esta frase famosa de Robespierre pronunciada por à ocasião da condenação de Lavoisier: “A república não necessita de cientistas.” Badiou chega a afirmar que ela apresenta a essência do político na medida em que: “A república não tem necessidades”, ou seja, “A política, quando existe, funda seu próprio princípio quanto ao real e não tem necessidade de nada a não ser dela própria.”

No entanto, podemos dizer que afirmações dessa natureza só são possíveis porque a política é compreendida a partir de uma teoria do poder que visa a definir em que condições a política aparece como campo investido de um poder instaurador e instituinte. No entanto, ela deve ser também compreendida a partir de uma teoria do governo que visa a definir os modos de governar e de administrar o que foi instituído enquanto campo. Ter uma teoria do poder não nos fornece uma teoria do governo. Talvez um dos maiores problemas da esquerda esteja em não ter uma teoria das técnicas de governo. Pensar uma teoria do governo implica, por exemplo, em ter de submeter a decisão política a certos constrangimentos vindos da economia (o que implica resgatar a economia política) e das necessidades. Até porque, por mais crasso que isso possa parecer, o homem é este que, ao mesmo tempo, é sujeito de uma paixão pelo real e precisa de geladeiras. Anular as geladeiras, ou seja, instaurar a política no solo de uma cruzada contra o “serviço dos bens”, dizer que a república não tem necessidades, só vai nos fazer perder as condições de realizar nossa paixão pelo real. Talvez esse seja o verdadeiro sentido de uma afirmação capital de Lênin: “Comunismo é o poder soviético mais a eletrificação de todo o país.” Realizar as duas coisas ao mesmo tempo é o maior desafio. Um desafio que a experiência intelectual de Alain Badiou certamente nos ajuda a transpor.

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