Corpo indócil: a invocação de uma subversão pela arte
"Olympia", de Manet, traz uma mulher confrontando o espectador (Foto: Reprodução)
Em “Três ensaios para uma teoria da sexualidade”, Freud assumiu o ato corajoso de afirmar que o sexual é, justamente, o aberrante em relação à função biológica da reprodução. O erotismo, a presença de um corpo circulado e circunscrito pelo desejo, pela fala e pela história são conquistas também construídas pela incisão que a psicanálise faz nos discursos. Não se trata, em psicanálise, de um corpo organismo, mas de um corpo pulsional que marca e cria memória.
O corpo sexual freudiano é marcado pelo erotismo. É um corpo indócil que, simultaneamente, se assujeita e se rebela em relação à docilização que recai sobre ele. A história desse corpo é a desses assujeitamentos, resistências e desdobramentos em termos de trabalho e constituição de psiquismo.
O território da arte sempre foi um espaço trêmulo e aberto para a subversão, para a elaboração do que excede, para realocar aspectos da cultura sob novos prismas, articulando o dentro e o fora, o dito e o não-dito e até mesmo o indizível. A história da arte é atravessada, no entanto, por desvios e tentativas de silenciamento. Não é de surpreender, portanto, que num momento profundamente autoritário surjam manobras para desmontar o caráter insurgente da arte, com claros propósitos de controle do excesso sob o qual ela se funda.
Mais do que nunca, é preciso invocar esse corpo freudiano como modo de resistência ou rebelião, sustentando, através da materialidade corpórea, a insistência de algo que não se apazigua. Diante de projetos que atacam as expressões artísticas, é preciso fazer frente e tomar posição na contramão de planos de dominação sistemática dos corpos.
Na arte encontramos gestos de coragem e manobras sustentadas contra a assepsia, através de alguns pontos de virada na representação do corpo, sobretudo do corpo feminino. “Olympia” de Édouard Manet de 1863, “A origem do mundo” de Gustave Courbet de 1866 e “Étant Donnés” de Marcel Duchamp são trabalhos que invocam as questões da presença do corpo feminino e da economia do olhar sob uma nova lógica que parece ser interessante sustentar agora.
O percurso que se pretende estabelecer aqui visa problematizar o apaziguamento do corpo numa negação de seu potencial de convulsão relembrado pela histeria e tão bem considerado pela obra freudiana. Aqui cabe, ainda, tomar a histeria em sua dimensão profunda, como estrutura e lugar de voz das mulheres encarceradas por um sistema brutal de aniquilação e invisibilização. Freud escutou as histéricas em suas crises convulsivas e em sofrimento psíquico, se abriu para ouvi-las e, junto a essas mulheres, inventou a psicanálise.
Durante séculos a mulher foi um dos objetos privilegiados do olhar e da ação dos artistas. O lugar do corpo feminino era o da passividade de ser vista como pintura ou escultura enquanto signo de beleza, ao passo que aos artistas – quase sempre homens – seria reservada a atividade de pintá-las ou esculpi-las.
Essa divisão tão marcada começou a ser perturbada de forma mais frontal após os movimentos vanguardistas. Com as vanguardas a arte se distancia de seu aspecto representacional e dos temas religiosos ou seculares para se voltar para as discussões que abrem certa desconstrução do olhar. Com Courbet e o quadro “A origem do mundo” surge uma interrogação inaugural do lugar do olhar.
“Olympia” de Manet, que traz uma mulher nua confrontando o espectador, é claramente um marco na história e uma desconstrução de todos os nus anteriores, nos quais a mulher estava sempre na posição passiva de contemplação. Há um giro no campo escópico: é ela quem olha e somos, agora, olhados e retirados do lugar apaziguado de antes. Olympia olha seu espectador fora do quadro e, dessa maneira, se faz ser olhada não como representação, mas como enigma. E, mais ainda, Olympia faz referência à sua sexualidade: ela nos olha e nos confronta com seu sexo.
A mudança é tão notável quanto a que aconteceu quando as mulheres se colocaram do lado de fora das telas e passaram a fazer suas próprias obras. Ou melhor, foi um germe do que viria a se desvendar no campo da arte pelas próprias mulheres.
Foram necessárias muitas décadas para que Marcel Duchamp recolocasse em jogo a questão levantada por Courbet, a propósito do feminino, em “Étant donnés” (1946-1966), obra póstuma na qual o espectador olha através de buracos em uma parede para descobrir um manequim feminino, deitado sobre um tapete de grama artificial, ao fundo de uma paisagem campestre, tendo uma lâmpada acesa em uma das mãos e as pernas abertas a mostrar seu sexo (ou seu “não sexo”, no lugar onde se suporia encontrar um).
Não é incomum encontrar na história da arte a representação do corpo feminino subtraído de toda sua materialidade enquanto corpo. O corpo da mulher incluído na estratégia de disciplinamento que o dociliza, através da retirada daquilo que, nesse corpo, seria a materialidade da resistência à sujeição: sua carnalidade.
Movimento semelhante acontece agora em clara tentativa de cerceamento das manifestações artísticas do país: um sintoma de um momento político que busca a dominação dos corpos e o aniquilamento da diferença e de qualquer manifestação que inclua o desvio e a invenção. Não espanta que o que esteja em jogo guarde profunda relação com todas as tentativas de censura e apaziguamento daquilo que no corpo guarda relação com o abismal e com o desconhecido. A arte é exatamente o discurso do fora, uma forma de bem dizer o excesso, que participa de uma estética trágica e barroca, consoante com uma ética do desejo que não flerta com purismos e ideais totalitários.
Cabe reafirmar, então, um segundo momento em que artistas contemporâneos realocaram essa impureza do corpo, sustentada a partir de suas vidas e trabalhos, como os apresentados pela brasileira Nazareth Pacheco, que introduziu o próprio corpo na obra, convocando o nosso corpo apaziguado à desestabilização por meio da captura e do aprisionamento do olhar entre brilhos e cortes de objetos, alusões a um corpo despedaçado que, mesmo em ausência, se presentifica.
Eva Hesse (1936-1970), uma judia alemã, escapou dos campos de concentração em 1939, quando fugiu com a irmã para Amsterdã. De volta à Alemanha, residiu no Vale do Ruhr, perto de uma fábrica desapropriada de produtos têxteis. A artista observou a quantidade e a diversidade de materiais abandonados no local e experimentou novos processos escultóricos com fios de tecidos, elétricos e painéis de madeira. No meio dos anos 60, onde a objetividade destacada do minimalismo levou muitos jovens artistas para a impessoalidade, ela fez algo singular reinventando a biografia de dentro de sua obra com esculturas que tocavam a experiência íntima do acontecimento que, no seu trabalho, conjuga delicadeza e espanto diante do corpo. Ela se utiliza de um saber-fazer frente ao minimalismo, criando e se diferenciando da grande maioria dos artistas com quem convivia.
Há um momento em que Eva Hesse incorporou definitivamente a utilização de novos materiais na sua linguagem, utilizando-se de fibras de vidro, látex e plásticos. Durante 1967, seu trabalho refletiu uma sensualidade mais direta com o uso desses materiais. “Accession II” (1968-1969) é uma obra de beleza complexa e fugidia. Trata-se de uma caixa metálica revestida com fios de borracha. Externamente é uma couraça mas, internamente, lembra uma cabeleira revolta e indecifrável. Feita com materiais da indústria e de uma geometria utilizada pelo minimalismo, é um cubo aberto que não representa somente uma forma primária. A repetição – uma característica dos minimalistas – fica por conta de inúmeros tubos de borracha enfiados nas superfícies das faces do cubo, feitas de ferro. O interior oferece uma sensação de organicidade, maleabilidade. Um elemento puro, simples, único, mantendo uma relação de abstração, repulsão, equilíbrio, coesão. Essa obra encarna uma ambiguidade que deve ser sustentada e preservada: de um lado a redução na utilização mínima da forma, retratando a experiência primeira do quadrado ou do cubo; simples, estável, racional e impessoal; dentro, pelos forçam a associação a uma sexualidade inconfundível, capaz de resgatar a leitura do objeto sob uma ótica que é, sem sombra de dúvidas, sedutora, abismal e feminina.
O absurdo de sua vida e uma erótica do corpo para além da representação literal, flertando com o incompreensível da própria existência, é o ponto fulcral da obra de Eva Hesse. A potência de sua vida inscrita em diários foram publicados na revista “Art Forum”, de 1972. Em seus escritos fica claro o momento em que a artista passou a utilizar seus pensamentos íntimos como baliza para o trabalho. Nos diários ficaram registrados, entre outras coisas, a dificuldade e o preconceito sofrido por uma artista mulher, a sensação de inadequação intelectual em comparação aos amigos artistas homens. Em abril de 1969, Hesse foi diagnosticada com um tumor no cérebro e sofreu três cirurgias, antes de falecer, em maio de 1970, com 34 anos de idade.
Ana Mendieta é outra artista que encena a dimensão do corpo e nos coloca no território do feminino e na contradição que se inaugura aí, fazendo uso do corpo na arte como uma invenção singular que reinaugura a ideia de “corpo de mulher”.
Pretende-se levantar, aqui, algumas reflexões sobre a figuração da mulher e aspectos do feminino pela via da política do desejo, em que Mendieta inscreve no mundo sua pergunta particular sobre o feminino. Do corpo como objeto de regulações e campo em disputa, a artista sustenta um destino que não é mais anatômico: aqui se encontra o ponto de ancoragem e de deriva de sua obra.
Em “Mais, ainda” (Seminário 20), o psicanalista Jacques Lacan refere-se à mulher como o sujeito que traz a alteridade radical. Isto quer dizer que a mulher não pode ser reduzida ou encerrada em uma referência ao masculino, e nem ao falo. Algo escapa, criando outro continente desconhecido, do qual não podemos nos aproximar pelo referencial fálico.
“Vênus Negra” – vênus contemporânea de Ana Mendieta – teria algo de novo a dizer a respeito da figuração do feminino? Na obra, o que aparece é um corpo agitado pelo real a escrever pelas bordas sua possibilidade de subjetivação, algo apresentado não só nos trabalhos da série “Silhuetas” – a que pertence “Vênus Negra” – mas também em performances em que se reviram as figuras masculina e feminina, como em “Facial Hair Transplant” de 1972, em que a artista trabalha a ideia de gênero como algo culturalmente construído, e também em que a identidade é entendida como performatividade. Nesta última obra, Mendieta retira a barba e o bigode de um amigo e reaplica os pelos em seu próprio rosto e, com o cabelo totalmente amarrado atrás da cabeça, se apresenta com aparência masculina ou híbrida.
Do sexo normalizado a partir de uma série de discursos que buscam adestrá-lo pelos dispositivos de saber/poder, passamos à psicanálise e à arte, como o território a partir do qual o corpo feminino será sabido e agido pela via do desejo, com todas suas consequências. Não se trata de um organismo, mas de um corpo pulsional.
Em “Vênus Negra” encontramos uma imagem fotográfica associada a um texto sobre a lenda cubana da Vênus Negra. Na fotografia, uma silhueta escura parece brotar da terra, chamuscada pelo efeito do fogo. Ao lado da imagem, a história da Vênus Negra: a invenção a partir da relação de Mendieta com o enigma de seu próprio corpo é uma maneira de abordar significados contraditórios e deslizamentos relacionados ao feminino. Uma Vênus Negra em contornos imprecisos, desmanchados pelo mar, pelas águas de um rio ou, ainda, pelo fogo. A silhueta feminina é trabalhada de diversas maneiras. Na obra, a imagem do corpo se faz pelo vazio, pela imagem que brota da terra após sua escavação e também pelas cinzas. A figura surge do borrado, do vazio.
Ana Mendieta coloca em questão a lógica fálica através do contorno de seu próprio corpo de mulher, constantemente feito, desfeito e refeito. Em seus trabalhos, fazendo-se muitas de si, sustentando um feminino que é, ao mesmo tempo, aparição e desaparição, há a recolocação em cena de tudo aquilo do corporal que fora negado para que o mesmo se tornasse encaixável. Outra questão que sua obra evoca é a da impossibilidade de se tocar a origem: a imagem da Vênus escavada aponta numa outra direção. Ela surge de uma tentativa de reencontrar a origem perdida, mas essa origem é impossível: não se pode mais reencontrar a Cuba de sua infância.
O nó do trabalho de Mendieta encontra-se na pergunta: o que é um corpo de mulher? Na multiplicação das silhuetas, fazendo-se muitas de si, desterritorializando-se, ela pode se fazer a partir de um novo lugar. Trata-se de uma forma de circunscrever um corpo para si, de reencontrar um lugar perdido e impossível de ser atingido, uma maneira de redesenhar o feminino.
Na série “Silhuetas”, realizada entre 1973 a 1980, a artista inscreve-se na terra ou marca uma silhueta difusa em fogo no ar. As inscrições e as marcas que realiza com seu corpo lembram desenhos e registros de culturas ancestrais latino-americanas a qual ela pertence. Mendieta atua marcando sua silhueta em diversos tipos de solos: lama, areia, terra batida, chão gramado, vegetação rasteira, solo rochoso e até mesmo água. Do seu corpo, ela faz surgir um feminino que se faz presente pelos rastros e resíduos: vestígios efêmeros da silhueta de um corpo de mulher na paisagem.
Sua morte trágica em 1985 deixou uma última silhueta, impressa na frente do prédio em que residia, evocando a primeira obra da série de silhuetas, feita no México, em que se deitou numa tumba asteca coberta de flores e ervas daninhas, como se coberta pelo tempo e, ao mesmo tempo, por ele preservada.
A possibilidade de resistência parece estar naquilo que as artistas apontam como reintrodução desse corpo pulsional no âmbito da obra de arte, frente a um saber domesticador do corpo. Não as invoco por acaso neste momento em que se mira justamente o corpo indomesticável e a dimensão mais humana, demasiado humana do corpo: a nudez. Todas sustentaram com coragem impressionante o abismo da própria existência e um forma de nudez: a que lembra que somos a ferida, a doença da natureza como bem assinala George Bataille na sua concepção de corpo, convocando-nos a “fazer da ferida uma festa, uma força da doença”.
Bianca Dias é psicanalista, escritora e crítica de arte.