“Conta pra mim”: o abraço de urso do MEC

“Conta pra mim”: o abraço de urso do MEC
Programa de alfabetização do governo federal defende que a leitura seja intermediada pelos pais (Foto: Agência Brasil)

 

Foi só recentemente que decidi ler o programa de alfabetização do Governo Federal: “Conta pra mim: guia de literacia familiar”, lançado no fim de 2019. De pronto, chamou a minha atenção o termo “literacia”, que substitui literatura, vista com certa desconfiança por este governo e por “aqueles que queimam livros, que banem e matam poetas”, como diria George Steiner. Aliás, o auto de fé já é praticado por aqui, pois obras de Paulo Coelho foram queimadas recentemente, conforme se noticiou nos jornais.

A literatura, seja oral, seja escrita, gera desconfiança porque tem um poder incalculável, “precisamente porque o mesmo livro e a mesma página podem ter efeitos  totalmente díspares sobre diferentes leitores. Podem exaltar ou aviltar; seduzir ou enojar; estimular à virtude ou à barbárie, acentuar a sensibilidade ou banalizá-la. De uma maneira verdadeiramente desconcertante, podem fazer as duas coisas, praticamente ao mesmo tempo”, segundo Steiner.

À medida que avancei na leitura do projeto, percebi que ele não privilegia a literatura. Trata-se muito mais de um projeto constrangedoramente simplista de formação de pais: “Literacia Familiar é o conjunto de práticas e experiências relacionadas com a linguagem oral, a leitura e a escrita, que as crianças vivenciam com seus pais ou responsáveis. É interagir, conversar e ler em voz alta com os filhos. É estimulá-los a desenvolver, por meio de estratégias simples e divertidas, quatro habilidades fundamentais: ouvir, falar, ler e escrever! […] Não é preciso ter muito estudo, materiais caros nem morar em uma casa toda equipada e espaçosa para praticar a Literacia Familiar. As práticas de Literacia Familiar são acessíveis a todos! Bastam duas coisas: você e seu filho! As práticas de Literacia Familiar podem começar durante a gestação e se estender até o final da adolescência”.

O Ministério da Educação foi buscar em outros continentes a fundamentação do projeto, consultando a Dra. Barbara Hanna Wasik e a Dra. Pascale Engel de Abreu, da University of North Carolina at Chapel Hill, e da Université du Luxembourg, respectivamente, cujas instituições estão escritas assim mesmo, na língua original.

Se não tivessem declarado guerra a Paulo Freire desde o início do governo, os responsáveis pelo projeto poderiam ter citado as ideias desse grande pedagogo brasileiro, festejado ao redor mundo. Bastaria que se apoiassem em um único livro dele, Pedagogia da autonomia, para que suas propostas ganhassem consistência e profundidade. No capítulo “Ensinar não é transferir conhecimento”, Freire afirma que o fundamental não é transmitir conhecimento, mas “pensar certo”, tarefa difícil, “não porque pensar certo seja forma própria de pensar de santos e anjos e a que nós arrogantemente aspirássemos. É difícil, entre outras coisas, pela vigilância constante que temos de exercer sobre nós próprios para evitar os simplismos, as facilidades, as incoerências grosseiras”.

Em relação aos livros, segundo o “Conta pra mim”, a leitura precisa ser intermediada pelos pais, que devem lê-los em voz alta para os filhos e depois discutir o conteúdo. A respeito da literatura, em um texto de 2000, Steiner afirma que “a maior parte dos adolescentes americanos [cabe lembrar a subserviência atual do Brasil à cultura norte-americana] não sabe ler em silêncio […]. A intimidade, a solidão que permite um encontro profundo entre o texto e sua recepção, entre a letra e o espírito, é hoje uma singularidade excêntrica psicologicamente e socialmente suspeita”.

O projeto destaca que “as histórias infantis tendem a transmitir uma mensagem positiva, apresentando o valor das virtudes, dando conselhos ou ensinando regras de boa conduta”. Não há como não citar o dramaturgo e escritor Eugène Ionesco, que ao ser perguntado sobre as mensagens dos seus textos, afirmou que era escritor e não carteiro, e por isso não entregava mensagens.

Aliás, Ionesco escreveu cinco contos para crianças, mais especificamente para a sua filha Marie-France. Num deles, explora a livre imaginação e o jogo, dando, por exemplo, nomes diferentes aos objetos:

“E papai ensina a Josete o sentido exato das palavras.”

“A cadeira é uma janela. A janela é uma caneta-tinteiro. O travesseiro é um pão. Já o pão, o pão é uma cama. Os pés são orelhas. Os braços são pés. A cabeça é o bumbum. O bumbum é a cabeça. Os olhos são dedos. Os dedos são olhos.”

Então Josete fala como o pai a ensinou a falar. Ela diz:

“Vejo pela cadeira quando como meu travesseiro. Abro a parede e caminho com minhas orelhas. Tenho dez olhos para caminhar, tenho dois dedos para ver, me sento no chão com a minha cabeça. Ponho meu bumbum no teto. Quando comi a caixa de música, coloquei a compota sobre a cama, e comi uma sobremesa gostosa. Beba a janela, papai, e faça para mim uns desenhos”. (Tradução minha)

A literatura de Ionesco, um autor mundialmente consagrado, vai na contramão do projeto do MEC, que propõe um uso restrito da imaginação: “Brinque de ‘eu vejo com meus olhinhos’: Adulto — Eu vejo com meus olhinhos uma coisa amarela! Criança — É a bola? Adulto — Não! Criança — É o girassol? Adulto — É quase isso. Só que o que eu estou vendo está bem distante, lá no alto. Criança — Já sei! É o sol! Adulto — Isso mesmo! Acertou! É o sol, que está lá no céu!”.

E o projeto prossegue: “Acostume-se a ser um narrador! Descreva em voz alta o que você e seu filho estão fazendo ou vendo. Pense em voz alta. Assim, seu filho aprenderá como você resolve problemas”. Ouso concluir, todavia, que por esse caminho a criança jamais pensará por si mesma.

Parece-me esclarecedor citar aqui Jacques Rancière, que, no livro O mestre ignorante, afirma: “a distância que a Escola e a sociedade pedagogizada pretendem reduzir é aquela de que vivem e que não cessam de reproduzir. Quem estabelece a igualdade como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a posterga até o infinito. A igualdade jamais vem após, como resultado a ser atingido. Ela deve sempre ser colocada antes. A própria desigualdade social já a supõe: aquele que obedece a uma ordem deve, primeiramente. compreender a ordem dada e, em seguida, compreender que deve obedecê-la. Deve, portanto, ser já igual a seu mestre, para submeter-se a ele.  Não há ignorante que não saiba uma infinidade de coisas, e é sobre este saber, sobre esta capacidade em ato que todo ensino deve se fundar. Instruir pode, portanto, significar duas coisas absolutamente opostas: confirmar uma incapacidade pelo próprio ato que pretende reduzi-la ou, inversamente, forçar uma capacidade que se ignora ou se denega a se reconhecer e a desenvolver todas as consequências desse reconhecimento. O primeiro ato chama-se embrutecimento e o segundo, emancipação”. Assim pensam também Theodor Adorno e Paulo Freire, entre outros pensadores de relevo.

O layout do projeto também causa má impressão, a começar pela informação visual da capa: a cor escolhida é esmaecida, nem verde nem cinza. Bem que ela poderia ser flicts, uma cor inventada por Ziraldo em seu belíssimo livro homônimo. Mas Ziraldo, como outros escritores brasileiros, não são citados no projeto. O mascote da proposta do governo, um ursinho, também não me agradou: vestindo uma blusa quentinha com capuz, é como se ele ainda vivesse nos países frios do hemisfério norte, seu habitat natural.

Dirce Waltrick do Amarante é autora, entre outros, de As antenas do caracol: notas sobre a literatura infantojuvenil e A biblioteca e a formação do leitor infantojuvenil: conversa com pais e professores, ambos publicados pela editora Iluminuras.


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