Clarice na memória de outros: fios soltos, coloridos, reunidos

Clarice na memória de outros: fios soltos, coloridos, reunidos
Clarice Lispector em Berna, Suíça (Foto Acervo Paulo Gurgel Valente)

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Um tapete é feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só.
Clarice Lispector, A descoberta do mundo.

Quero trazer à memória aquilo que pode me dar esperança.
Lamentações 3:21

Quando há referências a estudos abalizados acerca de Clarice Lispector, o nome de Nádia Battella Gotlib ocupa reconhecida distinção. Professora, biógrafa, pesquisadora em arquivos… – eis alguns traços que, ao adjetivarem a intérprete de estudos literários e biográficos, a identificam como detentora de um saber extra. Tendo lecionado na Universidade de São Paulo o seu primeiro curso a respeito da obra de Lispector em 1983, portanto, há quarenta e um anos, a livre-docente do Programa de Pós-Graduação em Letras da USP promoveu e promove – extensivamente – a divulgação da obra da autora ucraniana naturalizada brasileira.

Celebrando o marco de quatro decênios de intenso e profícuo diálogo com o universo lispectoriano, Gotlib lança Clarice na memória de outros – livro que integra uma galeria de 65 vozes, de A a W, as quais se expõem em torno de Clarice Lispector. Representadas pela heterogeneidade, essas expressões se presentificam no volume por meio de diferentes gêneros textuais ligados à memória autobiográfica: artigos, cartas, crônicas, e-mails, entrevistas, poemas, dentre outros. A diversidade dessas produções, em sua maioria inéditas, destacam “biografemas”[1] a respeito de Clarice Lispector por olhos desse semipleno abecedário de pessoas que a viram rápida ou detidamente: de Ana Maria Machado a Walmir Ayala.

Mas o leitor pode se perguntar: o que essas memórias, suportadas e transformadas em textos, podem contribuir à fortuna crítica da autora? Questionamento que a própria organizadora do volume lança àqueles que enfrentarem as quinhentas páginas que erguem a ossatura do compêndio. Os textos memorialísticos que compõem a coleção possibilitam a ampliação de interpretações acerca do contexto de produção das obras da autora de Perto do coração selvagem, e fornecem “pistas variadas” que, ao revelarem relances da vida da persona Clarice, revigoram e metaforizam os muitos perfis biográficos de Lispector, possibilitando, ainda, o rasteio, a investigação de novas considerações significativas. É o caso, por exemplo, do depoimento que revela a possível ida da autora à vidente de Adolf Hitler. Sabe-se do contato que Lispector nutriu com cartomantes, mas o dado presente no volume amplia significativamente a informação.

O fato heterogêneo relacionado à persona Clarice, isto é, às muitas aproximações possíveis acerca de sua vida, foi preludiado por Gotlib em outro livro, a importante e irremovível biografia que escreveu a respeito da autora, Clarice: uma vida que se conta (Ática, 1995; 7ª ed., Edusp, 2013), e que se espelha, como complementação em imagens, em outro importante título, Clarice fotobiografia (Edusp; Imprensa Oficial, 2008; 3ª ed., 2014).  Se no primeiro livro a biógrafa, atenta às pulsações da vida na sua teia de instabilidades e de vicissitudes, requisita do seu leitor a apreensão multiforme dos perfis biográficos de Clarice, “Próxima. Distante. Vaidosa. Terna. Sofrida. Lisérgica. Vidente. Visionária […]”, o mais recente trabalho da pesquisadora caminha na mesma direção: ao reunir depoimentos significativos de pessoas que partilharam da presença de Clarice, a estudiosa renuncia a uma organização exclusivista, uniforme, concreta, e oferece aos leitores dessas memórias a possibilidade de emendarem “fios soltos”, “vestígios”, à construção de um “ser quase” Clarice, Clarices.

Ciente da problemática existente em atar esses nós, mesmo porque falar de outrem, em certa medida, é narrar a si próprio, antes de querer acentuar determinada inclinação de Clarice Lispector para algum tópico específico, seja o feminista ou o judaico, à guisa de exemplos, a organizadora da coletânea respeita as memórias que lhe foram entregues, mas não afrouxa a criticidade, com respeito e compreensão, ao esclarecer, em notas, os descuidos, as leituras desencontradas ou até mesmo certos relapsos dos memorialistas. Eis um dos traços fundamentais que caracteriza a contribuição investigava de Gotlib: a plena atenção aos detalhes. Clarifica. Ocorrência que não só esclarece lacunas existentes em algumas recordações, mas viabiliza o curso da informação de forma segura, conduzindo os “possíveis leitores” do livro à melhor decodificação.

A organizadora traz à superfície textual de Clarice na memória de outros não apenas recordações, mas muitas memórias que se transformam em documentos, textos de inegável valor para o aprimoramento e a revisão da historiografia literária de Clarice Lispector, além da oportunidade de pôr atenção a dados até então tortuosos de sua obra e polêmicas de sua biografia. Nesses direcionamentos, a Clarice, politicamente posicionada a favor do outro, socialmente atenta, reaparece; o esclarecimento acerca da morte de Marieta Lispector, mãe da autora, tonifica recordações e desmonta o sensacionalismo biográfico que pintou o mercado editorial, no final da primeira década dos anos 2000, em torno da progenitora da ficcionista; a demissão abrupta de Alberto Dines, chefe da cronista Lispector no Jornal do Brasil, ganha novo grau explicativo: ele enfrentava a censura que cristalizava os meios de comunicação, não era exclusivamente sua condição de judeu que o fez perder o cargo; a entrevista que Clarice Lispector concedeu ao Museu da Imagem e Som – MIS, em 20 de outubro de 1976, teve uma primeira publicação em 1991 (fronteira que invalida o suposto ineditismo divulgado erroneamente na imprensa em 2023); e essas são algumas das informações que reivindicam e/ou oferecem novos e esclarecedores focos interpretativos.

Relevantes aclarações no livro especificam-se no desdobramento: ao reunir memórias que possibilitam traçar com mais rigor a poética defendida por Clarice Lispector em vida, o volume possibilita à organizadora o distanciamento crítico necessário do corpus selecionado, a ponto de inferir, com precisão, elucidações acerca do processo de criação da literata, sobretudo, no início da década de 1970, quando a ficcionista, a partir de relatos inclusos no compêndio, cria ansiosas expectativas à fase de “estruturar” suas narrativas, levando-a a recorrer a amigos para ajudá-la a “montar” sequências de fragmentos escritos.

Se, por um lado, a acurada pesquisa de Nádia Battella Gotlib, refletida em Clarice na memória de outros, possibilita a reunião de textos díspares, de 1928 a 2022, datas do texto mais antigo e do mais novo, respectivamente, que poderiam se perder ao longo dos anos se não estivessem coligados tal como no suporte que ora se publica, por outro, a consideração atenta e abalizada da docente acerca da multifacetada persona Clarice ganha o tecido estrutural do volume e colore o tapete de fios narrativos com esperança. Viva Clarice! Clarices.

Thiago Cavalcante Jeronimo é doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, período Sanduíche na Universidade do Minho; realizou Estágio Pós-Doutoral em Literatura na Universidade de Aveiro; autor de Clarice Lispector apesar de: romance de formação e recursos discursivos (Todas as Musas, 2020) e Clarice Lispector: um novo testamento (Todas as Musas, 2022).


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