O trabalho do ódio

O trabalho do ódio
Estudante foge de policiais em manifestação na Cinelândia, Rio, 1968 (Foto:Evandro Teixeira/CDoc JB/Folhapress)

 

Um escritor amigo costuma dizer: “Como é chato ser contemporâneo. O gostoso é ser póstumo”. Tomada ao pé da letra, a dupla constatação contém um bom critério para se julgar o que seja a literatura na modernidade. O escritor é aquele que, imerso nos fatos com que tem de conviver, decide assumir uma perspectiva póstuma em relação a eles, a fim de representá-los nos seus livros de maneira mais convincente (complexa, duradoura…). O distanciamento/aproximação da realidade, paradoxal em si, tem nome nas literaturas modernas, chama-se Gustave Flaubert. Tem nome nas retóricas clássicas, chama-se estilização. Estilizar – informa o dicionário – é dar estilo e é também aprimorar, requintar.

Meu amigo justifica a atitude ao acrescentar que não foi outro o motivo pelo qual Machado de Assis deu início à obra madura pela voz dum “autor defunto”, ou dum “defunto autor”, para usar o trocadilho de Memórias póstumas de Brás Cubas. Por ter sido escrito por um defunto autor defunto, o livro não teria “os cem leitores de Stendhal, nem cinquenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco”. No seu tempo, a postura machadiana desassociava o discurso literário do discurso jornalístico. Buscava um não-lugar de observação dos fatos que não se confundia com a re-imersão do leitor no cotidiano brutal. A estilização confere peso e poder iluminador à linguagem (e não ao fato em si) e carreia consigo a hostilidade ao leitor convencional. Linguistas não chegaram a provar cientificamente que a linguagem da literatura é intransitiva?

Quanto mais transparente for a linguagem no seu relacionamento com o acontecimento, tanto mais consumido será o produto livro. Não foi por acaso que os escritores modernistas, no afã de naturalizar a vanguarda ocidental, deram foro de nobreza ao português falado da maneira coloquial no Brasil. Faziam de conta que a língua real era a linguagem do livro. Não é por acaso que, nos nossos tempos televisivos, a atitude oposta ao autor defunto de Machado esteja nos reality shows. Nenhuma linguagem em busca de estilização aguenta 24 horas no ar. Só a linguagem do tédio. No entanto, é ela que dá a impressão de que na telinha está a vida real, tal como ela é. A linguagem perdeu estatuto próprio. Cola-se ao fato, dele não se desgruda.

Os personagens dos reality shows são o que são – pessoinhas reais. O antigo leitor de jornais e livros cede o lugar ao espectador, tomado no sentido de testemunha (dos acontecimentos), ou seja, de voyeur, que está tão grudado às pessoas e aos fatos descritos quanto à lente da câmara. Câmara e olho são insones e, por isso, pouco ou nada auto-reflexivos. Ao contrário do espectador, o leitor relaxa a atenção entre uma frase e a seguinte, retira momentaneamente os olhos do livro, para que se entreabra no seu inconsciente um outro livro semelhante a paralelo – o da sua leitura. O leitor é também criador.

Ao me lembrar da atitude paradoxal do amigo escritor, lembrei-me por oposição de versos de A rosa do povo (1945), de Carlos Drummond, livro escrito durante o período negro da ditadura Vargas e da Segunda Grande Guerra. Ali se lê: “A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais. / Os telegramas de Moscou repetem Homero / Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo novo / que nós, na escuridão, ignorávamos”. A épica da Segunda Guerra Mundial é de responsabilidade dos correspondentes de guerra. Foi escrita pelos telegramas das agências de notícia e impressa diariamente na gráfica dos jornais. Fazia sentido esquecer o velho Homero na escuridão da literatura. Na mesma linha, lembrei-me de palavras de Mário Pedrosa, o extraordinário crítico de arte. Estávamos em 1978, ano de balanço da produção artística que se definiu pela luta contra o golpe militar de 1964 e o AI-5. Escreveu Pedrosa: “Diante de conflitos [socioeconômicos e políticos] tão radicais, terríveis, insolúveis, é natural que a arte passe para um nível secundário”.

A censura às artes e à repressão ao escritor, decretada e posta em prática por regimes ditatoriais ou totalitários, são duas das formas mais exigentes de negação da necessidade de literatura e de afirmação da necessidade de informação. A literatura passa para um nível secundário. Não foi diferente o que aconteceu durante a vigência do recente regime militar. No momento em que os meios de comunicação de massa foram proibidos de informar a sociedade sobre o que realmente estava acontecendo, o texto não precisava ser literário, bastava que veiculasse a informação justa e necessária. Em 1977, o cronista e dramaturgo Plínio Marcos declarou ao Folhetim que tinha aprendido (sic) uma coisa com a censura, não desistir. Afirma: “toda vez que ela me proibisse alguma coisa, eu escreveria mais três”. Não foi outra a atitude de José Louzeiro, doublé de jornalista e romancista, diante da repressão militar que escoltava a grande burguesia nacional. Narrou em romance o drama da menina Araceli, estuprada por playboy, e as desventuras do bandido Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. Fazia justiça com as mãos (“sujas”, assim adjetivou-as Jean-Paul Sartre) da literatura.

Ao deixar de ser ficção para ser faction (neologismo cunhado por Truman Capote no romance A sangue-frio, que significa o misto de fato e ficção), o romance torna-se instrumento de alerta e conscientização do cidadão. A literatura leva o mal-estar da sociedade a um estágio mais organizado – às vezes partidário, lembremo-nos da criação do PT em 1978 – de insubordinação ao regime que arbitrariamente tinha se apossado do poder nacional.

Relida hoje, nota-se que essa ficção (até agora minimamente representada por Louzeiro) trabalhou com forma de conhecimento menos perecível que a ditada pela simples necessidade de informação. Refiro-me à busca de justiça como móvel para a ordenação do plot literário. Há nessa literatura – em particular nas obras de Murilo Rubião, Rubem Fonseca, Autran Dourado, Lygia Fagundes Teles, Ivan Ângelo, Antônio Torres e outros mais – um trabalho feito em cima do ódio e da vingança que desarticula limites históricos e circunstanciais, para liberar ao leitor de hoje a essência da tragédia humana. Essa nos diz que não há inocentes dum lado e culpados do outro. A verdade (histórica, social e política) está no colorido das emoções humanas, que é imprevisível, múltiplo e variado.

Alguns resíduos da literatura pós-64 permanecem e fazem com que os livros transcendam sua reinserção no tempo e espaço da ditadura militar. Jorge Luis Borges, no conto “Emma Zunz”, em O Aleph, nos fala da moça que, ao querer vingar a morte do pai e fazer justiça com as próprias mãos, põe o pretenso culpado contra a parede, acusando-o de estupro. Na realidade, se entregara propositadamente a um marinheiro escandinavo e a perda da virgindade era álibi para justificar o futuro assassinato, ou seja, para fazer a polícia crer na sua inocência. Até aí o engenho ficcional irônico de Borges funciona a pleno vapor. Leitores mais recentes do conto, como Beatriz Sarlo, têm insistido na força dos sedimentos trágicos na trama borgesiana. Levam-nos a atentar para uma frase aparentemente insignificante do conto e altamente reveladora. Ao se entregar ao marinheiro, Emma “pensou (não podia deixar de pensar) que seu pai tinha feito a sua mãe a coisa horrível que lhe faziam agora”.

Comenta Beatriz Sarlo: “Emma Zunz, para vingar a morte do pai, inventa um plano que a submete a uma violência equivalente à que seu pai, vinte anos atrás, exercera sobre sua mãe. Admite, tacitamente, que ela é filha dessa violência e, apesar disso (ou por isso mesmo), segue os passos da vingança”.

O método analítico disseminado pela modernidade ocidental nos ensinou a perceber o dentro do dentro do dentro. Borges ensina o leitor a caminhar em direção aos resíduos das sensações e das emoções recônditas. Se enfatizarmos a frase acima citada do conto, não é o pai que reclama a justiça da filha. É a mãe. É a fêmea debaixo do macho na sociedade patriarcal. A justiça a ser feita pela filha o será em nome do corpo comprimido contra o colchão. Em nome da diferença (sexual) e contra a violência do forte contra o fraco. A circunstância da entrega de Emma a um desconhecido com o fim de vingar o pai tem pequeno valor de verdade em comparação com a verdade que ela descobre ao se lembrar da “coisa feia” que o homem faz – e seu pai fez com sua mãe para procriá-la. A violência do forte contra o fraco antes de ser um princípio de morte, como nas palavras ditas pelo lobo ao cordeiro, é um princípio de vida, como no conto de Borges. Daí a necessidade da Justiça – antes de evitar a morte do mais fraco, ela precisa redimir a sua vida.

Os valores fortes da melhor literatura posterior ao regime de 1964 não deverão ser procurados nas circunstâncias históricas que coordenaram o contra-ataque revolucionário e organizaram a dissidência até o comício das “diretas já”. Devem ser procurados nos inequívocos resíduos trágicos que permanecem depositados nos melhores livros. Graças a eles, uma geração – e também as seguintes – aprenderam de uma vez por todas como, em nome da justiça, reagir à violência do poder institucionalizado e criticar os injustos mecanismos de mando. Saber reagir à centralização política abusiva e criticar as ordens indiscriminadas – não importa em que mãos partidárias poder e lei estejam – é uma lição de que não pudemos nos passar ontem, de que não podemos nos passar agora e em qualquer momento futuro.

Sem o sedimento trágico da vida, depositado desde então no nosso modo de pensar a nação, a maquilagem do arbítrio e a violência da dominação, teria sido possível que o sociólogo Francisco de Oliveira cunhasse no ano passado a metáfora do ornitorrinco para o “novo” Brasil? Roberto Schwarz salienta que a comparação “serve ao crítico para sublinhar a feição incongruente da sociedade brasileira, considerada mais no que veio a ser do que nas suas chances de mudar”. E complementa: “O ânimo zoográfico da alegoria, concebida por um petista da primeira hora na própria oportunidade em que o Partido dos Trabalhadores chega à Presidência da República, não passará despercebido e fará refletir”.

Silviano Santiago é escritor, poeta e crítico

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