Cinco brasileiras que fizeram do corpo um instrumento artístico e político
Celeida Tostes na performance 'Passagem', de 1979 (Foto Henry Stahl)
No início da década de 1960, a América Latina assistia à eclosão generalizada de ditaduras militares. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela entravam em uma época de repressão que se arrastaria até os anos 1980. Na época, despontaram artistas como Lygia Pape (Brasil), Ana Mendieta (Cuba), Beatriz González (Colômbia) e Cecilia Vicuña (Chile), que, por meio de diferentes expressões artísticas, partiram do corpo feminino para denunciar a violência social, cultural e política de seus países.
Desde o início de setembro, seus trabalhos estão em exposição no Hammer Museum, em Los Angeles, na mostra Radical women: latin american art, 1960-1985, em cartaz até 31 de dezembro. São 260 obras de 116 artistas de 15 países – criações que, entre vídeo, fotografia, pintura, escultura e performance, fizeram do corpo um instrumento de arte e política.
“Para as artistas selecionadas nessa exposição, o corpo feminino tornou-se um local de exploração e redescoberta em uma nova e radical linguagem visual, que desafiou o jeito de compreender o mundo”, disse Cecilia Fajardo-Hill, co-curadora da mostra, a primeira nos Estados Unidos que se propõe a investigar práticas artísticas experimentais conduzidas por mulheres na América Latina. Há 23 brasileiras, entre estas Márcia X, Celeida Tostes, Letícia Parente, Martha Araújo e Vera Chaves Barcellos. Leia mais sobre as artistas abaixo.
Márcia X
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Vestindo duas camadas de “não-roupas”, uma capa de plástico preta por cima de outra transparente, a artista Márcia Pinheiro lia um poema de sua autoria enquanto seu parceiro, vestido de homem-sanduíche, cortava partes da veste preta. O corpo nu da artista, aos poucos, ficava visível sob a capa transparente. Cellofane motel suite, como foi intitulada a performance, chocou o público da Feira Internacional do Livro do Rio de Janeiro de 1985. A dupla foi retirada do local com um policial apontando-lhes uma arma.
Uma estilista, também chamada Márcia Pinheiro, soube da performance e escreveu um texto caçoando da artista, fazendo questão de destacar que não eram a mesma pessoa – foi quando a performer decidiu incluir o ‘X’ em seu nome. Posteriormente, críticos de arte como Ricardo Basbaum diriam que a letra era sua “partícula questionadora”, um indício das experiências que promoveria no limite entre o mundo cotidiano e a transgressão.
Em suas performances, Márcia X expressou essa perversão dos limites principalmente quando abordou temas como a infantilização do mundo adulto e a sexualização da infância. É o caso da mostra individual Kaminhas sutrinhas, de 1995, que apresentava 28 camas com dois ou três bonecos sobre cada uma (sem as cabeças e conectados por fios de aço). Ao serem ativados pelo espectador, começavam a simular posições sexuais ao som de músicas tema da Disney.
Filha de pais conservadores e ultracatólicos, Márcia X também usou a sexualidade para criticar a Igreja. Na série Fábrica fallus, iniciada na década de 1990, usava artigos de sex shop para representar objetos ligados à feminilidade e à Igreja Católica. É sempre lembrada por Desenhando com terços, de 2001, em que usou os objetos para formar imagens de pênis.
Desde o início da carreira, seus trabalhos foram perseguidos e censurados pelo teor pornográfico. O último caso aconteceu em 2006, quando o prefeito do Rio de Janeiro retirou Desenhando com terços da exposição “Erotica – Os sentidos na arte”, no CCBB. Márcia X morreu em 2005, aos 45 anos, em decorrência de um câncer.
Celeida Tostes
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Nascida em 16 de abril de 1929 no Rio de Janeiro, Celeida Tostes perdeu a mãe com apenas um ano. Foi morar na fazenda dos avós no interior do Rio. Do contato com a natureza veio o interesse pelo que, mais tarde, seria a matéria prima de toda a sua produção artística: o barro. No material, encontrou uma forma de se reconectar com o feminino em sua “relação com a terra, com o orgânico, o inorgânico, o animal, o vegetal”.
Em Passagem, de 1979, por exemplo, cobriu-se de argila e entrou num enorme jarro de barro para depois forçar sua saída, como se expelida de um útero. As fotos da performance, feitas por Henri Stahl, fizeram parte de uma individual da artista, na Galeria Rodrigo Melo Franco de Andrade, na Funarte.
“Meu trabalho é o nascimento. Ele nasceu como eu mesma nasci – de uma relação com a terra, com o orgânico, o inorgânico, o animal, o vegetal. Misturar os materiais mais diversos e opostos. Entrei na intimidade desses materiais que se transformaram em corpos cerâmicos. Começaram a surgir bolas. Bolas com furos, com fendas, com rompimentos que me sugeriam vaginas, passagens. Senti então a necessidade imensa de misturar-me com o meu material de trabalho. Sentir o barro em meu corpo, fazer parte dele, estar dentro dele”, disse.
Antes disso, havia criado uma série de esculturas redondas em cujas fendas inseria outros objetos. Também criou vaginas, úteros, corpos femininos e masculinos. Depois de Passagem, sua produção artística e acadêmica tornou-se mais intensa – venceu o prêmio Menção Especial do júri do IV Salão Nacional de Artes Plásticas, em 1981, por Aldeia (na qual apresentava esculturas em forma de casas de joão de barro) e no ano seguinte O muro foi selecionada para o V Salão Nacional de
Artes Plásticas.
Junto à atividade artística, Tostes manteve até o fim da vida a atividade acadêmica aliada a iniciativas sociais, como o Projeto de Formação de Centros de Cerâmica Utilitária nas Comunidades da Periferia Urbana Morro do Chapéu Mangueira. Também lecionava na Escola de Belas Artes da UFRJ e, a partir de 1975, ocupou o cargo de diretora substituta da Escola de Artes Visuais (EAV) do Parque Lage, onde implantou a Oficina das Artes do Fogo e Transformações de Materiais. Ali, sua atuação foi considerada transformadora e de grande influência sobre toda uma geração de artistas. Morreu em 1995 por causa de um câncer mama. Participou de cinco mostras individuais e 48 coletivas.
Letícia Parente
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Em um vídeo de 1975, uma mulher costura as palavras “made in Brasil” na sola do próprio pé. Ela é Letícia Parente, artista baiana que com a performance Marca registrada, colocava-se como uma das precursoras da videoarte no Brasil. Por meio dessas imagens, Parente denunciava uma época em que “ser feito no Brasil” implicava mesmo dor física, já que a ditadura militar passava pelo seu momento mais violento.
Nascida em Salvador no ano de 1930, a artista foi professora da Universidade Federal do Ceará – onde obteve o doutorado em química – até se mudar para o Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Em 1972 entrou em contato com um movimento artístico que procurava romper os paradigmas da “arte emoldurada” para pensar um trabalho poético que articulasse texto, voz e corpo em performances que envolvessem o espectador no próprio processo artístico.
Seus principais trabalhos datam dessa época. Em Preparação I, vemos a artista cobrir os olhos e a boca com esparadrapos para depois desenhar dois olhos e uma boca sobre eles. No ano seguinte, em 1976, estreou sua primeira exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, ganhando projeção nacional. Em 1981, participa da 16ª Bienal Internacional de São Paulo, onde expõe algumas de suas principais obras, como In (1975), Preparação II (1975), Especular (1978), De aflicti – Ora pro nobis (1979) e Nordeste (1981).
O traço característico dessas criações é a presença do corpo da própria artista como objeto de indagações estéticas e políticas. Em Preparação II, por exemplo, a artista parece se preparar para sair do país e, para isso, aplica injeções no braço, vacinas contra o racismo, o preconceito, a colonização cultural. No mesmo ano, Parente prepara a série de vídeos e fotografias Eu armário de mim, em que colocava o corpo para questionar o espaço social da mulher, outra marca de sua produção artística.
Em um dos vídeos da série, ela se pendura dentro de um guarda-roupa, enquanto repete, como um salmo, a frase “eu, armário de mim”. Em outro vídeo, ela pendura seus cinco filhos no mesmo guarda-roupa, fazendo uma crítica ao espaço doméstico ao qual a mulher está submetida. Em Tarefa I, de 1982, deita-se sobre um tábua de passar enquanto outra mulher passa um ferro sobre suas roupas, ainda em seu corpo.
Apesar da trajetória na arte, Parente não abandonou a química. Dava aulas na PUC-RJ e, um ano antes de morrer, em 1991 no Rio de Janeiro, publicou o livro de filosofia da ciência Bachelard e a química (Edições UFC).
Martha Araújo
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Em 1983, Martha Araújo andou pelas ruas de Maceió arrastando uma bruxa de pano amarrada na ponta de um barbante. Chamou a “performance” de Apêndice bruxuleante. Ouviu a palavra pela primeira vez um ano antes, depois de realizar uma ação com tecidos no centro da capital, onde se sentia incompreendida.
Por isso, mudou-se para o Rio de Janeiro e lá viveu seu momento mais produtivo, entre 1984 e 1988. Fazia aulas de escultura com Tunga e Haroldo Barroso, no Museu Ingá, quando criou uma das peças da instalação interativa Para um corpo nas suas impossibilidades, na qual os visitantes são convidados a vestir macacões com faixas de velcro por toda a sua extensão.
Ali, buscou refletir sobre a liberdade, tema que passa pela maioria dos seus trabalhos, que também tratam da subjetividade individual e coletiva, e das interações dos corpos com o mundo. “Vista-se e seja um único corpo, numa única direção”, escreveu para justificar os conceitos do trabalho Roupa coletiva, de 1982.
Ainda no início da década de de 1990 a artista teve reconhecimento internacional, principalmente com a série de objetos Piaçabugos (1989), esculturas táteis feitas de espuma de poliuretano e fibras de piaçava. Além desses objetos, Araújo também compõe imagens em que mistura recortes, fotografias e desenhos. É o caso das obras expostas em Eu não sou eu e nem você, mostra individual realizada em 2012 na Pinacoteca de Maceió, onde reside atualmente.
Vera Chaves Barcellos
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Com apenas 22 anos, Vera Tubino Guerra, que cursava Artes Plásticas no Instituto de Belas Artes da UFRGS, participou de sua primeira exposição, em que apresentou dez desenhos ao lado de outra artista do Instituto. No mesmo ano, casou-se e adotou o nome com o qual ficaria conhecida internacionalmente: Vera Chaves Barcellos.
Após a exposição, a artista, nascida em 1938 em Porto Alegre, recebeu uma bolsa para estudar pintura, gravura e desenho na Europa. Voltou ao Brasil em 1962, quando começou a compor com litografia. De volta à Europa no início da década de 1970, foi estudar fotografia e técnicas gráficas em Londres.
Uma de suas primeiras obras em que aparece a influência da fotografia é a série Testarte, de 1974. Em um envelope, o espectador recebia sete imagens, cada uma com uma pequena descrição e uma pergunta. A intenção era que respondessem mentalmente as perguntas e, assim, interagissem psicologicamente com a obra. Com essa série, a artista foi convidada a representar o Brasil na Bienal de Veneza, em 1976.
Para a mostra Radical women, foi selecionada outra de suas séries fotográficas, a Epidermic scapes (1977). São closes fotográficos de partes do corpo, detalhes da pele, dos pelos. Para essa criação, Vera Chaves carimbou pedaços de seu corpo em folhas vegetais, que, à semelhança de negativos fotográficos, foram ampliados em imagens detalhadas.
Desta época, data a criação do grupo Nevo Óptico, de que a artista fez parte, e que incentivou até os anos 1978 a produção artística de seus contemporâneos. Na capa do sétimo boletim do grupo, publicado em outubro de 1977, vemos outra obra de destaque da artista: A respeito do sorriso, na qual registra quinze amigos com uma pequena placa de identificação em que se lê “keep smiling” (continue sorrindo). A obra foi compreendida pela crítica como uma ironia ao período ditatorial.
Em finais dos anos 1970, a artista começou a trabalhar com plataformas multimídia. Em uma de suas primeiras experimentações em vídeo, Momento vital, de 1979, ela recita um livro composto de um único parágrafo. Nas falas, questiona a existência de um “eu” no momento presente. A partir de então, Vera desenvolveu uma obra multifacetada, misturando formas de expressão. Em 2007, uma exposição que homenageava seus 40 anos nas artes reuniu 114 obras, dando a dimensão desse desenvolvimento artístico.
COLABOROU AMANDA MASSUELA
(2) Comentários
Muito bom! Seria interessante também trazer notícias sobre a visceral artista paraense Berna Reale.
Muito bom artigo