Da representação para a apresentação

Da representação para a apresentação

Como pensar as “ciências humanas” na era da biopolítica e da virada imagética?

Márcio Seligmann-Silva

De certo modo vivemos hoje uma espécie de segunda grande onda romântica, que vem talvez na era da morte do romantismo e do nascimento de algo que ainda não sabemos bem o que é. Daí a fervorosa recepção das ideias de autores como Schlegel e Novalis que vemos ultimamente. Em termos das ciências humanas de um modo geral e, mais especificamente, da teoria literária, os caminhos abertos por esses autores continuam profícuos.

Podemos pensar que aquilo que eles pregaram para os gêneros literários, ou seja, a crítica da razão da poética dos gêneros, se dá agora em termos de uma crítica das disciplinas, que se ampliaram nas últimas décadas em vários “estudos”: de gênero, pós-coloniais, estudos de testemunho, performance-studies, Holocaust-Studies, media-studies e todos estudos derivados da “virada culturalista”. Esta virada marcada por nossa atual prática transdisciplinar já se encontrava in nuce nos primeiros românticos, críticos da centralidade da razão e da institucionalização do saber. Mas esta mudança recente foi multideterminada. Por um lado ela resultou do esgotamento dos discursos centrais, calcados em uma filosofia da história ainda iluminista e progressista e, em grande parte, ainda tributários do positivismo. O declínio dessa episteme moderna (utópica) foi paralelo ao estabelecimento da antropologia como uma disciplina central.

Em vez de projetarmos as grandes questões da humanidade na temporalidade, elegemos agora como os eixos de nosso nossa reflexão o simples fato de sermos humanos, ou, mais especificamente: de sermos animais humanos.

Por outro lado, esse esgotamento foi fruto não apenas de um desgaste de certos padrões de interpretação, que devido à repetição começam com o tempo a perder sua força de atração, como também foi o resultado de grandes mudanças históricas: determinadas pelas grandes guerras e conflitos políticos do século 20, pela derrocada dos regimes ditos comunistas e pela criação de sociedades de bem-estar social. Não podemos esquecer que o século 20 gerou cerca de 140 milhões de mortes provocadas por violência. Neste século paradoxal surgiram também estados de bem-estar social que provocaram um boom cultural e acadêmico. Os estudos culturais são marcados por uma pulverização das disciplinas tradicionais, que haviam sido criadas no século 19 em um determinado contexto social e econômico. Esses estudos culturais ainda prolongaram em boa parte os discursos tradicionais, como por exemplo a visão de mundo marxista, que ainda determina em boa parte os estudos pós-coloniais. Eles respondem a esta situação paradoxal de uma humanidade que passou por genocídios e guerras em escala sem precedente, ao mesmo tempo em que surgiu algo próximo a uma indústria cultural sofisticada, acadêmica.

 Guinada biológica e imagética

Mas, devido à pulverização dos saberes, eles abarcaram também novos discursos, como as teorias da sociedade midiática pós-escrita alfabética, que está se gestando em meio à onipresença de imagens que voltam a determinar nossas paisagens culturais depois de séculos de domínio da escrita alfabética. Outro grande fator impulsionador de mudanças decisivas nas Letras e nas ciências humanas de modo geral é nossa atual virada biológica. Hannah Arendt nos anos 1960 e Foucault na década seguinte já haviam detectado esse percurso em direção ao biológico e nos ensinaram a ler na história ocidental, sobretudo desde a Revolução Francesa, essa intromissão do pensamento biológico colonizando nosso modo de pensar e agir na política e na economia. O pensamento biopolítico extrai sua força do “processo vital”, ou seja, “a necessidade mais poderosa de que temos conhecimento”, como formulou Arendt. Este processo vital era pensado, antes de mais nada, a partir das necessidades dos pobres que, “movidos por suas necessidades físicas, irromperam no palco da Revolução Francesa”.

Hoje, com a sintetização da vida, nos vemos diante de horizontes muito mais radicalmente biopolíticos. O homem sintetizável, um sonho sonhado pela literatura do Gênese até as ficções científicas, passando pela longa tradição mística do Golem e por Mary Shelley, esse homem hoje precisa refazer sua autoimagem e ele o faz em parte ainda por meio da literatura e das demais artes. No momento, para termos uma ideia de como nossa sociedade mais do que nunca funciona sob a égide do biopolítico, basta lembrarmos de alguns fatos: massacres e genocídios são feitos em nome da vida; os limites do humano se embaralharam com os das máquinas e de outros animais; o paradigma biológico coloniza as demais áreas do saber; nossa memória passou para a era computacional e, em seguida, para a ciber-memória; a ecologia é instrumentalizada pela grande política; os corpos são transformados em apêndices de gigantescos sistemas da indústria da saúde; propaga-se uma “nova eugenia” a partir das novas técnicas de reprodução; o Estado faz a gestão da vida por meio do controle da pesquisa genética; ele define os limites entre a vida, a pré-vida (quando o corpo amorfo ainda pode ser material para pesquisas) e a morte (lembremos dos debates em torno da eutanásia); a sexualidade é constantemente observada e regulamentada por políticas de saúde; nunca uma percentagem tão grande da população mundial esteve mantida em presídios; o saber psicanalítico foi cada vez mais reduzido a instrumento de poder da família e do Estado; as políticas dos países centrais se dão com debates em torno de questões sexuais (casamento homossexual, aceitação de homossexuais no exército etc.) ou migratórias (fechamento do primeiro mundo por trás de uma nova “cortina de ferro”); a grande parte da população mundial, pertencente às camadas mais pobres, é excluídas das “benesses” da moderna era tecnológico-biológica pós-emprego e criminalizada; o ser humano (e sua formação) é contabilizado na economia enquanto mais um dos bens de produção etc. As ciências humanas e a teoria literária precisam estar à altura destas novas paisagens biopolíticas e imagéticas que agora determinam nossa cultura.

O desafio que temos diante de nós impõe também uma releitura da história cultural do ponto de vista destas novas questões. Assim frequentamos a história literária novamente, para pensar com ela questões de gênero, raciais, a relação entre a palavra e a imagem, a história de nosso inconsciente, de nosso corpo, da pele, do falocentrismo, do estado de exceção etc. Essas questões que se colocam para nós hoje refazem nossos modos de abordar os fatos culturais. Se já não acreditamos mais em uma história cultural narrada segundo os padrões antropomórficos de uma epopeia de sua formação, por outro lado nossa relação com o passado tornou-se mais predatória: o relemos e o recriamos a partir de nosso presente, utilizando-o abertamente como tijolos para nossas novas criações poético-intelectuais. A crítica poética primeiro romântica ganhou uma qualidade inusitada agora. Não se trata mais de se pensar, no caso específico da teoria literária, em uma disciplina acessória das Letras, voltada para uma reflexão crítica que seria secundária em relação à verdadeira interpretação literária. Isto já não valia mais para os românticos de Iena, muito menos deverá valer hoje, pese todo positivismo ainda existente e nossa tendência a fetichizar os manuscritos, arquivos e biografias dos autores.

Tampouco a posição primeiro-romântica é suficiente, pois nossas questões agora são outras. Daí a necessidade que sentimos nos últimos anos de nos aproximar de outras disciplinas, para tentar dar conta das novas exigências de quem lida com a literatura. Temos bebido sem acanhamento em autores como Freud, Lacan, N. Abrahan, entre outros, na tradição da psicanálise; da filosofia frequentamos Derrida, Deleuze, Foucault, Ricoeur, Agamben, que nos trouxeram questões atuais que nos ajudam a rever nosso manancial de problemas, temas e modos de abordagem; com autores da história da arte, como A.Warburg, G.Didi-Huberman, H.Bredekamp, aprendemos a não pensar mais a história de modo linear, segundo escolas, estilos e épocas. Isto sem falar em outros autores muito lidos também por nós, como Benjamin, Flusser e Blanchot, que não se deixam reduzir a uma área ou disciplina e que nos ensinaram a realizar o desejo romântico de uma crítica poética, ao mesmo tempo que descortinaram uma série de questões que até eles estavam distantes de nossas pesquisas e inquietações. Eles permitiram um novo tipo de atualidade para nossas pesquisas, para utilizar um termo caro a Walter Benjamin.

Intérpretes da cultura

Essa atualidade é do tipo que ao mesmo tempo sabe pensar cada fato da cultura como pertencente a uma complexa rede simbólico-cultural e de poder, e também extrair este fato de seu contexto usual para iluminá-lo com uma nova luz, que revela outras leituras, liberta seus sonhos que dormitavam virtualmente neles. A abordagem de todo fato cultural deve sempre partir de uma reflexão crítica sobre a nossa atividade de intérpretes da cultura: a atualidade determina nosso trabalho. Deste modo não tem sentido se falar em uma separação entre trabalho teórico e trabalho, digamos “documental”, com a literatura ou qualquer outra manifestação cultural. Toda leitura é dependente de um modo de se recortar e interpretar o mundo. Separar teoria e interpretação é tão absurdo quanto querer se movimentar apenas no espaço, sem a dimensão temporal. Daí ser legítimo se pensar hoje que temos que ter a coragem de não só ir além da teoria literária, mas de superá-la – numa Aufhebung criativa e sempre autocrítica. Esta mesma coragem, de resto, deve nos dar ímpeto para alargar as fronteiras da própria área, que também deveria se reinventar a cada momento.

Se não deve existir uma submissão da teoria literária ao meio da literatura, que tradicionalmente é pensado como a linguagem verbal, logo, não podemos pensar mais uma teoria literária tout court e sim em uma teoria da cultura. Isso, de certa forma, é o que os leitores mais interessantes dos fenômenos culturais têm feito, como Walter Benjamin, Vilém Flusser, Marshall McLuhan, Derrida, Deleuze, Mike Bal, Aleida Assmann, Baudrillard, entre outros. Neste sentido a teoria literária e sua história são deglutidas pela teoria da cultura. Ficar preso no seu âmbito significa não reconhecer a virada culturalista e se prender a paradigmas desgastados, que não acompanham as transformações da sociedade. Assim, a teoria literária tradicional não dá conta do fim do cânone, assim como não pode, sem entrar em diálogo com outras disciplinas, lidar com a web e a virada imagética. Se é verdade que desde o romantismo não sabemos mais definir o literário e o que é arte, e de certa forma a teoria literária e a teoria da arte estavam aí para tentar procurar limites para seus objetos, agora como que passamos para o outro lado da margem: não se trata mais de procurar os limites, muito pelo contrário, passamos a valorizar a ruptura das fronteiras entre as mídia e, conseqüentemente, entre as disciplinas. Penso aqui não apenas no fato dos estudos literários terem se aberto para áreas como a do estudo de testemunho, que vai contra o ponto de vista da ideologia estética, que pensa partir do velho padrão de bom e belo. Na longa história do paragone (comparação/competição) entre as artes, desde o século 18 surgiu o sonho de um Gesamtkunstwerk (obra de arte total). Já autores como Dubos, em 1719, tentavam pensar as diferenças entre as mídia. O Laocoonte de Lessing, de 1765, foi de certa forma o coroamento dessa tradição de reflexão sobre as diferenças e limites entre as mídia. Com o romantismo esses limites foram desafiados e cada vez mais postos em questão. Com a virada midiática do final do século 20, não tem mais sentido se pensar as mídia como formas estanques.

Literatura como performance

Da mesma maneira podemos ver neste mesmo período um derretimento do modelo da imitatio, uma passagem da representação para a apresentação, que tende para a performance e para se ver a arte e a literatura como eventos. Esta apresentação passa a ser parte integrante da identidade do homem moderno: ele como que precisa da arte para expressar tudo aquilo que a vida social lhe cobra em sacrifícios pulsionais. A esfera das artes passa a ser, desde o romantismo, uma extensão de nossos corpos e não mais pode ser vista, idealisticamente, como fruto de nosso gênio. Esta arte e literatura cada vez mais corpóreos não por acaso vão inspirar muito do que foi escrito dentro do “gênero” psicanálise no século 20. Freud e Lacan são dois grandes leitores não só de nossas “almas”, mas também de literatura.

A relação da literatura com a vida tem um sentido complexo demais para ser apreciado pela teoria literária tradicional que descende tanto da poética como da estética e da hermenêutica. Sem contar o secular compromisso da teoria literária com a ideologia nacionalista. Esse compromisso deixou marcas profundas nos nossos hábitos de leitura e interpretação que dirigem até hoje boa parte do que se produz dentro das academias.

As narrativas das formações nacionais mal começaram a ser desconstruídas: ainda existe muito a ser feito nesse campo. Não se trata mais apenas de se ampliar o escopo das “ciências auxiliares” da teoria literária, mas de conseguir se livrar dessa rubrica em direção a outras mais condizentes com nossa realidade cultural. Apenas essa nova perspectiva das ciências humanas poderá assumir na sua radicalidade a promessa contida em seu nome e pensar o político à luz do que se passa com nós nesta era biopolítica. Era na qual, como escreveu Foucault: “As disciplinas do corpo e as regulações da população constituem os dois pólos em torno dos quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida.” Para este autor agora a vida é encarada nesta duplicidade: como biologia (fora do histórico) e como técnica de saber e de poder históricos. As ciências humanas fazem parte deste jogo biopolítico na medida em que elas promovem a construção de saberes que legitimam – ou contestam – poderes. Enquanto continuarmos a pensar as humanidades como um patrimônio ético autocomplascente estaremos agindo como cegos caminhando em um campo minado.

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