Chantal Mouffe e a filosofia política

Chantal Mouffe e a filosofia política

Como os conceitos de identidade, política e democracia radical podem ser apropriados por uma interpretação do feminismo

Josadac Bezerra dos Santos

Em O regresso do político, coletânea de ensaios da filósofa Chantal Mouffe, o feminismo aparece associado a uma corrente do pensamento político. Mouffe faz uma distinção entre o que ela chama de “a política” e “o político”. Na primeira expressão, a referência é ao mundo da política entendido como a organização institucional do Estado e das instituições representativas, tais como partidos políticos, sindicatos, igrejas, associações de classe, entre outras. Na segunda, a referência é a uma compreensão teórica segundo a qual a sociedade estaria pulverizada por uma diversidade de situações de conflito e de relações de opressão, onde se evidencia a luta pela igualdade e/ou liberdade em determinados pontos do social, numa clara indicação de que o projeto político moderno elaborado pelo liberalismo falha no propósito de estender, a todos e a todas, tais benefícios.

A contribuição específica de Mouffe vem do que ela entende por “democracia radical”, e de suas reflexões sobre a relação amigo/inimigo em política. A autora parte da noção de Carl Schmitt, para quem o fundamento do conflito político se encontra na existência de um elemento de hostilidade entre os seres humanos. Ora, ao reconhecer a natureza necessariamente diversificada das relações sociais, e nelas as condições de possibilidade do surgimento de conflitos em determinados lugares do social, Mouffe estabelece as bases para a defesa de sua teoria política, que, ao contrário da perspectiva liberal, sustenta a importância do dissenso numa sociedade democrática. A este reconhecimento, Mouffe chamou de “pluralismo agonístico”. A natureza radical da democracia estaria, portanto, na impossibilidade de erradicação do antagonismo.

Características do conceito de identidade

Em relação ao conceito de identidade, pelo menos três características precisam estar claras: a primeira é o caráter relacional inerente às identidades. Toda identidade constrói-se na relação com o outro. No conflito político, o “eu” só existe como diferença do “outro”. O “eu” (particularismo) tende a associar-se a outros, construindo-se assim um “nós”, que por sua vez tende a se opor a um “outro” que se articula a outras particularidades, formando um “eles”. É nesse momento que “o político” aparece ontologicamente no processo social.

A segunda característica da concepção de identidade em Mouffe (e também em Ernesto Laclau) é o antiessencialismo. Este é a negação da existência de um fundamento único, de caráter universal e de natureza permanente. E a terceira seria o descentramento do sujeito, como explicitado em A identidade cultural na pós-modernidade (2004), de Stuart Hall, em virtude do reconhecimento de que também não é possível falar-se em um sujeito universal completamente transparente, o que por sua vez implica admitir-se a existência de posições de sujeito. Isso significa que agentes sociais são portadores de diferentes posições de sujeito em situações diferentes na sociedade, o que impede que qualquer uma dessas posições torne-se completamente fixa.

Assim, para Mouffe, não é possível falar da categoria “mulher” nem enquanto sujeito universal nem enquanto uma identidade essencial do feminismo. Aliás, essa rejeição radical a qualquer essencialismo tem sido um dos marcos mais relevantes do seu pensamento em relação às outras concepções teóricas feministas, uma vez que a sua principal crítica às demais correntes consiste em afirmar que as diversas teorias feministas preservam algum tipo de essencialismo. Mais do que isso, um essencialismo preexistente aos conflitos inerentes à própria construção das identidades, o que na sua visão impossibilita a resolução do problema fundamental apontado pelo movimento feminista: a desigualdade entre os sexos e a situação de opressão em que, em muitas circunstâncias, se encontram as mulheres.

A solução apontada por Mouffe passa, então, pelo que ela entende ser o caminho possível para um feminismo consequente do ponto de vista político: o reconhecimento de que a luta das mulheres se assemelha a outras lutas de outros movimentos que buscam o mesmo valor político em situações conjunturais concomitantes; e que só será possível falar de um movimento feminista se for colocada em prática uma política articulatória entre movimentos que lutam por um significado particular de liberdade e/ou igualdade.

Para Mouffe, portanto, o feminismo só se afirma como movimento político consequente fazendo parte de uma ação arti-culatória mais ampla que – junto com uma cadeia de equivalências formada por outros movimentos cujo discurso aponta para situações de opressão – lute por liberdade e igualdade na busca pela democracia em lugares pontuais do social, onde esses valores políticos não estejam total ou parcialmente presentes. Assim, exclui-se também a possibilidade de que Chantal Mouffe apresente uma teoria social exclusivamente feminista, como o fazem outras autoras, uma vez que suas concepções sobre a revolução do nosso tempo implicam a construção de um projeto político mais amplo.

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