De cuentos reunidos a todos os contos
Clarice Lispector e o filho Paulo no bairro do Leme (Acervo Paulo Gurgel Valente)
Clarice Lispector tem seus Cuentos reunidos num volume publicado em novembro de 2001, no México, pela editora Alfaguara, depois reeditado na Espanha e na Argentina pela editora Siruela. O professor mexicano Miguel Cossío Woodward, que organizou o volume, reuniu traduções anteriores de contos feitas por Cristina Peri-Rosi, Juán García Gayó, Marcelo Cohen e Mario Morales. E seguiu um critério confiável, devidamente explicitado num capítulo de introdução ao volume: agrupou todos os contos de cada volume, excluindo os contos repetidos, ou seja, os que já haviam sido publicados em volume anterior. E incluiu também os contos publicados após a morte de Clarice com o título de A bela e a fera, que reúne seis contos publicados ainda no início dos anos 1940/1941, e os dois últimos, publicados nos últimos anos de vida da escritora, em 1977.
Por mais alguns anos, o organizador teria acesso a mais dois volumes com publicação de mais quatro contos de Clarice escritos em 1940 e 1941: três deles publicados em 2005 no volume Outros escritos, organizado por Teresa Montero e Lícia Manzo, coletânea que também inclui parte do “Cartas a Hermengardo”, conto este erroneamente considerado por Renard Perez, em 1964, como sendo o primeiro escrito por Clarice.
Na realidade, todos esses quatro contos já haviam sido reproduzidos em 1991 por Aparecida Maria Nunes no seu trabalho acadêmico Clarice Lispector jornalista, sendo que o “Cartas a Hermengardo”, aí parcialmente transcrito, seria registrado na íntegra em 2012, no volume Clarice Lispector na cabeceira: jornalismo, organizado também por Aparecida Maria Nunes, aliás responsável pelo registro pioneiro da trajetória de Clarice na imprensa carioca.
Ou seja, nessa edição pioneira mexicana de reunião de contos de Clarice comparecem todos os contos publicados por ela em livro até a data em que os Cuentos reunidos foram publicados: o ano de 2002.
Embora o critério editorial seja coerente, na medida em que obedece à sequência das edições desses contos por ordem cronológica, desde Laços de família, de 1960, faço apenas uma ressalva, em nome dessa mesma coerência: por que o organizador não considerou nesta sequência a primeira publicação de contos de Clarice, intitulada Alguns contos, de 1952?
Se, por um lado, essa primeira publicação de contos tem divulgação restrita, promovida pelo Ministério de Educação e Saúde, integrando a coleção Cadernos de Cultura, mais sob forma de boletim que propriamente de formato de livro comercial, hoje obra rara, por outro lado é aí que Clarice reúne pela primeira vez alguns dos seus contos, mais propriamente seis deles. E completaria: seis dos seus melhores contos. E justamente quando Clarice tinha apenas 31 anos.
Convém considerar ainda que um deles inclusive já havia sido publicado na imprensa, o que reforça a precocidade de Clarice ao escrever, desde cedo, contos de construção madura e de nível de qualidade excelente. É o caso de “O jantar”, publicado no periódico Letras e Artes, suplemento do jornal A Manhã, em 13 de outubro de 1946, quando Clarice tinha apenas 25 anos.
A partir desse primeiro livro, Alguns contos, a escritora passará a adotar um princípio que valerá para os demais volumes que publicará ao longo da sua vida: publica contos novos e acrescenta alguns do volume anterior. Assim sendo, o livro Laços de família, primeira reunião de contos com aparência mesmo de livro e com distribuição significativa, inclui os seis contos do volume anterior, Alguns contos, e mais sete novos. Num total de treze.
São treze também os contos que integram o volume A legião estrangeira, de 1964, na sua primeira parte, já que reserva uma segunda parte, intitulada “Fundo de gaveta”, para o que chama de, no subtítulo do volume, “Crônicas”.
São treze também os contos novos que inclui no volume Felicidade clandestina. E são treze os contos, todos até então inéditos, que inclui em A via crucis do corpo. (O organizador não considera a “Explicação” como conto). Esse número parece ter sido conscientemente escolhido por quem se dizia supersticiosa e recomendava à amiga Olga Borelli, quando datilografava os seus textos, não ultrapassar a página 13…
Os 74 contos que integram o volume da edição mexicana não constituem os contos completos de Clarice, afirma o organizador, e por várias razões. Numa competente introdução, intitulada “De Clarice”, afirma que a escritora não teve tempo de – e eu acrescentaria: ou não quis – reunir todos os seus contos, incluindo os primeiros que publicou na imprensa. De fato, a essa altura, quatro primeiros contos encontravam-se dispersos em periódicos e ainda não haviam sido publicados em livro.
O organizador ressalta ainda que essa incompletude se devia à dificuldade de classificar com precisão os gêneros praticados por Clarice, muitas vezes podendo ser considerados prosa poética, ensaio, autobiografia ou, simplesmente, crônica jornalística. Preferiu, como critério de edição, pisar terreno seguro, adotando os contos que a autora apreendeu em vida, além de outros seis (esses sim, considerados contos, nos moldes dos anteriores) que foram publicados postumamente em A bela e a fera.
Acertou o editor mexicano ao manter coerência dos seus “contos reunidos”. Mas não foi esse o caminho trilhado por Benjamin Moser, que, sob o título de Todos os contos, volume publicado primeiramente em inglês com tradução premiada de Katrina Dodson, considerado um dos cem melhores livros lá publicados no ano de 2015, e recentemente publicado no Brasil, reuniu todos os contos publicados anteriormente em volumes. Mas também acrescenta outros seis textos.
Quanto à seleção dos contos, excetuando-se os tais seis do acréscimo, observe-se que o organizador norte-americano seguiu o mesmo critério adotado por Miguel Cossío Woodward: partiu de Laços de família até os últimos contos, reunindo de cada volume apenas aqueles que não se repetiam. Mas já pôde contar com a edição de dois volumes em que foram publicados os tais quatro primeiros contos de Clarice – Outros escritos e Clarice Lispector na cabeceira: jornalismo (este último Benjamin Moser não cita), conseguindo assim um lote completo de primeiros contos que o organizador reuniu em “Primeiras histórias”, deixando para o final do volume os dois últimos, em “Últimas histórias”, abolindo assim a referência ao volume póstumo A bela e a fera.
Acrescenta, pois, aos primeiros contos, escritos em 1940 e 1941, já publicados no volume A bela e a fera, mais quatro contos. “Triunfo” (é este o título registrado no periódico, e não “O Triunfo”) veio à luz na revista Pan, em 25 de maio de 1940. (E não em 24 de dezembro de 1944, conforme informação do Benjamin Moser à página 649.) Aí também surgem mais dois contos – “Eu e Jimmy” e “Trecho” – publicados na revista Vamos Ler!, respectivamente em 10 de outubro de 1940 e 9 de janeiro de 1941. (Referências não mencionadas por Benjamin Moser.) E aí aparece também uma parte do conto “Cartas a Hermengardo”, publicado primeiramente em três números da revista D. Casmurro em 1941: 14 de junho, 26 de julho e 30 de agosto e publicado, na íntegra, no já citado volume Clarice Lispector na cabeceira: jornalismo. (Benjamin Moser menciona apenas as duas últimas datas e refere-se, talvez equivocadamente, a uma quarta parte, na página 648.)
Além desses contos, o organizador acrescenta ainda um texto em caráter de apêndice, “A explicação inútil” – esse é o título de Clarice. O apêndice, que, pelo seu caráter de agregado, abriga o que se quiser abrigar, efetivamente torna-se útil, ao fornecer ao leitor detalhes sobre circunstâncias que cercaram a criação dos contos de Laços de família.
Mas por que teria selecionado outros textos extraídos do tal “Fundo de gaveta”? O organizador seleciona uma peça de teatro, “A pecadora queimada e os anjos harmoniosos”, e mais três textos – “Perfil de seres eleitos”, “Discurso de inauguração” e a antológica crônica “Mineirinho”. E no final da seleção inclui mais uma longa crônica, intitulada “Brasília”, extraída do volume Visão do esplendor.
Clarice parece ter se desvencilhado, cada vez mais, ao longo de sua produção literária, da chamada “pureza” dos gêneros. Se A maçã no escuro pode ser considerado o romance mais tradicional no que se refere à construção narrativa, observe-se que Perto do coração selvagem anunciava certas ousadas solturas que antecipavam os seus últimos romances, já nem mais chamados de romances: Água viva é simplesmente “ficção” e Um sopro de vida, “pulsações”. Visão do esplendor, de onde o organizador seleciona a crônica “Brasília”, já numa segunda versão aumentada, reúne “impressões leves”… Nesse aspecto, ser ou não conto me parece que perde o sentido.
No entanto, pelo menos em momentos de sua carreira, os contos que escreveu podem com segurança ser chamados de contos. Alguns, célebres, exibem estrutura clássica pautados em sequência de começo, meio e fim, como é o caso de “Amor”, construído com rara simetria entre as três partes, com o clímax na parte medial, quando Ana mergulha na complexa experiência da sua própria condição humana, numa espécie de mistura de vícios e virtudes, de vida e morte, num Jardim do Paraíso e do Inferno, em vislumbre de liberdade criativa ao mesmo tempo terrível e encantadora.
Portanto, se o que se propõe neste volume de “todos os contos” é mesmo a “totalidade” dos contos, melhor seria separar logo no índice o que é do que não é conto.
Se as fronteiras entre os gêneros são frágeis, melhor acertou Miguel Cossío Woodward, mantendo o critério estipulado pela própria Clarice. E que poderia ser mantido caso tivesse a ocasião de reunir os quatro primeiros contos, que mantêm a estrutura de conto. Senão… correria o risco de incluir, no volume de contos, textos que não são propriamente contos, diluindo assim a força do título. E levar o leitor a aceitar como conto aquilo que não é.
Mesmo porque a justificativa do organizador Benjamin Moser não me parece clara. Ao se referir ao fato de que Clarice “não respeitava os limites entre os gêneros”, afirma: “Muitos dos seus textos foram apresentados como jornalismo, mas são claramente ficcionais. Muitos daqueles que foram publicados como ficção podem ser classificados de ensaios ou relatos memorialísticos”. Mas a que se deve a inclusão de tais textos? Deve-se, segundo o organizador, ao objetivo de “disponibilizar tanto da sua obra quanto possível”. E mais: “excluindo jornalismo, ensaios e miscelâneas curtas”. Quanto ao “Mineirinho”, informa que é “jornalístico”, mas inclui porque “o estilo se aproxima ao dos seus contos”. E quanto aos outros? Por que seleciona uma peça de teatro? E a que se deve a seleção dos outros textos? Seleciona por considerar tais textos ficcionais? Senão crônicas? Contos? Qual o critério?
Quanto ao prólogo do organizador, intitulado “Glamour e gramática”, limito-me a apenas duas considerações. O organizador reconhece uma relação entre a idade de Clarice e a de suas personagens, à medida que ambas passam pela adolescência, maturidade, velhice. No entanto, o repertório de personagens de Alguns contos comprova a maturidade precoce de Clarice como escritora, atenta a questões complexas do comportamento humano em todas as idades, tanto da adolescência (“Começos de uma fortuna)”, como da mulher adulta (“Amor”), quanto da velhice (“Feliz aniversário”). Aliás, ao morrer com quase 57 anos, Clarice não experimentou as agruras das suas personagens mais velhas, octogenárias.
E ao mencionar os ascendentes de Clarice, o organizador refere-se, tal como já o fizera na biografia de Clarice (Clarice,) ao fato de a mãe de Clarice ter sido “violentada”. Aliás, na sua biografia, vai além: como consequência desse ato, a mãe teve sífilis. Ou teve sífilis porque foi violentada? Seja como for, como provar que a mãe foi violentada? Como provar que a doença da mãe era sífilis? Não há nenhum registro documental que comprove nem o ato de ter sido violentada nem a doença de sífilis.
O que há são dois registros da doença da mãe feitos pela irmã de Clarice, a também escritora Elisa Lispector, em dois textos. Elisa menciona a hemiplegia (paralisia da metade do corpo) motivada por “trauma” durante pogrom ocorrido na Ucrânia, em seu texto de memória intitulado Retratos antigos. E afirma que a mãe sofria de mal de Parkinson, no conto “Exorcizando lembranças”, do volume O tigre de bengala.
De fato, durante os pogroms ocorriam muitos estupros. Mas o fato de ser caso comum não quer dizer que a mãe de Clarice tenha sido objeto desse tipo específico de violência. E a variedade de atos atrozes contra judeus é conhecida e, aliás, bem descrita pela própria Elisa, no seu romance autobiográfico No exílio. Seja por golpe recebido durante pogrom, que pode lhe ter causado problema vascular com lesão cerebral e paralisia de parte do corpo, seja por mal de Parkinson, o fato é que tinha dificuldades de andar desde que saiu da Ucrânia em direção ao Brasil.
Outro argumento levantado pelo organizador do livro na sua biografia é que Clarice se refere ao fato de ter sido concebida para salvar a mãe de “uma doença”. E a mãe não foi salva. Clarice não menciona qual seria a doença. O organizador afirma que é sífilis, doença, aliás, contagiosa. Mas não consta que o marido de Marieta, mãe de Clarice, tenha contraído sífilis. Nem que Clarice tenha nascido sifilítica. Além disso, se era “lenda” a gravidez como salvação para casos de doença, seria preciso pelo menos constatar que essa lenda se referia a sífilis, naquela região da Ucrânia e nos idos de 1920…
Assim sendo, o que há são pistas, sem comprovação, pela impossibilidade de checagem dos dados. Nesse caso, melhor aceitar hipóteses. Pode ser que sim, pode ser que não. E evitar afirmações categóricas, como faz o biógrafo Benjamin Moser.
Voltando aos volumes de contos, convém notar que as duas edições – em espanhol e recentemente em inglês – ainda que com diferença de 13 anos entre elas, surgem quando a obra de Clarice já se encontrava editada tanto em espanhol quanto em inglês. Em espanhol, ainda ganhará, nos últimos anos, a edição da seleção de páginas femininas e das cartas de Clarice às irmãs, Queridas mías, em tradução de Elena Soler Losada, que lhe valeu prêmio “Giovanni Pontiero XII” de melhor tradução do português para o castelhano em 2012, na Espanha, e que se somou a tantas outras traduções que fez para a editora Sabina e para a Siruela que, aliás, mantém uma coleção específica para obra de Clarice.
Também é longo o percurso trilhado pelas traduções de Clarice nos Estados Unidos, iniciadas nos anos 1950, quando Clarice lá morava e teve dois contos publicados em revistas. Em seguida vieram traduções de romances, numa série iniciada por A maçã no escuro, traduzido em 1967 pelo eminente Gregory Rabassa, recentemente falecido no dia 13 de junho. Entre outras tantas traduções, ressalto a do volumoso A descoberta do mundo, por Giovanni Pontiero, que traduziu também outros livros de Clarice, como A legião estrangeira, ambos em 1992.
Mencione-se também o número de edições na França, responsável, aliás, pela primeira tradução de romance de Clarice em língua estrangeira, em 1954, Près du coeur sauvage, por Denise-Teresa Moutonnier, que culminou com a recente edição de Mes chéries, em 2015, pela Editions des Femmes, cartas traduzidas por Claudia Poncioni e Didier Lamaison. Teve papel significativo na divulgação de Clarice a escritora e pesquisadora Hélène Cixous, que a partir do final dos anos 1970 passa a escrever sobre Clarice e, em seguida, a traduzir textos de Clarice e também a criar textos inspirados na literatura de Clarice. A plateia completamente lotada do Théâtre de l’Odéon, em Paris, em 23 de março de 2015, no espetáculo Exils: Clarice Lispector, especialmente dedicado à obra de Clarice Lispector, protagonizado pela renomada Hélène Cixous, é prova do apogeu dessa repercussão, depois de décadas de trabalho seu e de outros tradutores, editores e professores em território francês.
E as edições se propagaram a tal ponto, ao longo dessas quase sete décadas, que, há quatro anos, a agência Carmen Balcells registrava traduções em cerca de trinta países, em línguas como o hebraico, o russo, o tcheco, o turco, o coreano, o búlgaro, o finlandês, entre tantas outras.
E não incluía edição caprichada de um livro em japonês, dentro de uma caixa, que ganhei de presente, editado em Tóquio, de que pude perceber apenas um “GH” entre os sinais, sem ainda saber que ali estavam também traduzidos os contos de Laços de família. Foi assim que fiquei sabendo que em 1984, bem antes dos “contos reunidos” ou de “todos os contos”, Clarice já havia chegado ao Oriente…
NÁDIA BATELLA GOTLIB é professora livre-docente da Usp, autora de Clarice, uma vida que se conta (Edusp) e Clarice fotobiografia (Edusp)
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