Da cultura afirmativa à subjetividade criativa

Da cultura afirmativa à subjetividade criativa

Um breve panorama das reflexões estéticas de Marcuse

Rodrigo Duarte
 

A reflexão sobre as artes sempre teve destaque na obra filosófica de Marcuse, o que atesta o tema de sua tese de doutoramento, defendida em 1922, em Freiburg, intitulada O romance de artista alemão (Der deutsche Künstlerroman), trabalho que era fortemente influenciado pela Teoria do romance, de Lukács, e pelas Preleções sobre a estética, de Hegel. Dessa época até 1929, quando se estabeleceu novamente em Freiburg, Marcuse viveu em Berlim – onde nascera em 1898 –, participando ativamente de círculos intelectuais em que a estética e a política (e a correlação em ambas) constituíam o tema principal de discussão.

O motivo do retorno de Marcuse a Freiburg foi o fascínio que o pensamento de Heidegger tinha lhe causado, mas, por volta de 1932, ele se decepcionou com o autor de Ser e tempo e se aproximou de Max Horkheimer, o que, na prática, significou também um reforço no antigo pendor pela estética, já que o interesse teórico do “Instituto de Pesquisa Social”, dirigido por esse último, tendia cada vez mais para questões de filosofia da cultura e da arte. O resultado mais sensível dessa influência, que indica também o estabelecimento de um pensamento próprio de Marcuse, é o ensaio “Sobre o caráter afirmativo da cultura”, o qual trata do comprometimento histórico da alta cultura com as necessidades ideológicas da burguesia setecentista em ascensão, na medida em que a arte erudita desviava, segundo Marcuse, a atenção da maioria do povo da situação de miséria em que se encontrava, ajudando, com isso, a consolidar o poder da nova classe dominante.

Nesse ensaio, Marcuse relembra inicialmente a concepção da Antiguidade Grega, segundo a qual as manifestações culturais se encontram numa esfera separada, que transcende o âmbito da reprodução da vida e que divide a sociedade entre uma esmagadora maioria que deve realizar o trabalho físico e os poucos escolhidos que têm o ócio (em grego: Skolé, de onde veio a palavra latina schola) para se dedicar às coisas do espírito: ao verdadeiro, ao bem e ao belo. Nesse período da história, o próprio discurso das classes dominantes não esconde a concepção de que existem, por um lado, pessoas inferiores, às quais cabe a dura labuta física, e, por outro lado, seres humanos superiores – responsáveis pelas atividades intelectuais que propriamente engrandecem a humanidade.

Cultura afirmativa

Embora as origens da “cultura afirmativa” se encontrem nessa cisão, ocorrida já na Grécia antiga, entre a produção material da vida e as realizações do espírito, o interesse principal de Marcuse recai na Idade Moderna, quando, por uma exigência de estratégia ideológica, o discurso da nova classe dominante – a burguesia – não pode mais, em sua pretensão de universalidade, excluir abertamente as classes subordinadas do acesso aos bens culturais, principalmente porque não está seriamente em questão a melhoria efetiva de suas condições materiais de vida: “Na época burguesa a teoria da relação entre o necessário e o belo, entre trabalho e prazer experimentou modificações decisivas. Em primeiro lugar desapareceu o modo de ver segundo o qual a ocupação com os valores supremos seria apropriada como profissão por determinados setores sociais. Em seu lugar surge a tese da universalidade e validade geral da ‘cultura’. A teoria antiga afirmara de boa consciência que a maioria dos homens são obrigados (sic) a despender sua existência com a provisão das necessidades vitais, enquanto uma pequena parcela se dedica ao prazer e à verdade. Por menos que tenha se modificado a situação, a boa consciência desapareceu” (Sobre o caráter afirmativo da cultura [CA] in “Cultura e Sociedade”, p. 94).

Na medida em que se constitui numa perfeição abstrata, a qual se encontra, por definição, para além do reino do esforço físico com vistas à reprodução da vida, a fruição estética teria vindo a calhar para os objetivos políticos da burguesia, que comportam uma admissão apenas simbólica das classes desfavorecidas, ao lado de sua exclusão factual das benesses do progresso econômico. É a partir dessa constatação que Marcuse define claramente o que ele chama de “cultura afirmativa”: “(…) é aquela cultura pertencente à época burguesa que no curso de seu próprio desenvolvimento levaria a distinguir e elevar o mundo espiritual-anímico, nos termos de uma esfera de valores autônoma, em relação à civilização. Seu traço decisivo é a afirmação de um mundo mais valioso, universalmente obrigatório, incondicionalmente confirmado, eternamente melhor, que é essencialmente diferente do mundo de fato da luta diária pela existência, mas que qualquer indivíduo pode realizar para si ‘a partir do interior’, sem transformar aquela realidade de fato” (CA, p. 64).

No contexto dessa discussão, a noção de “alma” assume a função de correlato subjetivo daquilo que é a cultura afirmativa no plano da objetividade. A raison d´être dessa correlação é que a experiência, realizável por qualquer indivíduo, de que ele possui em sua interioridade um âmbito inexpugnável, no qual pode estar só consigo mesmo e que pode ajudá-lo a suportar os embates que o trabalho alienado impõe à sua pessoa, é o solo subjetivo da propagação da idéia de que as mais sublimes manifestações culturais estão acima dos maiores sofrimentos e, por outro lado, acessíveis apenas àqueles capazes de compreendê-las ou pelo menos reconhecer o seu valor: “A alma prospera no interior do indivíduo apesar de todos os obstáculos e desvios: o menor dos espaços vitais é suficientemente grande para poder se estender ao infinito plano das almas” (CA, p. 109).

Arte como resistência à reificação

Embora em “O caráter afirmativo da cultura” haja passagens nas quais Marcuse reconhece que o “idealismo burguês não é somente uma ideologia” e que “a cultura afirmativa foi a forma histórica em que se preservaram as necessidades dos homens que iam além da reprodução da existência” (CA, p. 99)  e que, portanto, “o direito se encontra do seu lado” (CA, p. 119), prevalece, nesse ensaio, a idéia do papel ideológico e até mesmo opressor desse modelo de cultura. Quase duas décadas depois, em Eros e civilização, diferentemente do texto publicado em 1937, Marcuse atribui à arte a capacidade de se transformar num fator de resistência contra a reificação. Para essa substancial mudança na maneira de ver a arte culta contribuíram fatores de ordem biográfica e intelectual, como, por exemplo, o contato mais direto com a cultura de massas no exílio norte-americano (e sua comparação com a arte culta européia) e a recepção da psicanálise, como trai o próprio subtítulo da obra de 1955: “Uma investigação filosófica em torno de Freud”.

Nos capítulos iniciais de Eros e civilização, Marcuse apresenta as condições e motivações que ajudaram a estabelecer o princípio de desempenho como versão tipicamente ocidental do princípio de realidade, o qual assume uma dimensão tanto mais opressiva quanto mais “avançado” é o capitalismo. Em seguida, ele apresenta (nos capítulos 7 a 9), os elementos que poderiam ajudar a estabelecer uma nova concepção de sociedade e cultura, para além das coerções da produção e reprodução materiais.

Nesse processo, destaca-se o conceito – de origem freudiana – de “fantasia” como algo que retém, mesmo através da sociedade cada vez mais repressiva, um pouco da liberdade anterior ao estabelecimento da civilização com suas exigências de recalque das pulsões, tendo, portanto, uma importante função mediadora e até mesmo preservadora: “A fantasia desempenha uma função das mais decisivas da estrutura mental total: liga as mais profundas camadas do inconsciente aos mais elevados produtos da consciência (arte), o sonho com a realidade”. Uma diferença importante de Marcuse com relação a Freud é que aquele, não obstante sua concordância com a descrição desse último sobre as características e modus operandi da fantasia, a compreende como uma força potencialmente transformadora da sociedade, discordando de Freud quanto à ênfase no seu aspecto apenas “homeostático”, i.e., conservador das psiques humanas numa ambientação que lhes é sistematicamente hostil: “A arte é, talvez, o mais visível ‘retorno do reprimido’, não só no indivíduo, mas também no nível histórico-genérico. A imaginação artística modela a ‘memória inconsciente’ da libertação que fracassou, da promessa que foi traída. Sob o domínio do princípio do desempenho, a arte opõe à repressão institucionalizada a ‘imagem do homem como um sujeito livre; mas num estado de não-liberdade, a arte só pode sustentar a imagem da liberdade na negação da não-liberdade’” (EC, p. 135).

Socorro à grande arte

É interessante observar que, enquanto Eros e civilização ostenta um tom otimista – mesmo que muito crítico –, manifesto na possibilidade de a própria vida vir a se tornar arte numa sociedade que tivesse superado a reificação característica do capitalismo monopolista, outra obra de Marcuse que teve grande repercussão, Homem unidimensional (1ª edição de1964), apresenta um enfoque bastante sombrio do mundo contemporâneo e das perspectivas de superação de seus impasses. No contexto da crítica implacável ao que ele chama de “dessublimação repressiva”, i.e., a permissividade (principalmente moral) como modo de manipulação estético-política, Marcuse retoma a idéia – negativamente introduzida no texto sobre o caráter afirmativo da cultura – de que a grande arte (burguesa), com suas construções idealizadas, estabelece um âmbito separado da vida prosaica, totalmente condicionada pelas necessidades imediatas da sobrevivência física.

Mas à diferença do ensaio de 1937, Marcuse atribui a esse fato uma conotação totalmente positiva e isso porque a tendência à superação da penúria econômica nas sociedades de capitalismo mais desenvolvido faz com que os mundos imaginários criados pela arte não pareçam mais algo desejável, porém inatingível; pelo contrário, a sociedade “real” parece já os ter superado e eles adquirem a aparência de algo simplesmente arcaico e passadista. Diante disso, o brado de Marcuse, agora, é de socorro à grande arte, que, ao ser superada pela realidade parece não ter mais razão de existir: “A característica nova de hoje é o aplanamento do antagonismo entre cultura e realidade social por meio da obliteração dos elementos de oposição, alienígenas e transcendentes da cultura superior, em virtude do que ela constituía outra dimensão da realidade. Essa liquidação da cultura bidimensional não ocorre por meio da negação e rejeição dos ‘valores culturais’, mas por sua incorporação total na ordem estabelecida, pela sua reprodução e exibição em escala maciça” (A ideologia da sociedade industrial, p. 69-70)

Prosseguindo com a reflexão sobre as questões estéticas, Marcuse produziu, na década de 1970, textos importantes sobre o tema, como, por exemplo, o capítulo “Arte e revolução” de Contra-revolução e revolta, no qual o filósofo parece sintetizar todas as posições por ele assumidas nas reflexões anteriores sobre arte, beleza e congêneres. Primeiramente, Marcuse faz referência à necessidade de uma “dessublimação” (não-repressiva, entendida como uma espécie de “mundanização”) da arte, tal como vimos explicitamente colocada no capítulo 9 de Eros e civilização; logo a seguir, o autor retoma a posição assumida em Homem unidimensional, segundo a qual a forma é o elemento que preserva a verdade das obras de arte, mesmo (talvez principalmente) sendo burguesa sua origem de classe. Em terceiro lugar, Marcuse se refere explicitamente ao “Caráter afirmativo da arte” no sentido de indicar o âmbito da alta cultura como um domínio separado da “prosa da vida”, numa alusão ao termo empregado por Hegel.

Contra a estética marxista

No entanto, a feição definitiva do posicionamento de Marcuse sobre as artes e a cultura é apresentada em A dimensão estética (The aesthetic dimension, a partir do original alemão Die Permanenz der Kunst). Assim como se assinalou a influência de acontecimentos biográficos e históricos na mudança da estética de Marcuse rumo à concepção de Eros e civilização, vale apontar aqui que as idéias centrais de A dimensão estética possuem íntima conexão com o reconhecimento, por parte do filósofo, de que suas esperanças na capacidade de as forças sociais progressistas dos anos de 1960 iniciarem a concretização da utopia de Eros e civilização não se confirmaram. Segundo ele, “o movimento dos anos sessenta levou a uma transformação radical da subjetividade e da natureza, da sensibilidade, da imaginação e da razão. Abriu uma nova visão das coisas, permitiu o ingresso da superestrutura na base. Hoje o movimento está enclausurado, isolado, na defensiva e uma burocracia esquerdista embaraçada apressa-se a condenar o movimento como elitismo estético, impotente” (A dimensão estética [DE], p. 40).

Diante disso, pode-se reconhecer em A dimensão estética uma posição bem marcada a favor da subjetividade criativa contra a estética marxista ortodoxa, que condena aquela como expressão pequeno-burguesa. Ao contrário do que propala a ortodoxia marxista, segundo Marcuse, a criatividade dos artistas, na medida em que estabelece no seu produto um âmbito fechado em si mesmo, quebra o monopólio da ordem existente de determinar o que seja “realidade”: “Assim, a arte cria o mundo em que a subversão da experiência própria da arte é reconhecida como uma reprimida e distorcida realidade existente. Esta experiência culmina em situações extremas (do amor e da morte, da culpa e do fracasso, mas também da alegria, da felicidade e da realização) que explodem na realidade existente em nome de uma verdade normalmente negada ou mesmo ignorada. A lógica interna da obra de arte termina na emergência de outra razão, outra sensibilidade, que desafiam a racionalidade e a sensibilidade incorporadas nas instituições dominantes” (DE, p. 19).

A importância concedida em A dimensão estética à “lógica interna da obra” desemboca na concepção da “forma tornada conteúdo”, i.e., num modo de sua compreensão no qual os temas, motivos e assuntos explícitos das obras perdem relevância em benefício do trabalho de estruturação criativa propriamente dita, realizado pelo artista (DE, p. 20). Também esse ponto de vista distancia-se claramente da estética marxista ortodoxa, segundo a qual a arte revolucionária é definida já pela temática: dramas pessoais, reflexões sobre a condição humana em geral deveriam ser, enquanto temáticas “pequeno-burguesas”, preteridos em favor de enfoques da luta do proletariado pela conquista do poder etc.

Superar o liame entre arte e práxis revolucionária

Para Marcuse, o interesse recai não nesse liame superficial entre a arte e a práxis revolucionária, mas no poder daquela de evocar um princípio de realidade inteiramente outro com relação ao vigente, numa espécie de “alienação”, à qual, no entanto, o filósofo atribui um sentido positivo, de retirada estratégica do mundo reificado da exploração do trabalho e da manipulação das consciências. Enfatizando essa retirada, Marcuse se reporta à sua antiga expressão sobre o “caráter afirmativo da arte”, aqui com o significado de “empenhamento da arte no Eros”, i.e., seu enraizamento na vida libidinal no sentido de valorização das forças vitais e de resistência contra os poderes que, desde tempos imemoriais, ameaçam a plena realização da humanidade (DE, p. 22). Isso não significa, no entanto, que a arte seja importante apenas na autoconservação da espécie, porque, na verdade, há nela, segundo Marcuse, um “imperativo categórico” próprio, segundo o qual, “as coisas têm que mudar” (DE, p. 24), o que, como já se disse, não ocorre através de um engajamento político explícito nas obras – como, por exemplo, da temática revolucionária –, mas pelo trabalho formal. Quanto a isso, Marcuse acrescenta que a apresentação verdadeira de interesses e visão de uma classe (mesmo que revolucionária) não torna necessariamente uma obra boa (DE, p. 26), reafirmando adiante que as boas obras em que aparece temática política não são boas por esse aparecimento, mas pela confrontação entre o mundo particular criado pelo construto estético e a realidade imediatamente dada (DE, p. 35). Se esse posicionamento lembra o da estética adorniana, isso não é casual. Afinal, apesar as diferenças entre as concepções estéticas de ambos os autores, Marcuse declara explicitamente nos agradecimentos de A dimensão estética: “A minha dívida à teoria estética de Theodor W. Adorno dispensa-me de qualquer agradecimento específico” (DE, p. 10).

Rodrigo Duarte é professor de filosofia da UFMG, autor de Teoria crítica da indústria cultural (Ed. UFMG) e Adorno/Horkheimer: Dialética do esclarecimento (Jorge Zahar), co-organizador de A dimensão estética: 50 anos de Eros e Civilização de Herbert Marcuse (Ed. Belo Horizonte) e presidente da Associação Brasileira de Estética

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