Crise para quem?
(Arte Revista CULT)
Vivemos um momento de crise do Estado Democrático de Direito? Um grande número de pessoas responderia afirmativamente a essa pergunta. Pessoas que acreditam que estamos diante de uma “pausa democrática” ou mesmo de uma quadra histórica excepcional em que o “velho” apresenta sinais de fadiga, enquanto o “novo” ainda não nasceu. Ao que parece, contudo, essa visão – que poderia ser chamada de “otimista” – de que o Estado Democrático de Direito subsiste e passa por uma crise está errada.
Em sua origem, a palavra “crise” (do grego krísis) era um termo médico que retratava o momento decisivo em que o doente, em razão da evolução da enfermidade, melhorava ou morria. Há, na crise, tanto Eros quanto Tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte, a esperança de continuidade e o medo ligado ao desconhecido. A crise apresenta-se como uma situação ou um momento difícil que pode modificar, extinguir ou mesmo regenerar um processo histórico, físico, espiritual ou político. Ou seja, é uma excepcionalidade que repercute no desenvolvimento ou na continuidade de algo. Trata-se de uma situação que irrompe como resultado da condensação de contradições que podem, ou não, ser superadas. Ao se falar em crise, portanto, admite-se a possibilidade da sobrevivência do fenômeno ou da continuidade do processo. Ao se declarar a crise do Estado Democrático de Direito, afirma-se que ele ainda existe, que seus fundamentos permanecem íntegros. Admitir a crise do Estado Democrático de Direito importa em afirmar que ainda existe um modelo de organização política vinculado ao princípio da legalidade estrita, isto é, subordinado a leis gerais e abstratas emanadas de órgãos político-representativos e vinculadas ao projeto constitucional (em especial, aos direitos e garantias fundamentais). O discurso da crise supõe que subsistam limites rígidos ao exercício do poder – de qualquer poder.
A vagueza e a imprecisão que alguns teóricos atribuem ao termo “crise” são funcionais à utilização política desse significante que, hoje, é utilizado como uma espécie de autorização pra afastar os limites democráticos ao exercício do poder. Ou, na expressão cunhada por Christian Laval e Pierre Dardot, como uma “arma de guerra” ou mesmo como um elemento fundamental à “estratégia de choque”, funcional à imoderação típica do projeto neoliberal e que autoriza o crescimento do pensamento autoritário.
De fato, o termo “crise” se presta a múltiplas utilizações. Assim, serve tanto para descrever as contradições presentes no Estado e as consequências, trágicas para qualquer concepção democrática, da política de concorrência generalizada atualmente em vigor, quanto para justificar as repostas a essas políticas. Mas isso não permite romper os limites semânticos do significante “crise” para empregá-lo diante de uma regularidade ou de um estado permanente. Se é verdade que o sistema capitalista “se alimenta da crise, que ele se reforça pela crise”, também é verdade que só existe democracia se existir soberania popular, luta pela igualdade, defesa das liberdades e respeito aos direitos e garantias fundamentais.
A crise não se refere a um mero instante disfuncional de um sistema coerente e harmônico, isso porque no mundo-da-vida não se pode ignorar o constante movimento e as rupturas inerentes às contradições ou mesmo à luta de classes, ainda que disfarçada, em razão das estratégias de homogeneização típicas da razão neoliberal, que levam à ideologia do “fim da história” e das classes. Mesmo que se admita a tese da superação das classes, reservando-se ao sistema (para o qual alguns atribuem o nome de Império) a responsabilidade pelas mudanças sofridas por todos que participam da sociedade capitalista – para alguns teóricos, a exploração do outro desapareceu para dar lugar à autoexploração, ainda que inconsciente, em favor do capital–, não se pode negar que as disfunções são inerentes ao funcionamento do sistema. Em outras palavras, elementos disfuncionais são normais aos sistemas sociais. A crise, por outro lado, é sempre algo mais grave, com potencial de destruição dos processos e do sistema de reprodução social.
Da mesma forma, a crise não pode ser confundida com uma fase ou um estágio lógico ou necessário do processo, porque as crises, em sua maioria, poderiam ser evitadas. Não se pode confundir o fato das políticas neoliberais serem hegemônicas – criando situações e reforçando dinâmicas que levam ou agravam a crise do sistema – com a inevitabilidade da crise. Se o Estado neoliberal precisa de crises porque governa pela crise, romper com o neoliberalismo e com a correlata crença na inevitabilidade do modelo neoliberal pode significar o fim da aparência de “permanência” da crise, ou seja, com o caráter crônico da crise do Estado. Acreditar na inevitabilidade da crise – e essa crença, não raro, é produzida pelos detentores do poder econômico –, aderir ao fetichismo naturalístico, leva ao imobilismo próprio das perspectivas deterministas e positivistas, funcionais para uma atitude conformista diante das crises e das desigualdades sociais. A crise é, por definição, algo excepcional, uma negatividade, que põe em xeque o processo ou o sistema, mas que justamente por isso o confirma como algo que ainda existe e pode ser salvo, desde que a negatividade seja extirpada ou transformada em positividade.
Por outro lado, se a situação que se afirma constituir um quadro de “crise” adquire ares de normalidade, ou melhor, se a afirmação da existência de uma crise é inerente (e funcional) ao status quo, se as características que compõem a “crise” nunca passam (nem podem passar), se a crise se torna “permanente”, impõe-se investigar se há mesmo um quadro de crise. Uma crise permanente, que se apresente como funcional, útil para a geração de lucros a partir da produção de novos serviços e mercadorias, bem como à repressão necessária à manutenção do projeto político e econômico imposto em determinado Estado, não é mais uma negatividade, um desvio, e sim uma positividade cara ao modelo neoliberal. Pode-se, então, pensar a utilização do termo “crise” como um recurso retórico, como um elemento discursivo capaz de esconder as características estruturantes do atual modelo de Estado. Se, por exemplo, não convém afirmar o desaparecimento do Estado Democrático de Direito, falar em crise serve para ocultar uma ruptura paradigmática.
O que hoje se afirma como “crise do Estado Democrático de Direito”, não o é. Se a “crise” é permanente, se a “crise” não pode passar, não é de crise que se trata, mas de uma nova realidade. Tem-se, então, uma nova trama simbólico-imaginária com novos elementos que se diferenciam daqueles que constituíam a realidade anterior, uma realidade que, hoje, existe apenas como lembrança, embora essa lembrança possa produzir efeitos ilusórios de que aquilo que não mais existe ainda se faz presente. Crise tornou-se uma palavra-fantasma, que evoca o que está morto e paralisa os que vivem. De fato, “crise” deixou de retratar um momento de indefinição, provisório, emergencial ou extraordinário. Trata-se de um termo que passou a ser usado para ocultar uma opção política por manobras e ações justificadas pela falsa urgência ou pelo falso caráter extraordinário do momento. Uma palavra com função docilizadora, que aponta para um processo ou um sistema que não existe mais, mas cuja lembrança serve para tranquilizar aqueles que esperam por algo que não irá retornar.
Ao longo da história, as “crises” sempre foram utilizadas, quando não fabricadas, para permitir ações excepcionais, atitudes que não seriam admitidas em situações de normalidade. Não por acaso, os defensores de medidas que restringem direitos e os entusiastas dos Golpes de Estado (para não ir muito longe, é possível pensar no Brasil de João Goulart e no Chile de Salvador Allende) sempre buscam justificação a partir da afirmação da existência de um quadro de crise. Nos atos voltados a minar a democracia italiana em 1948 – em que o governo dos Estados Unidos temia um resultado eleitoral desfavorável aos interesses das empresas americanas –, ou no golpe contra o governo democraticamente eleito da Guatemala em 1954, a “crise” foi fabricada e útil aos interesses das grandes empresas estrangeiras. Percebe-se, pois, que o uso político das crises não é novo, que o digam os gestores da Doutrina do Choque, com especial destaque para Milton Friedman e os Chicago Boys, que “produziram” a crise do Chile, o que permitiu tanto a criação de um laboratório para o neoliberalismo quanto a repressão e o terror comandados por Augusto Pinochet. O que há de inédito na atual quadra histórica é que a “crise” é apresentada explicitamente como permanente e não esconde a positividade em relação aos interesses neoliberais.
Note-se que não se trata de uma fase de transição. A “crise”, de fato, existiu, mas deu lugar a algo diferente. A crise, aliás, é uma constante do capitalismo, que necessita transformar as condições de sua existência em meio ao desequilíbrio estrutural que lhe é inerente. Porém, agora, não é mais de crise que se trata. Quando desaparece qualquer preocupação até com a mera aparência democrática, o passo decisivo em direção ao novo já foi dado. O novo já chegou, o que não significa que todos os resquícios do Estado Democrático de Direito desapareceram. É justamente a permanência de alguns institutos e práticas do Estado Democrático que leva à ilusão de que ele ainda existe. É essa ilusão que dociliza aqueles que acreditam que se está no marco do Estado Democrático de Direito. Esses “otimistas” esquecem que em nenhuma mudança paradigmática o “velho” desaparece com facilidade. Vale recordar que dispositivos, normas, discursos e práticas típicas dos Estados Autoritários também estavam disponíveis e foram utilizados no Estado Democrático.
Como lembra Rui Cunha Martins, o Estado pode ser pensado como um supermercado, no qual estão, lado a lado, produtos democráticos e os produtos autoritários que serão utilizados ao gosto dos detentores do poder político, em especial diante das necessidades que se apresentem. O que existiu deixa marcas (e produtos). A “metáfora do supermercado” de Cunha Martins ajuda a entender como modelos democráticos recorrem a instrumentos autoritários em situações de crise, bem como por que governos autoritários podem apresentar notas democráticas. Agora, porém, o quadro é outro: não se trata de recorrer ocasionalmente a um instrumental autoritário em plena democracia, mas de reconhecer que o Estado não pode mais ser tido como democrático, em especial diante da forma como trata os direitos e as garantias fundamentais. Não há crise. O que chamam de “crise” é, na verdade, um modo de governar as pessoas.
Diante desse cenário, impõe-se desvelar o que se esconde por de trás dessa afirmada “crise paradigmática” do Estado Democrático de Direito, desse ordinário travestido de “crise” que leva ao “Estado de Exceção permanente”, fenômeno que já preocupava Walter Benjamin, mas que ganhou maior potencial a partir do final da década de 1970 e início da de 1980. A hipótese deste pequeno artigo é a de que não há verdadeira crise paradigmática. A figura do Estado Democrático de Direito, que se caracterizava pela existência de limites rígidos ao exercício do poder (e o principal desses limites era constituído pelos direitos e garantias fundamentais), não dá mais conta de explicar e nomear o Estado que se apresenta. Hoje, como já escrevi em o Estado Pós-Democrático (Civilização Brasileira, 2017) e em Sociedade sem Lei (Civilização Brasileira, 2018), podemos falar em um Estado Pós-Democrático: um Estado que, do ponto de vista econômico, retoma com força as propostas do neoliberalismo, ao passo que, do ponto de vista político, apresenta-se como um mero instrumento de manutenção da ordem, controle das populações indesejadas e ampliação das condições de acumulação do capital e geração de lucros.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano