Cinco pontas de uma estrela

Cinco pontas de uma estrela

Com uma linguagem inconfundível, cinco poetas se consomem entre o sujeito e a palavra concreta.

 

Percebeu o poeta John Ashbery que “Amanhã é fácil, mas hoje é inexplorado,/ Desolado, relutante como toda paisagem/ Em ceder as leis de perspectiva”. Precisamos de alguma distância para desembrulharmos as linhas de uma época e emergirmos de seu imbroglio ideológico, enredados que estamos nos fios do presente, cujas pontas tateamos.

O objetivo deste artigo é destacar brevemente um aspecto de cinco poetas: a interrogação sobre o lugar do sujeito. São eles: Ferreira Gullar, Augusto de Campos, -Sebastião Uchoa Leite, Francisco Alvim e Armando Freitas Filho. Muito diferentes entre si, cada qual compôs uma obra consistente em que podemos apreender e delinear os embates das últimas décadas. Com eles, é possível puxar essas pontas dos fios da história para abarcar o contexto brasileiro em dimensões mais amplas, dada a necessidade de rastrear os centros nervosos vitais que deságuam na poesia contemporânea, e tendo em vista as reviravoltas que marcaram momentos de crise no Brasil desde os anos de 1950 e 1960. A partir de então, não se podia mais acreditar que houvesse condições para uma retomada da subjetividade nos moldes do alto modernismo, mesmo nos poetas ditos marginais: apesar da leitura consistente de (por exemplo) Manuel Bandeira (1886-1968), Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e João Cabral de Melo Neto (1920-1999) neles presente, cristalizaram-se outras atitudes frente ao mundo e ao próprio eu, uma vez que a consciência da crise política e existencial se tornara imperativa. Quanto à fé revolucionária dos anos de 1960, passou por tais agruras que necessariamente se matizou. Por fim, nem se conseguiria reter o mesmo ideário do construtivismo característico dos anos JK (Juscelino Kubitschek [1902-1976]), quando esperanças de modernização e desenvolvimento afiguravam-se factíveis.

O período próximo à virada para os anos de 1970 foi significativo para o assentamento da arte atual. Quando -Glauber Rocha (1939-1981), em Terra em Transe (1967) critica a figura do intelectual que se julga onisciente enquanto na verdade descobre-se um pau-mandado das elites – longe do povo e perto da própria vaidade –, e quando Hélio Oiticica (1937-1980) inspira-se na construção popular dos barracos, puxadinhos e carnavais para criar parangolés e penetráveis… Pode-se antever o construtivismo enferrujado e opaco de Amílcar de Castro (1920-2002), que (como bem analisou Rodrigo Naves) não escolheu o dúctil e brilhante alumínio para suas esculturas mas o peso do ferro, extraído com trabalho quase escravo das minas, imprimindo, na dificuldade das dobras, a memória do material e de sua dura escavação – também aí uma reflexão sobre transformações importantes na realidade encarnam-se na forma artística como consciência de fundo.

Assim, as décadas subseqüentes contemplaram amadurecimentos importantes na obra de alguns poetas, que se consolidaram em uma linguagem mais complexa, levando em conta vários tipos de tensão entre arte e sociedade. Ao contrário de seus antecessores dos anos de 1950 e 1960, as novas gerações atenuaram seus projetos para o futuro, revendo a crença na possibilidade de transformação redentora da realidade presente, e conseqüentemente, seu lugar como sujeito na história e sua linguagem como expressão de uma voz coletiva.

A partir dos anos de 1970 e mesmo de 1980, observamos dois movimentos que parecem opostos: de um lado, uma paralisação ou repetição de certos paradigmas durante anos a fio (muitas vezes até hoje) e, de outro, a interrupção abrupta de experiências artísticas levadas ao limite. São dois extremos entre os quais há algo em comum: tanto um quanto outro ajudam-nos a compreender porque, como conseqüência da frustração, alguns sofreram a suspensão da própria vida e obra, e outros continuaram a reiterar o mesmo, como se a história tivesse parado. Há, porém, um terceiro tipo de desdobramento: poetas que, sem significativas alterações de fundo, conseguiram adensar e enraizar sua visada reflexiva. Nas artes plásticas, um pintor como Iberê Camargo (1914-1994), nas séries finais dos anos de 1990, vislumbra essa estranha percepção da estagnação melancólica do tempo representando velhas crianças de expressão inocente ou alvar cujo corpo dissolve-se, e cujos olhos se confundem com o azul do fundo, ao lado de uma bicicleta imóvel.

Na poesia de Ferreira Gullar, a crise anunciada foi arraigando-se e transformando-se à medida que a consciência aguda do tempo subjetivo e histórico era análoga à consciência da necessidade da sintaxe discursiva, e mesmo narrativa – até chegarmos ao paradoxo de Muitas vozes (1999), em que o mais prosaico e desataviado dos versos apresenta a impotência da expressão pessoal frente à morte, mas o poético nasce deste cerne duro, alcançando transfiguração ao permear-se da voz do outro e do alarido da rua. Desde o começo, Gullar se debatia entre as memórias mescladas da infância e o desejo de abarcar todos os homens, conectando seres miúdos a corpos celestes, barulhos da cidade e da natureza à situação do país – e revoltando-se contra o lugar fixo de sujeito branco de classe média, e contra o lugar mumificado de artista. A vertigem de minudências e as passagens abruptas do Poema sujo (1976) antecipam a procura da síntese com fraturas que ele sempre buscou, seja no final daquele livro (quando encaixa o homem dentro da cidade, dentro do mundo em uma série que intenta montar um quebra-cabeça de forma metonímica), seja em sua obra mais recente. Os embates entre construção e imersão na existência, e a necessidade de criar uma fala nova aproximando-a da do nascimento e podridão das coisas, acompanham a luta do poeta para aproximar-se do corpo dos seres, nos quais vida e morte, um e outro, convivem.

Já Augusto de Campos retorna muitas vezes ao tema da presentificação reiterada, do circuito do nada ao nada, como um mantra – tempo e espaço circulares, poemas parados no ar – letras de néon piscando, de um agora que pulsa imóvel. Para isso, cria constantes variações da geometria do quadrado em ricochete ou círculos sem saída, como em SOS – uma orfandade do eu vagando no concêntrico.

Embora os poemas do livro mais recente (Não, 2003) acentuem a positivação do design industrial e das possibilidades do computador, observamos que, mesmo depositando confiança na técnica, Augusto de Campos exprime a angústia do sujeito imobilizado que, ou jaz em uma catacumba, ou velho, “mata em si/sua criança”. Como se a crítica do processo de desenvolvimento que se estagnou – na utopia representada por Brasília e no progresso urbano e democrático anunciado pelos cosmopolitas anos de 1950 (e que a poesia concreta encarnou) – se fizesse no inconsciente do poema, numa talvez despercebida tensão: “O poeta morituro te saúda.” Nesse sentido, um poema que coroa a passagem dos anos de 1970 para os de 1980 é o famigerado “Pós-tudo”, ao introduzir a subjetividade biográfica, a temporalidade narrativa e a auto-ironia ao mesmo tempo em que reafirma a forma concreta, gerando um curto-circuito, como um cartaz que, sem renunciar a anunciar, anunciasse a renúncia. Essa afirmação da impotência do eu nas entrelinhas de uma estética que procura superar a expressão lírica é uma das contribuições mais sintomáticas (e por isso interessantes) para compreender os desdobramentos da atual situação brasileira em sua contraditória configuração.

Sebastião Uchoa Leite (1935-2003), cuja obra encerrou-se a pouco, cultivou o humor negro agressivo do sujeito que se posiciona no ataque, vilipendiando a si, à poesia e a tudo o mais, como o acuado que se defende pela exibição. Contra a “baixeza das alturas”, corrói com bravatas de sarcasmo as falsas certezas. Sua espreita é de uma “lucidez amarela” que se quer sadicamente desagradável: “A minha consciência é o verme/e eu sou o cria cuervos.” A sombra de um mundo monstruoso, de crimes e seres aberrantes dá a medida da história como perda, desgosto e tédio. O pó do tempo é companheiro constante, a poesia “é a máquina do nada”. O infra-herói que “é todo coação” (ao invés de coração) e “resíduo de varredura” lembra diretamente a definição do modo irônico, para Frye, em que olhamos de cima para baixo para enxergar o (anti) herói: “Ao vencedor as baratas”… O vampiro se dirige a nós com hostilidade: leitor, “meu não-semelhante”.  Sua poética é de altiva autoderrisão e recusa ao contato. Em seus últimos livros, o indivíduo espionado tenta esquivar-se, negando inclusive as definições de si, e dirigindo-se à realidade com estranheza e suspeita.

Francisco Alvim, batizado pelo amigo Cacaso como o poeta da “voz dos outros”, no Elefante (2000) apresenta nos poemas situações em que a mais funda percepção de impasses individuais perfura pungente o paradoxo entre a eficiência moderna e a paralisia das escolhas do sujeito transformado em coisa, como parábola da estase da vida contemporânea impossibilitada de direção autêntica. O tempo dos velhos, que aparece em tantos versos curtos, é um paradigma desta manivela gasta rangendo no vazio.

No poema justamente intitulado Escolho divisamos o melhor testemunho do impasse mencionado, pois nele apresenta-se a inutilidade do movimento humano, -tematizando o esgotamento da fantasia e da própria ironia. O nome talvez jogue com a idéia sartreana da obrigatoriedade da liberdade individual: o sujeito inexoravelmente responsável por seu destino. Mas, aqui, trata-se de alguém parado de pé em uma plataforma – de trem ou metrô – com um saco de compras entre as pernas, cansado, como um resto abandonado. Pensamentos, idéias, palavras, amores e poemas – exauridos. Só o chão parece sólido, as pernas aqui imóveis nele se apóiam como partes das coisas. E a idéia do escolho é mesmo fluvial porque se imagina entre duas lagunas, dois portos – mas também, entre duas doenças, ou entre duas paixões, breves e exaustivas. As imagens todas reforçam o foco na estagnação reificada.

Conclui o poema com um apelo, como uma prece, em um momento de antiiluminação. Abandona-se a um tipo de providência, não mais divina, mas nesse instante considerada superior à consciência sempre finita e errada. Como se estivéssemos diante de um Ulisses ao revés, queixando-se da falta de rumo da viagem, da indiferenciação entre homem e mundo, em um cansaço que o reduz às mercadorias. Não mais aquele sentimento de indivisão épica entre interior e exterior, nem o belo abandonar-se à percepção do mundo a ponto de nele transfigurar-se para mais intimamente exprimi-lo. Temos, ao contrário, uma paródia extrema disso. Quem sabe como seria melhor alienar-se e deixar-se levar pelo arbítrio do acaso, que transformaria o escolho do eu na escolha impessoal…

Já o lugar do sujeito em Armando Freitas Filho é o do perseguido pelo tempo e pelo mundo, que vêm ameaçá-lo e contra os quais faz-se necessário urgentemente resistir. O poema mimetiza o duelo, a faísca, a tentativa premente de agarrar no último minuto a palavra que vai fugir. O real é dificultoso de alcançar, e o poeta se esforça com vísceras e músculos, com todo vapor, num feixe de gritos, para sair no seu encalço e apreendê-lo: “Pulo de dois pés juntos/para dentro de você, de mim./O coração parte com todos os cavalos.” Mas o limite do sujeito impede o vôo para fora de si, então o poema se revolta e lamenta de forma obsessiva, e de novo arremete com toda a coragem, munido de seus instrumentos de escrita e percepção, ao encontro do mar mais bravio, do muro sem passagem, do papel vazio. O corpo acompanha a escrita, e fica a descoberto, exposto à ferida das “sucessivas erratas” que o roçar do real rascunha no papel da pele. A tentativa de expressão forceja por todos os poros, procurando frestas por onde passe a palavra e sua substância vital ou de onde possa receber o mundo e dele embeber-se.

Pois o crivo fundamental que separa as águas do tempo presente dos anteriores, e sub jaz a concepção deste período atual, consiste na dúvida sobre o sujeito e sobre a continuidade histórica. As relações do indivíduo consigo próprio e com o outro, a cidade, a política, a linguagem, ou mesmo com passado e futuro são colocadas sob suspeição. Assim, o selo da poesia contemporânea não está nem na morte do sujeito (e do autor) nem em sua integridade biográfica e histórica, mas em um lugar de cisão. Dirão que tal irrupção da desconfiança na identidade já germinara desde o início da modernidade. Percebemos, no entanto, que a plena radicalização disto, com a percepção da descontinuidade entre o sujeito e este mundo tornou-se mais intensa e visível. A perplexidade perante o excessivamente veloz e fragmentário obriga o poeta a posições defensivas: seja pela recusa, seja pelo ataque, seja pelo travamento reflexivo ou irônico. 

Cada qual com uma linguagem inconfundível, estes poetas se consomem na fatura do verso a ponto de neles identificarmos menos o sujeito particular e muito mais a palavra concreta de nossa época (da qual também participamos). A firme decisão de continuar a escrever nesses tempos duros advém da consciência de que “O poema é uma coisa/que não tem nada dentro,//a não ser o ressoar/de uma imprecisa voz/que não quer se apagar/– essa voz somos nós.” (Ferreira Gullar, Não-coisa).

Viviana Bosi
é doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP). Autora de John Ashbery, um módulo para o vento, Edusp, 1999.

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