Confrontar-se com o inumano

Confrontar-se com o inumano

Influência de Jacques Lacan está ligada a sua maneira de abrir as portas para uma outra figura do homem

Vladimir Safatle

Deveríamos levar a intervenção analítica até os diálogos fundamentais sobre a justiça e a coragem, na grande tradição dialética?”. Talvez essa pergunta, enunciada por Jacques Lacan no início dos anos 1950, sirva para introduzir a peculiaridade do que esteve em jogo no interior de sua experiência intelectual. Pois, afinal, eis uma questão que não parece exatamente evidente. Por que um psicanalista, alguém cuja exigência profissional consistiria em tratar sofrimentos psíquicos e patologias mentais, deveria se preocupar com a “grande tradição dialética” ou com valores morais que não parecem ter muita utilidade em situações clínicas, já que dizem normalmente respeito ao campo das relações sociais? Não seria mais adequado afirmar que a intervenção analítica deveria ser levada a deparar-se com questões um pouco mais precisas, como a estrutura neuronal dos afetos ou os paralelismos orgânicos relativos a estados de depressão, catatonia etc? 

De fato, essa afirmação de Lacan era peculiar por indicar uma tentativa de larga escala em reavaliar o sentido deste setor sensível das práticas médicas que podemos chamar de “clínica das afecções mentais” ou simplesmente de “psicologia”. Projeto fundacionista que ficava claro quando Lacan fazia afirmações como: “Toda psicologia, inclusive esta que fundamos através da análise é apenas uma máscara, e algumas vezes um álibi, da tentativa de penetrar o problema da nossa própria ação, que é a essência, o próprio fundamento de toda reflexão ética”. Quer dizer, a psicologia não seria, por exemplo, uma reflexão sobre a estrutura das faculdades mentais e funções intencionais tendo em vista o tratamento de distúrbios, transtornos e síndromes cuja causalidade estaria, em larga medida, vinculada àquilo que normalmente chamamos de “psíquico”.  Ela seria, juntamente com a psicanálise, o setor avançado de uma teoria da ação que fornece o fundamento para toda reflexão de natureza ética, ou seja, toda reflexão ligada àquilo que se impõe à conduta humana como um dever-ser, como uma orientação a partir de valores. 

Vale a pena insistir na radicalidade dessa posição. Pois, afirmar que psicologia, psicanálise são setores de uma teoria da ação significa dizer que seus objetos (como a memória, o desejo, a sexualidade, a percepção) não têm realidade substancial alguma para além de uma reflexão sobre a ação e seus condicionamentos, suas inibições, seus sintomas, suas angústias. Ação que não é simplesmente reação ao meio ambiente, ato reflexo, instinto cego, mas impulso em direção à realização de valores que se impõem à vida. 

Esse é o ponto central se quisermos entender como, afinal, Jacques Lacan se transformou, juntamente com Freud, em um clínico cuja influência e cujas questões tiveram a força de ultrapassar o campo técnico da práxis analítica e contribuir, de maneira decisiva, para a maneira como compreendemos o presente e seus desafios. Pois da mesma maneira que é simplesmente impossível entender o século 20 com suas promessas utópicas sem apreender o impacto social do pensamento freudiano, talvez seja impossível entender o início do século 21 sem passar por Lacan. Não apenas devido à maneira com que, atualmente, conceitos seus são mobilizados para dar conta de questões maiores no interior da política, da teoria social, da filosofia, da crítica da cultura; mas também devido à maneira com que autores fundamentais para a contemporaneidade, como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Jacques Derrida e, mais recentemente, Alain Badiou, Judith Butler, Ernesto Laclau, Slavoj Žižek construíram suas questões em confrontação e diálogo com Lacan. 

Quem quer ser fiador dos devaneios burgueses? 

Dizer que a psicanálise é, no fundo, a tentativa de penetrar a essência, o fundamento de toda reflexão ética pode parecer, a princípio, algo temerário. Pois sabemos como toda clínica coloca em funcionamento distinções entre o normal e o patológico, entre um estado de saúde e uma situação inaceitável de sofrimento. Sabemos também como a psicanálise foi, em muitos momentos, responsável pela aproximação entre a noção reguladora de “normalidade” e uma certa adaptação a valores e ideais de auto-realização socialmente partilhados. Ela mesma colaborou para que tais valores e ideais mudassem de configuração e aparecessem menos ligados a exigências de repressão e de conformação a padrões estáticos de conduta. No entanto, não é desprovido de interesse lembrar como, em última instância, Lacan nunca confundiu tais demandas de auto-realização com o que realmente estaria em jogo em uma situação analítica. 

“É aceitável reduzir o sucesso da análise”, perguntará Lacan, “a uma posição de conforto individual, ligado seguramente a esta função fundamentada e legítima que podemos chamar de serviço dos bens – bens privados, bens da família, bens da casa, outros bens que também nos solicitam, bens da profissão, da cidade?” Ou seja, estaria o sucesso da análise necessariamente vinculado à restituição da capacidade do sujeito em agir de maneira bem sucedida na realização de valores normativos no mundo do trabalho, na esfera familiar, na polis, esferas cuja racionalidade estaria submetida ao que Lacan chama aqui de serviço dos bens? A resposta do psicanalista francês é simples e direta: “Não há razão alguma para fazermos o papel de fiadores dos devaneios burgueses”. 

De fato, a afirmação não poderia ser mais clara a respeito do que Lacan tinha em vista. Pois ele estava disposto a insistir no fato de a psicanálise ter nascido em um momento de crise profunda da modernidade ocidental. Maneira de lembrar que ela é o sintoma maior dessa crise que nos levou a colocar em questão nossos ideais normativos sobre auto-identidade, sexualidade, modos de socialização, justiça e, sobretudo, nossas idéias sobre o que estamos dispostos a contar como racional. Assim, ela seria indissociável de uma reorientação profunda referente àquilo que pode aparecer como dever-ser próprio a uma ética. 

Não deixa de ser extremamente importante perceber como Lacan acabava por antecipar um movimento que será articulado de maneira mais sistemática por Michel Foucault. Pois desde o seu História da loucura, Foucault insistia na dependência entre a normalidade presente no horizonte de práticas psiquiátricas e uma reflexão de ordem moral que alcançará sua forma mais bem acabada através do vínculo entre loucura e perda da autonomia da vontade, loucura e alienação, tal como aparece na constituição da psiquiatria moderna no início do século 19. Pois trata-se de perguntar qual o preço a pagar para que a vontade possa aparecer como autônoma, quais processos disciplinares e normativos é necessário internalizar para que possamos reconhecer a conduta pressuposta na estrutura valorativa em operação na família, no mundo do trabalho e em outras instituições como ideal de normalidade. Dessa forma, Foucault pode colocar uma questão central: em que o estabelecimento de um campo empírico do saber com suas práticas e incidências sociais, como a psiquiatria e a psicologia, é devedor de uma reflexão de ordem moral? E é Foucault que perguntará, mais tarde e em tom que não deixa de nos remeter a Lacan, se seria possível recuperar um modo de relação a si, de cuidado de si resultante de uma ética que não fosse “fiadora dos devaneios burgueses” de auto-realização e autonomia. 

Uma ética do inumano 

Mas quando Lacan fala de um fundamento da ação ética que apareceria como princípio de orientação para a cura analítica e para a reconstrução da própria noção de normalidade, o que ele entende afinal por “ética” nesse contexto? Talvez a frase mais célebre a esse respeito seja: “Proponho que a única coisa a respeito da qual se possa ser culpado, ao menos na perspectiva analítica, é de ter cedido em seu desejo”. Não ceder em seu desejo seria, afinal, o vetor de orientação para a reflexão psicanalítica sobre a ação, sendo que, de uma certa forma, a verdadeira fonte de sofrimento psíquico estaria vinculada à consciência tácita do sujeito, em um ponto essencial, ter cedido em seu desejo. 

A princípio, nada mais nebuloso do que esse tipo de colocação de Lacan. Afinal, o que ele tem exatamente em mente? Não devemos ceder nas exigências particularistas de nosso desejo, na afirmação de nossos sistemas pessoais de interesse e de expectativas de satisfação reguladas pelo princípio de prazer?  Responder tais questões exige compreendermos melhor o que Lacan quer exatamente dizer por “desejo”. 

Toda pessoa que já ouviu falar de Lacan conhece sua noção de desejo como falta, não falta de um objeto determinado da necessidade, mas pura negatividade desprovida de objeto natural. Daí a noção do desejo como “falta-a-ser”, como perda irreparável. Nos seus piores momentos, tal conceito de desejo acabou por alimentar uma certa estética da finitude e da incompletude, como se estivéssemos diante de alguma forma parisiense de teologia negativa marcada pela consciência resignada do gozo impossível. 

Muitas foram as críticas contra tal noção de desejo, sendo que a mais conhecida veio de Gilles Deleuze e Félix Guattari, em O anti-Édipo. Seu alvo não era a pretensa metafísica da negatividade presente no conceito lacaniano de desejo. Pois a maneira com que a psicanálise procura socializar o desejo produziria um desejo marcado pela negatividade, pela perda, pela falta. No entanto, “nada falta ao desejo”, dirão os dois, “ele não está em falta em relação ao seu objeto. Na verdade, é o sujeito que está em falta com o desejo, ou é ao desejo que falta sujeito fixo; só há sujeito fixo graças à repressão”. No entanto, devemos nos perguntar de maneira mais precisa o que Lacan tinha em mente ao falar que a verdade do desejo era ser pura negatividade. 

Talvez a melhor maneira de compreender esse ponto é lembrando como Lacan não partilha essa idéia clássica, ao menos desde os estudos de Durkheim sobre o suicídio em situações de anomia, de que o sofrimento psíquico na modernidade estaria ligado à perda de relações substanciais estáveis e fixas onde cada um sabe quais são as condutas e valores que devem ser assumidos, qual o lugar que cada um deve assumir no interior de uma vida social que se oferece como totalidade. Ao contrário, para Lacan, a verdadeira fonte de sofrimento era resultante do caráter repressivo da identidade, dessa identidade que devemos internalizar quando passamos por processos de individuação e de constituição social do Eu. Daí porque Lacan será tão sensível às temáticas vanguardistas de dissolução do Eu e de desarticulação de seus princípios de síntese enquanto condição para o advento de uma experiência capaz de realizar exigências de autenticidade. Isso a ponto dele afirmar ser a análise uma “experiência no limite da despersonalização”. 

Esse ponto é importante por nos lembrar que, ao falar do desejo como pura negatividade, Lacan tinha em mente essa potência de indeterminação, essa presença, em todo sujeito, daquilo que não se submete integralmente à determinação identitária da unidade sintética de um Eu, que não se submete à forma positiva de um objeto finito. Ou seja, a falta própria ao desejo é, na verdade, o modo de descrição de uma potência de indeterminação e de despersonalização que habita todo sujeito e que Lacan chamará em certos momentos de infinitude. Não deixa de ser irônico o fato de que, ao menos nesse ponto, Lacan é extremamente próximo de quem mais criticou seu conceito de desejo, a saber, Gilles Deleuze. O mesmo Deleuze que insistia na potência interna da indiferença que corrói toda determinação, nessa expressão do ser que nos leva a afirmar, com Scott Fitzgerald, que “toda vida é um processo de demolição”. Demolição que ocorre quando desvelamos essa “franja de indeterminação da qual goza todo indivíduo”. 

Nesse sentido, “não ceder em seu desejo” só pode significar a exigência de se confrontar com o que aparece como “inumano” no interior do desejo, como desprovido da imagem identitária do homem. Tal confrontação é afinal o que mobiliza a exigência de “coragem” que a intervenção analítica traz, já que ela nos exige pensar individualidades que não são fundadas exatamente na coerência unitária das condutas, na coesão dos ideais, mas na capacidade de absorverem experiências que se colocam no limite da despersonalização. É exatamente isso que Lacan entendia por “sujeito”. Resta saber o que pode ser um conceito de “justiça” capaz de estar à altura do que Lacan tem em vista. 

 Talvez isso nos explique um pouco do forte interesse que o pensamento de Lacan ainda desperta em diversos projetos intelectuais da contemporaneidade. Pois talvez todos eles partilhem da crença de que, se quisermos forjar um dispositivo de pensamento capaz de forçar o aparecimento de uma práxis renovada, não devemos procurar atualizar regimes de humanismos, mas dar forma a nosso desconforto com um certo projeto antropológico de homem. Nesse sentido, Lacan pode nos ajudar a compreender como a modernidade foi também o espaço de uma outra concepção do humano, uma concepção que insiste na importância de experiências de confrontação com o inumano, com o despersonalizado, com o indeterminado para a formação de uma práxis emancipada. Pensar como a verdadeira práxis virá da capacidade que sujeitos devem desenvolver em se confrontar com o que não tem a figura da “humanidade” do homem: eis uma tarefa que Lacan nos legou. 

Vladimir Safatle é professor de Filosofia da USP e autor de, entre outros, A paixão do negativo: Lacan e a dialética (Editora da Unesp, 2006), Lacan (Publifolha, 2007)

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