Cuba, sem perder a ternura

Cuba, sem perder a ternura
(Foto: Stéphan Valentin/Unsplash)

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“Onde há vida há esperança”, nos disse Henri, motorista de taxi alternativo em Havana. Ele dirige um carro alugado, fabricado no final dos anos 1940, tem dois filhos e sua mulher está grávida novamente. A frase se refere à situação moral e econômica da ilha – ambas vêm se agravando nos últimos anos e sobretudo no pós-pandemia. Henri está enganado.

Sim, escrevo de Cuba, onde vim passar o carnaval acompanhado de meu filho Miguel. A ideia foi dele. Eu encampei. Tantas vezes escutei “vai pra Cuba” nos últimos anos, especialmente no período eleitoral, que acreditei que estava mesmo na hora de vir. Porém, ao contrário do que pretendiam os que me recomendaram a viagem, não vim exilado. Curioso como aqueles que me mandaram para cá falavam como se fossem o General Golbery encarnado em agente de viagens e detivessem o poder de um ato institucional, como se fossem mais brasileiros do que eu. Memória herdada do lema da ditadura militar, “Brasil, ame-o ou deixe-o”, como se ser de esquerda significasse amar menos o país onde nasci, me formei gente e onde pago meus impostos, e por isso eu teria menos direito à cidadania.

Uma vez em Havana, entendi que quando falamos em Cuba falamos em coisas diferentes. Eles falam de um país comunista no qual a pobreza é universal, onde produtos básicos de higiene e alimentação são distribuídos com restrição para o cidadão comum, onde não há liberdade de expressão e onde o governo é acusado de ter, há tempos, abandonado a população. Eu vim conhecer um país que sempre despertou meu interesse por ter promovido uma revolução que favoreceu o acesso de todos à educação – básica e universitária – e à saúde, que constituiu uma sociedade não violenta e não racista, que tem um povo alegre e uma música contagiante, além de praias incríveis, charutos e o ótimo rum utilizado no preparo dos célebres mojitos, daiquiris e, claro, cubas libres. Há um pouco de cada uma dessas perspectivas na Cuba que conheci.

Após mais de sessenta anos da revolução, Habana Vieja tem ruas que remetem a uma cidade que saiu de uma guerra recente (que não houve) e que retratam um tecido social bastante esgarçado. As pessoas habitam prédios semidestruídos, não há comida suficiente para as famílias, nem remédios nem transporte de qualidade, e os cidadãos não querem mais trabalhar para o Estado, sendo que o empreendedorismo e a iniciativa privada sofrem severas restrições, o que cria um impasse insustentável.

O embargo imposto pelos EUA há tantas décadas só contribui para agravar o cenário. Um barbeiro, um taxista ou um garçom ganham em poucos dias o salário de um servidor público, seja ele professor, engenheiro ou médico, e uma massa enorme de pessoas com diploma universitário se dedica a bicos juntos ao turismo para sobreviver. O peso cubano está tão desvalorizado frente à inflação crescente que a economia da capital gira em torno do dólar e do euro, tudo cash.

Porém, o que mais me impactou foi escutar a falta de perspectivas de futuro dos jovens, que sabem que o lhes espera e que cultivam uma única ambição, na maior parte das vezes inacessível: sair do país. Henri enunciou a máxima que costuma soar meio piegas, “onde há vida há esperança”, depois de saber que sou psicanalista. E emendou: “a gente segue vivendo, não é?”. Disse a ele que, na verdade, é o inverso. Do ponto de vista psicanalítico faz mais sentido pensar que “onde há esperança, há vida”. Afinal, de que vale viver se estamos permanentemente humilhados, com o desejo reprimido pela falta de liberdade e de empoderamento econômico, sem a possibilidade de sonhar e de imaginar futuros? E logo entendi que o que é bom para pensar os impasses de Cuba, é bom também para refletir acerca dos impasses do Brasil.

Winnicott concebe a esperança como herança da “ilusão de onipotência” vivida pelo infante em seus primórdios, quando não havia distinção entre mundo interno e externo, entre o bebê e sua mãe. A ilusão de onipotência não se confunde com os estados psicóticos delirantes, sendo a condição primordial para que nosso psiquismo possa estabelecer uma relação ativa e criadora com o que chamamos de realidade externa. Esse estágio de nosso processo de desenvolvimento emocional coincide, assim, com a ternura que caracteriza as primeiras relações que estabelecemos com os objetos de cujos cuidados dependemos, descrita por Ferenczi. Nesse momento da vida, mais do que satisfazer nossas exigências instintivas, nossos cuidadores buscam garantir que possamos nos sentir amados e, assim, nos integrar sem grandes colapsos. A ternura é, portanto, não apenas o solo sobre o qual a esperança se apoia, mas também a fonte do nosso erotismo, do nosso élan vital e do nosso desejo de sermos cocriadores do mundo no qual vivemos.

Para a psicanálise, uma existência adaptada e submissa é sinônimo de uma vida constrangida e despotencializada, e um convite ao adoecimento psíquico, seja na forma do masoquismo servil, da depressão ou da psicopatia, quando o sujeito não se sente parte da comunidade que busca destruir.

Para os jovens, especialmente latino-americanos, para além da Cuba da realidade que descrevi acima, há a Cuba utópica, da qual não podemos prescindir. A Cuba utópica, associada às imagens de Ernesto “Che” Guevara, Fidel Castro e da revolução, existe em nossas mentes como uma abertura à inventividade e à criação de modos de vida não submissos, promovendo “furos no futuro”, na bela metáfora do psicanalista Edson Luiz André de Sousa para as utopias.

A Cuba utópica é movida pelo que Che chamou em sua carta de despedida a Fidel, antes de partir para novas lutas, de “fervor revolucionário”, afeto que acompanha “a sensação de cumprir o mais sagrado dos deveres: combater o imperialismo onde quer que ele esteja”.

O filósofo Immanuel Kant intuiu algo semelhante ao comentar a Revolução Francesa, que instaurou a modernidade no velho mundo. Kant sublinhou que, ao lado do ideário revolucionário, havia algo mais, algo que deu consistência ao gigantesco movimento: o entusiasmo que afetou as massas lhes dando a alegria, a coragem e o amálgama coletivo necessário para empreender aquele gesto tão transformador da história. Já Michel Foucault enfatizou que a ruptura então promovida deixou uma marca indelével em nossa memória social, inspiradora, doravante, de todos os combates aos ataques à nossa liberdade de ser, sentir e agir. O que significa que, após a Revolução Francesa, a humanidade não aceitará qualquer regressão à “menoridade” e à servidão.

A Cuba utópica é, assim, nossa memória do desejo de autodeterminação dos povos latinos colonizados, com sua mescla de negros, indígenas e brancos, que resistem a perder a ternura e que insistem em querer se inventar. Portanto, continuarei admirando os retratos de Fidel com seu Cohiba Robusto na boca, estimulando amigos a ir turistar na bela Cuba ajudando, assim, seu povo sofrido, me emocionando com os relatos dos diários de motocicleta de Che Guevara.

Do contrário, o que restará aos nossos jovens senão a ambição de trabalhar na Faria Lima, enriquecer rapidamente no mercado financeiro para consumir os gadgets descartáveis da indústria da informação e do entretenimento, e blindar seus carros novíssimos e obscenos da realidade do país em que vivem?

Perder a ternura é uma outra forma, terrível, de pobreza.

Daniel Kupermann é psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da USP.


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