Privado: De corpo e alma

Privado: De corpo e alma
O filósofo Jean-Paul Sartre (Divulgação)

 

O que é feito de Sartre mais de 30 anos após sua morte? Qual o sentido de falar do filósofo francês num mundo cada vez mais distante de seu proclamado e exaltado ideal de transparência, ou seja, uma sociedade onde todo mundo pusesse as cartas na mesa, onde cada homem existisse integralmente para seu vizinho – exigência sem a qual, segundo o filósofo, jamais se logrará o estabelecimento de uma verdadeira concórdia social?

O que ficou de sua pregação libertária, numa época marcada, faz algum tempo, por uma modernização conservadora, que, envergonhada de se assumir como tal, busca revestir seu ideário com uma tintura iluminista?

Haverá lugar ainda para intelectuais de sua estirpe, dispostos a se envolver de corpo e alma nas questões políticas, alheios, portanto, à recomendação dos enciclopedistas franceses para que os filósofos se mantivessem afastados das urgências do mundo?

O tema já foi debatido numa edição de 1990 do Libération, quando, no décimo aniversário de sua morte, o jornal quis saber “o que resta de Sartre?”.

Um dos inquiridos, Aldo Rovatti, reconheceu sua atualidade, admitindo que sua obra ainda tem muito a nos dizer. Já o crítico George Steiner, numa referência ao monumental estudo de Sartre sobre Flaubert (O Idiota da Família), viu nessa biografia um novo ponto de partida para a hermenêutica ocidental.

Quem consultar os livros de Sartre logo constatará seu pouco ou nenhum apreço por esse tipo de discussão. Com efeito, ele escreveu certa feita que o escritor não deve se preocupar se sua obra vai ou não determinar um movimento literário ou se suas ideias vão ou não determinar este ou aquele “ismo”.

Não cabe ao escritor, diz, debruçar-se sobre o futuro de sua obra, quanto ao destino que a aguarda mais adiante. Era-lhe despropositado, no plano das ideias e da criação artística, o homem agarrar-se a um futuro longínquo; o importante, recomendava, é querer diariamente o futuro imediato. O resto, ou seja, o destino de uma obra ao longo dos séculos, diz “o menos provocante dos homens” (Merleau-Ponty), é com o Diabo.

Os livros, assim como o amor, a carreira que se escolhe, os projetos revolucionários e tantos outros empreendimentos humanos, começam sem que saibamos seus resultados. Desse destino comum, nem mesmo o escritor pode fugir. Como qualquer outro, o escritor (e, por extensão, os filósofos, pensadores e artistas) deve aceitar arriscar-se, perder-se. E ninguém, exceto os adversários encarniçados, negará a Sartre a coragem de ter-se arriscado em nome de suas ideias e das causas que defendia.

Houve momentos em que enfrentou perigos no sentido mais elementar e traumático do termo, quando, por exemplo, seu apartamento em Paris sofreu dois atentados a bomba levados a cabo pela Organização do Exército Secreto, grupo terrorista de extrema direita radicalmente contrário à independência da Argélia do jugo colonial francês.

Seu desinteresse pelo julgamento posterior, tanto de sua obra quanto de suas escolhas políticas, combina com o pouco valor que dava às contestações que lhe eram dirigidas, pois as via, conforme declarou numa entrevista a Michel Contat – publicada em forma de um autorretrato aos 70 anos de idade –, fundadas numa incompreensão flagrante daquilo que pretendeu dizer.

Quando se examina boa parte da bibliografia dedicada ao estudo de suas ideias, seu comentário, aparentemente arrogante, se revela certeiro.

Por não temer arriscar-se, Sartre enfrentou sempre seus “efeitos colaterais”, a despeito, como bem avaliou István Mészáros, do incômodo que é ser alvo constante de injúrias.

E os ataques que lhe dirigiram, vindos dos mais diferentes espectros ideológicos, fracassadas as tentativas de cooptá-lo, levaram o ensaísta húngaro, diante dos poderes quase miraculosos atribuídos a Sartre por causa de sua pregação contra os desatinos do mundo, a comentar ironicamente que mortal nenhum conseguiria fazer tanto.

E essa coragem pessoal de Sartre, uma de suas grandezas e aspecto dos mais sedutores de sua personalidade, incomodou desde sempre os adversários.

A avaliação crítica da obra sartriana, desde o início, vem sendo marcada por equívocos que variam da ignorância à má-fé, ou ambas combinadas (“má-fé”, aqui, deve ser entendida no sentido corriqueiro da palavra e não como aquela conduta, teorizada em O Ser e o Nada, do indivíduo que se refugia numa máscara para não assumir sua liberdade).

No primeiro caso, é comum articulistas, em tom oracular, lançarem contra Sartre as habituais acusações: complacência com o stalinismo; o irracionalismo de algumas teses de O Ser e o Nada; a inconsistência de sua tentativa de conciliar os princípios existencialistas com o marxismo; sua noção metafísica de liberdade; seu “maoismo”; sua defesa da Cuba de Fidel Castro, e por aí vai.

Pouco importa a esses críticos que, em seus permanentes embates com os comunistas, Sartre tenha, ainda nos anos 1950, denunciado os trabalhos forçados na então União Soviética; que, por causa do espírito crítico do filósofo, a Enciclopédia Soviética, ao sabor da “linha justa” dominante no momento, ora o cumulava de elogios, chamando-o de “campeão da paz”, ora o relegava à condição de “filósofo pequeno-burguês a serviço da reação imperialista”.

Pouco importava também que a mais arrasadora crítica desse desvio do humanismo marxista, o stalinismo, pode ser lida no panfleto O Fantasma de Stalin; e que Sartre rompeu com Fidel em episódio envolvendo a prisão de Herberto Padilla.

É mais do que lícito supor que quem levanta tais objeções a Sartre conheça-lhe bem a obra. Mas há “exegetas” que não avançaram no conhecimento da obra sartriana além da produção jornalística do filósofo reunida nos volumes Situações (por si só, prodigiosa).

Já os erros de má-fé, embora não exclusivos, ocorrem com certa frequência no âmbito acadêmico, maculando assim seu sempre bem-vindo senso de rigor.

É comum, nesses casos, depararmos com avaliações que, mais do que impressionistas, beiram a idiossincrasia, como, por exemplo, atribuir a recusa de Sartre do Nobel de Literatura a mero despeito, pois ele se consideraria o candidato natural à láurea, mas a Academia Sueca o preterira, anos antes, em favor de Camus.

Por uma questão de coerência ao que foi escrito até aqui, parece pelo menos imprudente garantir o caráter imorredouro da obra de Sartre (ou de qualquer outro autor), a perenidade de seu pensamento, com o mesmo grau de certeza que cada um carrega quanto à finitude de sua existência.

O máximo de vaticínio que nos permitimos é ligar sua atualidade e permanência (ou seu retorno, se efetivamente ele esteve afastado de nós) à própria necessidade, numa quadra da história marcada pela aridez de ideias, de uma volta à filosofia.

A filosofia não como vida imediata, e sim como reflexão, como consciência, pelo indivíduo, do mundo como natureza e história. Na origem desse possível retorno a Sartre, poderemos encontrar motivos na própria filosofia ou, melhor dito, em sua própria carência.

Um quadro catastrófico da realidade contemporânea, caminhando para rumos totalmente opostos à convivência humana secularmente sonhada por tantos, não explicaria a necessidade de compreensão dessa mesma realidade como requisito básico para transformá-la?

Numa fase noturna e soturna da vida humana, desfibrada pelo declínio da dimensão política e açodada pela cacofonia filosófica, as intervenções políticas e teóricas de Sartre, num panorama tão empobrecedor, fazem falta.

A filosofia, explica Hegel em suas Lições sobre a História da Filosofia, começa pela ruína de um mundo real; ela só aparece quando a vida pública não mais satisfaz e deixa de interessar ao povo. A atualidade e a permanência de Sartre, a nosso ver, explicam-se justamente pela própria necessidade de nossa época de refletir sobre si mesma.


João da Penha é filósofo, autor O que É Existencialismo (Ed. Brasiliense)

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