Três corpos oceânicos: sobrevida, amor e política
(Arte: Revista Cult)
No fatídico ano de 2016, conversando com a amiga e poeta Maíra Ferreira sobre a presença considerável de mulheres na poesia brasileira contemporânea e, especificamente, das que estão escrevendo nas redes sociais e fazendo do Facebook um meio de divulgação em que a poesia pode ser publicamente disponibilizada e compartilhada, tornando-se assim uma rede de leitores que se deixam afetar por ela, Maíra me contou de seu desejo de criar uma revista para publicar poetas mulheres inéditas em livros. Tivemos a ideia de fazer um blog. Maíra sugeriu o nome Oceânica.
Até agora, publicamos antologias de Luana Muniz, Taís Bravo, Marieli Becker, Mariana Imbelloni, Ana Thomazini, Anna Apolinário, Carla Diacov, Bruna Mitrano, Rita Isadora Pessoa e Yasmin Nigri (fiz uma apresentação dos poemas de Yasmin para a Escamandro). Na impossibilidade de falar de todas as antologias, falarei aqui apenas de algumas.
“O exílio é buscar saídas.”, diz Taís Bravo no poema “Essa cidade”. Neste verso, o exílio aparece em uma diferença talvez inabitual: ele não é mais estar sem saída por haver a pressuposição de um lugar originário de pertença. É preciso partir do exílio como condição, já que, desde Platão, a poesia é o lugar do exílio. Na falta de saída, a saída é não ter saída e, por isso, buscar saídas, estar aberto, incontornavelmente, ao fora. O corpo lançado na cidade deseja ser amado na imprevisibilidade do/e no inóspito:
o motorista me responde que sim
é direto
é uma satisfação
poupar alguns minutos
em trânsito
tenho um pé na escada e o outro no chão
na hora que pego o impulso
reparo
a Central molhada
sem proteção
nesse instante desejo:
ser amada aqui
nesse lugar
nessa língua
pela vibração em que respondo
obrigada
e saco meu Bilhete Único
uma série de gestos
que domino
sem hesitar
tento te ver
nesse contexto
desarmado
o amor talvez seja
sempre quebrar
os hábitos
no entanto sustentam
um rumo disponível
às vezes a repetição
não é
monotonia
não é
falta
pode ser
um guia
pode ser
desenhar um mapa
com a carne
dos dedos
toco as teclas
sem enxergar
suas letras formo
palavra
passos
de dança
memória
física
a história
é um sopro encarnado
entre paredes e línguas e peles
ser amada aqui
em uma cidade que exige
que sua
que avacalha
que muda
as linhas
a cada 3 meses
e sufoca a rotina
e gargalha da estabilidade
quando subo no 315 Central–Recreio é uma vitória
porque sabe-se lá até quando
sabe-se lá quantas novas linhas
a extinguir narrativas
então quando subo no 315 Central–Recreio
enxergo que grande parte do meu ser não é
feito de sublimações e essências
grande parte do meu ser se faz
entre essas linhas
que traço e apago diariamente
pela cidade
Alvorada–Del Castilho–Cinelândia
Rua da lapa–Cinelândia–Central–Recreio
grande parte do meu ser é
deslocamento
automático
como meus dedos
a dançar palavras
sobre as teclas
quase porque às vezes faísca
espera trânsito barracos
e desencontros
hoje no 614 Alvorada–Del Castilho
vi um rapaz confuso e o motorista indisposto
vi uma garota se aproximar talvez oferecendo
ajuda
eles conversam claramente ele não é daqui
ela parece mais certa
do que faz
imagino se
pela ajuda vão iniciar um contato trocar contato marcar uma cerveja começar algo
então entendo que na verdade já existe
são algo
um casal nesses tempos nunca se sabe o termo certo mas são
algo
ela só foi ajudar depois de um tempo porque está magoada com algo
depois dos minutos em que se explicam
passam o resto da viagem em silêncio
um ao lado do outro
pelo silêncio compartilhado vejo que são
algo
na hora de descer a fila se forma com antecedência
ele se aproxima muito com indiferença
ela permite
ela desce em passos rápidos ela sabe
pra onde ir
ele segue
afobado
caso a perca não sabe
para onde seguir em Del Castilho
eles ficam
na fila para comprar um bilhete
sigo em passos de quem sabe o caminho mais do que gostaria
então quando subi com certeza no 315–EXPRESSO
a repetição do impulso
sem hesitar
o amor é sempre
quebrar hábitos
se fazer estrangeira
em terras sem raiz
é atalho
no mais íntimo
dos movimentos
guardados de cor
entre língua pele e paredes
desejo
laço que faz
dos pontos
de passagem
escolha
Guardo de cor este começo: “o motorista me responde que sim”. Não há como não trazer no corpo ao menos este verso que prescinde de explicitação política. Entre “o motorista”, “a Central”, “o Bilhete Único” e as linhas de ônibus, o que é traçado entre suas quebras é a possibilidade do contato e do amor. Amor, ética e política se entrelaçam neste poema que é escuta e narrativa de gestos do corpo, traçando-se nos meios coletivos de locomoção, em “pontos/ de passagem” onde multidões transitam automaticamente no Rio de Janeiro – o lugar do exílio, cotidianamente, o lugar da exclusão (política, econômica e social). Não há outra saída senão o corpo em trânsito cuja origem é apagada dando lugar a um alguém que se faz entre deslocamentos. O ônibus torna-se o lugar possível do desejo de ser amado aqui e agora. Ler este poema com ironia seria inviabilizar a possibilidade do amor no inóspito. Na inviabilidade, na indiferença e na intransitoriedade destes tempos, o poema torna-se o reduto possível da democracia, da sobrevivência (a escrita, também sobrevivente, se faz então possível entre os gestos que se perdem entre uma linha e outra, inscrevendo-se na possibilidade de perda ao mesmo tempo em que se sustenta nela), da transitoriedade, da diferença, trazendo, na repetição dos gestos automáticos, um deslocamento inesperado: o amor como quebra do hábito.
O amor sempre passa ao largo da História. Sabemos do terror que se repete nos tempos, mas, se há uma coisa que raramente sabemos da história das minorias e dos vencidos, é o amor, isso que também desloca. Neste poema, há algo em comum entre história e amor: pele, paredes e língua comparecem nos dois, deslocadas de posição. História e amor se dão entre o corpo e o corpo da cidade. Ambos se inscrevem no corpo como aquilo que passa pelo toque, seja quando somos nós que sentimos e falamos, seja quando são os muros ou as paredes que falam conosco, por nós e para nós. Há uma intimidade entre história e amor que o poema não só instaura como também anuncia a necessidade de que não os vejamos separadamente. Se a História que vem sendo feita majoritariamente é do cerceamento do amor, o poema nos avisa que há três instâncias que os unem.Restituir à História o que lhe é próprio, talvez seja traçar insistentemente isso que ela vem excluindo, mas que se dá diariamente entre nossas peles, línguas e paredes. As linhas deste poema, ao traçarem história, traçam amor, e vice-versa. Nele, o desejo existe e resiste,como provavelmente a única dignidade que resta nestes tempos.
Rita Isadora Pessoa, assim como a poeta que virá em seguida, Bruna Mitrano, tiveram poemas publicados na Oceânica semanas antes do lançamento de seus livros de estreia. Rita, com A vida nos vulcões (editora Oito e Meio), traz, em seus versos-marés-constelações, pó e chumbo, fendas, “galáxias em colapso”, “falha sísmica”, “declives declínios”, o perigo dos “desastres calculados” na “geografia impossível” dos mapas, “o movimento retrógrado/ de mercúrio” e “sobretudo as revoluções”: “ressuscita antígona” a vingar a morte das “heroínas trágicas”, dá vida a uma “ex-vênus corrompida, antimusa”, “[vê] sereias no asfalto”, “bailaoras com mãos/ ascendendo e dedos/ circulares: braços/ sinuosos acenando/ a tragédia/ que haveria de vir”.
Seus poemas mobilizam os mínimos e frágeis e os estratosféricos, desmesurados e resistentes corpos: o macro e o micro, saturno e o grão, a sombra do cosmos e o facho de luz do “inicinho da amanhã”, as montanhas e os moluscos, a curva do rio e os vasos da perna. Dos corpos que orbitam a Terra e dos que sobrevivem nela, seus desastres: o corpo que cai (em “uma dança sísmica”) na vida e faz da queda a sua possibilidade e a sobrevivência do outro e o amor.
escrevo teu nome no grão
por tudo o que tomba
sem se reerguer sem
sequer lembrar da queda
pela sombra
que nunca é proporcional
à luz
pela sombra
que não é proporcional
de maneira alguma
à luz
te escrevo o nome
onde se escondem
as montanhas
onde o sinal do celular
n ã o pega
nãopega nãopega n-ã-o pe-ga
escrevo ainda
com a tinta
que extraio dos moluscos
que aparecem mortos
pela praia
no inicinho da manhã
pelo esquecimento compulsório
da
q
u
e
d
a
“escrevo o teu nome
no grão de arroz”
porque saturno retorna
fora de hora
e a sombra não é proporcional
ao facho de luz
que te acompanha
[e é um absurdo que a luz
produza tantos monstros
com tamanha facilidade]
porque há sim pulsação nos vasos
altamente periculosos
das minhas pernas
e por tudo aquilo que tomba
sem levantar-se:
toma este grão luminoso
onde te escrevo o nome
devidamente instalada
na virada invisível
do rio
Do desastre dos corpos, o acidente nos corpos é inevitável, mas o que se abre de uma erosão nas paredes de um rio, ou de um “acidente epidérmico”, também é um desvio. O acidente nada mais é que um ensaio para um desvio. Uma passagem, um novo impulso ao movimento, um deslocamento: o poema inclinado para o acidente é o poema cujo desvio o constitui e o descentra, fazendo do fracasso a sua força-motriz.
Escrever por e para “tudo o que tomba/ sem se reerguer” é escrever um poema inclinado para o acidente. Isto é um gesto político. Como quem tenta tocar o que tombou, o que sucumbiu, sustentando a sobrevivência e o amor na precariedade do mínimo e na possibilidade de apagamento: “escrevo teu nome no grão”. Escrever o nome é escrever em nome do outro com o substrato de um corpo ainda mais precário e frágil que amanhece morto (“escrevo ainda/ com a tinta/ que extraio dos moluscos/ que aparecem mortos/ pela praia/ no inicinho da manhã”). Fazer do substrato do corpo, ainda mais precário e frágil que tombou, a matéria-prima de escrita ao outro, na impossibilidade mesma de traçar o nome do outro. Afinal, é impossível escrever um nome em um grão.
A poesia de Bruna Mitrano gira à altura de tudo que grita à margem da vida. Ela encosta no “rasgo imprevisto na carne”, “desconjunturando a barbárie desses tempos/ inaudíveis.”. Começando e terminando com dois retângulos negros que cobrem as páginas brancas e antecedem qualquer palavra, seu Não (editora Patuá) é uma janela para a escuridão do tempo e da existência. Fitamos o escuro: “abro minha guerra./ estou na sua frente./ me olha.”. Não é um convite: é a realidade que se impõe. “É nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?”. Da (impossibilidade da) visão ao tato: “cego que com olhos de não ver/ tateia os gemidos riscados no chão”. “Não há o que se ver que não sobrecarregue a carne”:
na estrada de terra
da cidade vazia
a criança preta empunha um pedaço de pau.
ela está nua e vê-se um corpo tão prematuro
quanto ruínas.
a boca intumescida da criança preta gutura
morte ao rei!
e na aridez inalcançável dos pés descalços
resiste
a criança tão criança e velha,
sozinha e livre –
o sino da igreja abandonada toca todo dia na hora errada.
Esta poesia “sustenta os olhos de pavor/ diante do inevitável de ser bicho”. Nela, o animalesco é dado como condição, seja quando a vida é rebaixada à objetificação do ser humano por um poder soberano, seja quando não perdemos de vista a dimensão animalesca que todo corpo possui. No primeiro caso, a vida é condenada como “frutas que nasceram podres/ as que nasceriam para sempre”, como o corpo prematuro da criança preta cujo nascimento já é ruína. No segundo, o “inevitável de ser bicho” toca no mais instintivo da vida: “um bicho se olha pro outro enquanto come, é sobrevivência/ não é competição”.
A dimensão animal nos coloca incessantemente na condição de outro, impuro, informe, estranho, hostil. Longe de aludir a uma identidade, essa dimensão se abre a uma alteridade que implica um gesto de amor: “e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,/ lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor,/ amornaram seus dedos.”. Abre-se a uma hospitalidade para com a matéria impura e informe expelida, a um acolhimento dos corpos estranhos que vem também do outro: é no gesto do outro acolher esta matéria – “tanto amor” –, no tato, no toque, no contato, que se vislumbra, que se supõe as linhas que traçam o outro.
Fazendo a língua dobrar-se sobre si mesma, esta poesia toca as substâncias mais ardidas. Porque a linguagem de uma língua que não se desmorona nem se dobra é sempre insuficiente. No desmoronamento da língua, vai-se às ranhuras do outro (“o encontro é quando lambe o racho da minha sola”), à ferida do outro que permanece não cicatrizada (“roçar a língua na ferida não cicatrizada dum desconhecido”), aos buracos que constituem os abismos do corpo: “a língua desmoronando em cada dobra, enquanto você ardia por toda a dor do mundo.”. No limite, “na dobra esgarçada”, aquilo que se sustenta na fragilidade logo antes de desmoronar parece inteiro, intacto, livre de perigo: “a gota incólume,/ na dobra esgarçada/ parece amor.”. Sustentar o amor em uma gota – em um tempo em que “a tragédia [está] pronta pra despacho” –, porque “em toda alteridade resta um pouco de fim.”.
Se tudo que é outro aponta para a finitude, se ainda “algo haveria de se perder, sempre, no vácuo entre duas mãos sobrepostas”, talvez seja por isso mesmo que “as mãos, não soltamos”. É difícil saber se estamos tão sós “quando a espera é o grito”. O som disforme como um grito, como um som gutural, é o inarticulado, o desajuste que não cabe nas palavras, estando antes delas ou excedendo a elas. Este som inarticulado emitido pelo corpo-ruína é o sino que toca todo dia na hora errada anunciando repetidamente o desajuste do tempo: “vão queimar a vida!”.
Na página ao lado, o desenho de uma mulher com a unha na garganta arranha o grito ou arranha a garganta com a unha sufocando o grito? Versos ou desenhos, os traços de Bruna ocupam páginas, paredes e muros, ganham corpo em cima do que é precário e a partir da precariedade – isso que é dor e é também sobrevida. Se “o enquadramento impreciso” nos leva da visão – ou da impossibilidade dela – ao tato, seguimos tocando onde o outro queima: “os amantes de rua/ mutilados/ dançam sobre a brasa”; “o corpo ainda sente/ curva-se ao inevitável/ tomba no meio da rua”. Quando a espera é um grito, “é preciso fugir pelas beiradas”: “por um grito de não”.
Em sua biografia, Bruna Mitranose diz: “favelada, professora da rede pública e mestre em Literatura Portuguesa (UERJ)”. Em um passado recente, a poesia esteve muito atrelada a diplomatas, burocratas, embaixadores, funcionários públicos. Hoje, o alcance da poesia faz com que seja possível haver professoras e faveladas poetas. Se há uma amplidão social na poesia, isso não deve ser desvinculado de práticas políticas realizadas durante treze anos no Brasil. Transitar entre periferia, academia e poesia nunca foi a regra neste país. A garantia do livre-trânsito e a resistência ainda são lutas de cada um destes meios.
Em 2016, um golpe tirou uma mulher da presidência da república. A política não está à altura da poesia. Nunca antes neste país existiram tantas mulheres poetas. A política está aquém tanto da poesia como do amor porque ambos são o meio cujo princípio é o outro, o meio potencial de abertura ao desconhecer-se, ao deslocamento, ao convívio entre diferenças, ao encontro dos corpos. Expus aqui três corpus dentre uma imensidão de tantos outros corpos que transitam nesta cidade, que correm riscos porque existem, corpos que, por existirem, andam e caem e naufragam e emergem e sobrevivem com o que há de mais frágil e resistente.
Danielle Magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. É graduada em História (UFF), mestra em Teoria Literária (UFRJ) e atualmente cursa o doutorado também em Teoria Literária (UFRJ), dedicando-se ao estudo sobre poesia brasileira contemporânea. Colaborou com revistas literárias como Mallarmargens, Polichinello, Plástico Bolha, Pittacos e Germina. Publicou “Quando o céu cair” (megamíni/7Letras, 2016). Edita, com Maíra Ferreira, a revista Oceânica.