A crítica de Coringa e seus limites

A crítica de Coringa e seus limites
Joaquin Phoenix em cena de Coringa, de Todd Phillips (Foto: Niko Tavernise/AP)

 

Atualmente em cartaz, o filme Coringa, de Todd Phillips, foi muito bem recebido por público e crítica especializada. Tem sido, ademais, entendido por muitos como um filme crítico, que exprimiria uma oposição à ordem neoliberal. O filme é bastante distinto dos tantos filmes de super-heróis que são anualmente produzidos em Hollywood. Não há personagens com superpoderes, e poucas cenas de ação. Opta-se pelo drama psicológico. A narrativa é centrada na biografia do protagonista, que desta feita não é o herói, mas sim o vilão. Mantendo estrutura narrativa tradicional e tendo como eixo a identificação com o protagonista, constrói efetivamente empatia com a personagem desajustada de Arthur Flecker. Essa empatia, porém, não é acompanhada de elaboração e a crítica do filme esbarra nos limites do imaginário atual. Não rompe com a domesticação neoliberal da política e figura o coletivo apenas como desordem.

Inteiramente centrado na construção de um protagonista social e psicologicamente desajustado que tende em direção à violência, o filme de Todd Phillips carrega fortes marcas dos filmes iniciais de Martin Scorsese. A escolha de Robert De Niro para interpretar o apresentador televisivo Murray Franklin cumpre aqui uma função de citação. De Niro protagonizou muitos dos primeiros sucessos de Scorsese, e sua presença em Coringa evoca sobretudo dois filmes do diretor norte-americano: Taxi Driver (1976) e O rei da comédia (1983). Há muitas semelhanças entre esse último e o filme de Phillips. Em O rei da comédia, De Niro interpreta Rupert Pupkin, um indivíduo solitário que, assim como Arthur Flecker, mora com a mãe e sonha em ser um comediante famoso. Fã de um consagrado apresentador de talk show, Jerry Langford, interpretado no filme por Jerry Lewis, Pupkin encena em sua própria casa um talk show imaginário – de maneira semelhante ao que faz Flecker quando se prepara para ir à televisão. E assim como Flecker, que se imagina sendo acolhido e abraçado por Franklin, Pupkin se imagina sendo recebido por Langford, que o reconhece por sua genialidade. Em ambos os casos, a figura televisiva substitui o pai ausente. A escolha por apresentadores de talk show não é casual. Trata-se de um programa cujo formato encena o diálogo, justamente o diálogo que está ausente na vida daqueles que se prostram diante do ‘monólogo sem réplica’ da televisão. O filme é ambientado no tempo passado do broadcasting e provavelmente teria que ser repensado se ambientado nos tempos da interação virtual. Naquela época, quando havia um controle muito estrito dos meios de comunicação, o cinema imaginou por diversas vezes o momento disruptivo no qual alguém conseguiria driblar as barreiras das grandes emissoras e transmitir uma imagem indesejada (imaginação nem sempre distante da realidade, atentados políticos acontecendo por vezes perante as câmeras). Um dos tratamentos do tema se deu na representação de personagens inadaptados que projetam a redenção de suas angústias em um ato violento – caso justamente de Taxi Driver. E é esse mesmo motivo que vemos reencenado em Coringa. De Niro, algoz dos filmes de Scorsese, passa agora ao papel da vítima, em um atentado à moda antiga.

Phillips ambienta seu filme em uma época, a virada dos anos 1970 para os anos 1980, e apoia-se sobre o cinema dessa época. Ele escolhe uma vertente em oposição à outra. Opta pela psicologia do indivíduo e pelo assassinato da celebridade, e não pela narrativa conspiratória e pelo assassinato político. Analisando o cinema de então, Fredric Jameson havia notado que a ascensão das narrativas conspiratórias era sintomática de uma falência na compreensão da totalidade. Enquanto a economia unificava o globo sob um mesmo ‘sistema-mundo’, a incapacidade de apreender uma realidade social tão ampla e tão complexa se manifestava nas figurações conspiratórias, que constroem relações de sentido paranoicas e simplificadas. Um exemplo podia ser encontrado no filme Blow Out (1981) de Brian De Palma, releitura do clássico Blow Up (1967) de Michelangelo Antonioni. De Palma substituía a reflexão paciente sobre a relação entre a imagem e o real, presente no original, por uma narrativa conspiratória na qual o mundo não podia mais abrigar a verdade – à representação sobrava apenas o lugar do entretenimento. Em certo momento de Coringa, os letreiros de uma sala de cinema nos indicam que Blow Out está em cartaz.

O filme de Phillips, porém, parece ter pouco em comum com o filme de De Palma, e a referência a Blow Out talvez sirva mais para indicar as balizas cronológicas da narrativa. Diferentemente dos habituais filmes sobre Batman, Coringa não é ambientado em uma cidade imaginária e de temporalidade imprecisa. Pelo contrário, a Gotham City que vemos na tela é de maneira evidente a Nova York do início dos anos 1980. A escolha não é casual: trata-se do momento histórico de ascensão do neoliberalismo. Momento de falência do Estado e corte dos serviços públicos – como o do serviço de assistência psiquiátrica do qual se beneficiava Flecker – e da projeção política de figuras oriundas do mundo empresarial – como Thomas Wayne, que se propõe a salvar a cidade lançando-se para prefeito. Nesse sentido, há uma proximidade evidente entre a personagem de Wayne e o atual presidente dos EUA, Donald Trump. Foi justamente nesse contexto que Trump se projetou como figura pública, como empresário que propagandeava suprir as deficiências do poder público nova iorquino. Apesar disso, a caracterização da personagem de Thomas Wayne não é propriamente negativa. Mesmo quando Wayne agride Arthur, há justiça nessa agressão. Ele está protegendo seu filho, como fará novamente na cena de seu assassinato – atitude contrária à da mãe de Arthur, que não o protegeu dos abusos do padrasto. Ademais, Wayne se protege com as próprias mãos. Não solicita ajuda de seguranças ou do poder policial, como poderia se esperar por parte de um bilionário. Ele é um sujeito forte e seguro – o exato oposto da personalidade reticente e da corporeidade esquálida de Arthur. Ele encarna a figura do vencedor, aquele que triunfa na competição da sociedade liberal porque tem força e talento para triunfar. Essa caracterização é toda centrada no indivíduo, apagando-se as mediações sociais. Se Wayne se escondesse por trás de policiais e seguranças, veríamos o aparato policial como funcional para a manutenção do poder de classe. Se Wayne tivesse usado sua influência para internar injustamente a mãe de Arthur em uma instituição psiquiátrica, veríamos o poder médico sendo usado como instrumento para garantir uma dominação de gênero. Mas o filme não toma esse caminho. Prefere manter todas as narrativas com certo grau de incerteza e apresentar aquele que está no topo da hierarquia social como forte e dominador, como se seu triunfo fosse oriundo de características individuais e não de uma organização social. Assim, por exemplo, nada se diz sobre a origem da riqueza de Wayne, e tampouco sobre seu projeto político. O descontentamento da população para com ele é motivado por uma gafe, uma fala infeliz na televisão. A partir daí, passa a ser tratado de fascista – dando-se a sensação de que uma acusação símile é sempre vazia.

A manifestação popular entra, portanto, em cena como ressentimento vazio – o ressentimento contra aqueles que “conseguiram ser algo” (“who made something out of themselves”, na fala de Wayne). O que é mimetizado aqui é o movimento Occupy Wall Street, a “revolta dos 99%”, consolidado no atual imaginário norte-americano como figuração da insatisfação popular. Em uma projeção retrospectiva que joga para o passado as figurações da atualidade, as máscaras de palhaço vêm substituir as máscaras de Guy Fawkes, tornadas comuns em protestos após o sucesso do filme V de vingança (2006) e de sua adoção pelo coletivo hacker Anonymous. E no movimento circular entre representação e realidade, não surpreende que máscaras do novo Coringa comecem a aparecer em manifestações populares. Há no filme a intenção de criar um ícone de contrapoder, associando a personagem dos quadrinhos à insatisfação popular. Mas sua elaboração permanece demasiado precária (como era igualmente precária, aliás, a demanda dos 99%).

Joaquin Phoenix como Coringa Niko Tavernise/AP
Foto: Warner Bros Pictures/Divulgação

Aqui nos aproximamos das principais limitações críticas do filme, que são também aquelas de nosso imaginário atual. A política é reduzida à escala doméstica, ao passo em que se perdem as figurações coletivas. O filme produz empatia com a personagem de Arthur Flecker, e torna-nos sensíveis a suas agruras. Mas as mazelas sofridas pela personagem não remetem, em última instância, à ordem social, e sim ao âmbito familiar (sobretudo a partir do momento em que se revelam a loucura da mãe e os abusos do padrasto). Ademais, aquilo que se constrói como identificação com a personagem não pode ser estendido para o âmbito coletivo. Não há articulação entre o protagonista e a massa como personagem. Ou melhor, há apenas uma, que se dá sob a forma da identificação espetacular. A turba se identifica com Coringa como antes Arthur se identificara com Franklin. A identificação espetacular do ser comum com o vivido aparente parece ser hoje a única forma de articulação entre o individual e o social que conseguimos figurar.

Em resumo, a empatia habilmente construída em torno da personagem principal não é extensível à revolta coletiva. A revolta é inteiramente desprovida de razão. É como se a revolta só pudesse existir como ausência de sentido. E como se a coletividade só pudesse figurar como destruição e nunca como construção. “Não há sociedade, apenas pessoas”. O famoso dístico de Margareth Thatcher não é apenas um lema político. Reconsiderado após trinta anos de neoliberalismo, revela uma significação cultural profunda. Designa a impossibilidade de figuração positiva da coletividade. Apenas o individual é figurável. O coletivo equivale, necessariamente, à desordem. A ideologia neoliberal, em inversão cínica, faz do coletivo o oposto do social. Apesar das intenções que possa ter tido Phillips, ao ambientar seu Coringa na Nova York de 1980, seu filme não foge à regra. Sua crítica do neoliberalismo é ainda uma reiteração dos pressupostos ideológicos neoliberais. Manifesta assim um ponto de inflexão unidimensional do imaginário presente. Ao mesmo tempo em que as políticas neoliberais são amplamente sentidas como nefastas, figurações alternativas permanecem raras.


GABRIEL ZACARIAS é professor de História da Arte da Unicamp

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