Coringa no espelho: punitivismo e convulsão social

Coringa no espelho: punitivismo e convulsão social
Joaquin Phoenix em cena de Coringa, de Todd Phillips (Foto: Divulgação)

 

As palavras punição e punitivismo remontam à ideia de vingança e de retribuição. O senso comum ainda está preso ao dispositivo moral que prega que a todo mal causado deve corresponder um punição retributiva. Ou seja, ainda permanecemos amarrados à primeira e mais arcaica das funções da pena que é a retribuição, mantendo recalcadas as outras duas dimensões que são a ressocialização e a não-reincidência.

Nossa imaturidade enquanto corpo social organizado se perpetua porque buscamos refletir o eco das massas, exatamente como fazem ministros do STF quando falam em “sentimento constitucional da sociedade”. O sentimento da massa, que sabe de seus sentimentos, mas nada da Constituição, é sempre o de vingança, não raro promovida como espetáculo.

A vingança funciona como catarse das podridões da própria massa, como modo de afagar, pelo ódio ao outro, tudo aquilo que vai mal consigo.
É preciso uma certa maturidade científica e moral para perceber que tais impulsos vingativos impedem a investigação das causas que levam os sujeitos a transgredir. Impulsivamente somos levados a não querer saber aquilo que faz com que pessoas causem mal a outras: de um corrupto que mata e adoece milhares de pessoas a um motorista bêbado que atira e mata alguém no trânsito.

Quais as condições para que passemos, de maneira definitiva, como corpo político e social, à investigação das causas que levam as pessoas a fazer um mal, a cometer crimes, a lesar aqueles bens que convencionamos, enquanto civilização, a proteger?

Arrisco dizer que, com a revolução do inconsciente, a ciência psi passa a dividir o lugar que até então era exclusivo da filosofia. A reflexão sobre a alma humana a partir da interrogação, própria da filosofia, será para sempre uma espécie de psicologia vintage. Por isso Nietzsche foi tão enfático com os poderes revigorantes da psicologia para a filosofia no final do século 19. Se os filósofos olhavam para o não sabido como um lugar de caos e de escuridão, será a psicanálise freudiana que passará a investigar o funcionamento desse não sabido, conjecturando alguma ordem a esse caos a que denominou de inconsciente.

Só a investigação sobre as causas dará dados e informações para que possa ser criado, do ponto de vista institucional, estatal e político, uma forma de qualificar o aspecto reformador e preventivo das punições. A investigação sobre essas causas se converterá, no limite, na transformação das punições em tratamentos, movimento que pode ser nomeado de viragem clínica do Direito.

Só assim seremos espertos o suficiente para criar uma Justiça – ou remodelar esta que esta aí – que passe a ocupar-se secundariamente com a retributividade das penas, e passe a voltar todas suas forças e atenções para a ressocialização e para a não-reincidência.

No entanto, para investigar essas causas, não basta apenas entender isoladamente a psique do sujeito transgressor. É absolutamente necessário ter presente que esse diagnóstico não pode desprezar aspectos de cunho social e coletivo ligados aos movimentos de massa e ao contextos de determinadas multidões agrupadas. Afinal, como diz Lacan, o sujeito se constitui a partir dos laços que faz com os outros. De modos diversos, teóricos da psicologia e da psicanálise comungam da ideia de que o aparelho psíquico é formado a partir da influência dos laços sociais que estabelece, das dinâmicas coletivas das quais participa e da cultura e das história às quais está inserido.

Por isso Coringa é um filme que acerta na mosca, já que demonstra que as relações familiares e as relações sociais podem ser causas primordiais das mais cruéis transgressões.

Fraturas nos laços familiares não têm nada de engraçado

Para Otto Rank o próprio nascimento é um trauma que fica marcado indelevelmente no psiquismo. Traumas do corpo psíquico são como traumas do corpo físico. Ao invés de quebrar um osso, no corpo psíquico, são os sentimentos, as emoções, os ódios, as afetividades e os medos que entrechocam-se e rompem-se, como que fissurando o corpo psíquico consciente. Daí porque, para a psicanálise, as neuroses são marcadas pela experiência do recalque.

Recalque é uma operação pela qual o sujeito repele para o inconsciente memórias de desejos não satisfeitos e de traumas, absorvidas factualmente pelo consciente como daninhas ou irrealizáveis.

Um dos principais dispositivos clínicos da psicanálise é o da necessidade de retornar ao trauma para que seja possível ressignificá-lo. Daí porque, motivado ou não pelo divã, a necessidade de retornar e reconhecer os próprios traumas é um movimento pulsional que opera no psiquismo. É essa instrução que consta do texto “Recordar, repetir e elaborar”, de Freud.

Quando o personagem de Coringa vai ao hospital psiquiátrico em que sua mãe havia estado no passado a fim de saber a história que envolveu seu nascimento, e toma das mãos do funcionário o prontuário médico, o faz, talvez inconscientemente, dando vazão à pulsão que faz com que nos voltemos sempre ao passado para arrefecer as dores do presente.

O hábito de fumar, presente em muitas cenas do filme, também é um velho conhecido da psicanálise. Freud aventou a possibilidade de que o ato de fumar remontava às cenas primordiais de amamentação pelo peito materno. Coringa, além de fumar muito, acaba matando aquela que supostamente era sua mãe.

Se os afetos ligados à nostalgia da teta da mãe não são ressignificados com o simples ato de fumar, a experiência com o limite e com a lei, instaurada a partir daquilo que Lacan chamou de função paterna, também transtornam o personagem de Coringa.

A dúvida sobre o passado ligado à mãe e ao pai, uma vez não resolvida, sugere que o personagem sai de uma neurose para entrar definitivamente em uma psicose, nome que a psicanálise dá para aquilo que chamamos de loucura no senso comum. Nos psicóticos, muito antes de dúvidas, há certezas. Em tese, as psicoses operam-se como consequência da falta de exercício da função paterna. O terceiro, que deveria interditar a relação incestuosa entre o filho e a mãe, não é inscrito no psiquismo da criança, e a interdição, assim, não acontece.

Daí porque Coringa, em dado momento, passe a ser acometido de alucinações e delírios, especialmente aqueles ligados à uma relação amorosa e sexual com a vizinha.

Se a passagem da neurose para a psicose pode ser simbolizada na dança do banheiro, a da psicose para a perversão se dá na dança da escadaria. Antropologicamente as danças sempre marcam rituais de passagem.

A riqueza de poucos beneficia a todos nós?

Por que somos todos palhaços? Bukowski questiona: “Como, diabos, pode um homem gostar de ser acordado às 6h30 da manhã por um despertador, sair da cama, vestir-se, alimentar-se à força, cagar, mijar, escovar os dentes e os cabelos, enfrentar o tráfego para chegar a um lugar onde essencialmente o que fará é encher de dinheiro os bolsos de outro sujeito e ainda por cima ser obrigado a mostrar gratidão por receber essa oportunidade?”

O protótipo do palhaço sugerido no filme bem pode ser o de alguém pobre que crê que será capaz de “vencer” na vida (leia-se, ganhar dinheiro) exclusivamente com a força do seu trabalho. No neoliberalismo, quanto mais pobre, mais palhaço se é. Essa é uma das denúncias que o filme faz.

No livro Reinvenção da intimidade, Christian Dunker relata uma experiência ilustrativa. Numa discussão sobre políticas culturais em São Paulo, colocou-se em pauta que tipo de insumo deveria se facultar aos que moram na periferia. Dessa pauta, levantou-se a possibilidade de disponibilizar ônibus gratuitos para os moradores da periferia, permitindo que pudessem se deslocar para o centro nos fins de semana para participar de ações culturais, como as do Theatro Municipal. Ônibus em ação, a surpresa se deu no pouco uso. Eles simplesmente tinham vergonha de ir a espaços como aquele, já que não tinham roupas adequadas e, na visão deles, não saberiam como se comportar. “A geografia, mesmo que se instale no imaginário, mantém uma segregação real”, escreve Dunker.

Coringa é desempregado, doente mental, não é engraçado, tem problemas familiares, não tem uma namorada. É frustrado em todos sentidos. É um fodido completo. Com essa ficha – ou com muito menos dela – ninguém consegue emprego. Ninguém tem cabeça para empreender. Ninguém tem corpo que sustente dez horas no semáforo vendendo paçoquinha, no Uber ou entregando lanches de bicicleta.

Habitando uma sociedade em que uma empresa como o Itaú lucra 25 bilhões por ano. Em que uma moto CG vagabunda paga IPVA, mas que um iate não paga. Em que o Imposto Sobre Grandes Fortunas, ou a estabilidade do empregado, estão desde 1988 na Constituição sem que tenham sido legislados ou aplicados. Em que, agora, tributar-se-á o seguro desemprego… como não adoecer?

A falta de meios de satisfação de mínimos bens e serviços essenciais adoece, faz matar. Mesmo assim, nesse mundo de merda, a lógica é mesmo de que devem morrer todos esses que não produzem e que não consomem. A isso Achille Mbembe, professor camaronês, chamou de necropolítica: estrutura de poder que define quem deve viver e quem deve morrer. É contra essa morte anunciada que, na mesma moeda, Coringa rebela-se. Nada mais emocionante para alguém assim do que se tornar herói, seja lá como for. “Fazer o louco é uma das políticas do herói moderno”, diz Lacan no seminário 6.

Joaquin Phoenix em Coringa, de Todd Phillips
Joaquin Phoenix em cena de Coringa, de Todd Phillips (Foto: Divulgação)

Quem merece uma bala na cabeça?

Mesmo doente individual e socialmente, não é permitido ao Coringa, assim como a ninguém, na ditadura da felicidade que vivemos, a depressão, a tristeza e o surto.

Diante da necessidade imperiosa e mercadológica de bem-estar e de ser feliz, aos palhaços operários cabe a invenção de um riso, ainda seja, ele mesmo, a expressão de um transtorno mental. A gargalhada compulsiva e descontrolada de Coringa faz exatamente a mesma tarefa da maquiagem do palhaço: esconder seu abismo de tristeza. Mascarar a tristeza com tintas e batons capazes de fazer não uma nova cara, mas uma cara adequada às expectativas da sociedade de mercado, é o que sobra para Coringa, afinal, o corpo invisível do mercado é alérgico à tristeza. Apesar de ser muito útil à indústria farmacêutica, a tristeza nunca é uma boa estratégia de marketing.

Numa cultura narcísica em que a exaltação desmedida do próprio ego serve de ferramenta de marketing para exercício do empreendedorismo-de-si, não há lugar para os deprimidos, para os fracos, para os incapazes de inventar algum riso fajuto. Daí porque uma das frases mais notadas de Coringa seja: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você aja como se não a tivesse”.

O antidepressivo bloqueia a tristeza. A rede social mascara a tristeza. O consumo entretém a tristeza. Esse arranjo de expurgação da tristeza serve para que a vida, mas sobretudo, o mercado, possa continuar. O imperativo do sucesso profissional, que sempre projeta as cifras desejadas para o fim da linha, torna a vida uma concorrência não mais com os outros mas, sobretudo, consigo mesmo. Nesse cenário, aparecer é sinônimo de ser visto, de ganhar seguidores que logo se converterão em consumidores.

Tudo leva a crer que, quando Coringa aceita o convite para o talk-show, planeja um suicídio ao vivo. Tal é o ensaio que faz mirando a arma na própria cabeça no camarim. Mas a frustração de perceber que o convite era uma espécie de chacota pública, faz com que a bala, que supostamente era para a sua cabeça, vá parar na do apresentador.

O preço do espetáculo, levado às últimas consequências fazendo da morte o gran finale , aparece também no filme Birdman (2014). Em ambos a ideia é comum: de que a conclusão metafórica de uma experiência radical com o narcisismo e a espetacularização é mortífera.

A transgressão homicida de Coringa, marcada pelo complexo psicopatológico que combina razões familiares e sociais, acaba justificada ao grande público espectador. Por isso somos levados a torcer para que, depois do homicídio, Coringa não seja preso. Sempre conseguimos transformar a percepção sobre um julgamento na medida em que somos capazes de auscultar as causas que levaram a ele.

Mesmo porque sabemos que, das prisões, tal qual as concebemos no Brasil, um Coringa qualquer sairia ainda mais insano e perigoso. Isso se dá porque as nossas prisões ainda não perceberam que é preciso tratar apenados com disciplina mas, sobretudo, com humanidade e cientificidade. A ciência sabe que, para dar azo à função de ressocialização, as prisões precisam de psicólogos, de psicanalistas, de consteladores, de gente muito bem treinada que entenda muito mais da alma humana e do que de normas ou de manuseio de armas.

Quem merece uma bala na cabeça? Difícil decretar teoricamente a morte de alguém em especial. Não sei se fazer do drama dos outros a alavanca de ibope, como fazem Ratinho, João Cléber e os pastores estelionatários da TV, seja caso de pena capital. Talvez os banqueiros, em conluio com os políticos, sejam um alvo mais acertado. Ou talvez, para não especificarmos demais, devemos mesmo matar os ricaços, exatamente como conclama o jornal de Gotham City quando a cidade começa a ser tomada por protestos iguais aos que estamos vendo no Chile, na Bolívia, na Colômbia ou em Hong Kong… e onde mais os protestos não começaram porque o povo ainda não percebeu que é palhaço.


Paulo Ferrareze Filho é professor de Psicologia Jurídica (UNIAVAN), doutor em Filosofia do Direito (UFSC) e psicanalista em formação.

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