Cartografia histórica e genética da Filosofia grega
O epicentro da Filosofia grega não está na Grécia européia, e sim na asiática, nas costas da Jônia
Embora haja precedentes do pensamento especulativo em civilizações pré-helênicas, a filosofia grega se diferencia por ser para nós um fenômeno histórico circunscrito no espaço e no tempo, submetido a diversas relações históricas em que nos localizamos com facilidade. Isto se deve não apenas ao fato de que somos leitores de Platão e de Aristóteles, nem só ao fato de que as epistemologias dominantes do Ocidente têm aí sua fonte, mas especialmente porque temos pela frente um mapa: uma constelação de cidades e autores, seus idiomas e escritos. A Grécia, as Cíclades, a Ásia menor. Tente o leitor neste momento figurar-se um mapa (histórico, geográfico, idiomático ou filosófico) do pensamento védico ou laoísta, e compreenderá bem do que estamos falando no caso grego. Olhemos um pouco, portanto, para este mapa do pensamento filosófico grego, em sua formação.
O epicentro do fenômeno não está na Grécia européia, e sim na asiática, nas costas da Jônia, ou seja, nas franjas da Ásia menor. Não exatamente no continente dos guerreiros, mas a oriente, nas praias dos mercadores. A Jônia da idade do ferro era um território com diversas e fecundas conexões com as civilizações orientais, especialmente com a -Mesopotâmia, que ora experimentava intensa atividade política e cultural, sob domínio assírio. A capital dos assírios, Nínive, situada ao norte, tornou-se, a partir do século 9 a.C., uma cidade próspera, palco de uma aristocracia capaz de financiar artistas de talento. Uma das obras-primas do British Museum é o filme em baixo-relevo desta aristocracia (a cena da caça), em que se vê o talento de um artista de raro virtuosismo, superado apenas por mestres gregos dos séculos 5 e 4 a.C.. Ninguém imagina que surja um tal artista sem escola e consumidores. A melhor edição do épico Gilgamesh é a versão de Nínive, um conjunto de 12 tabletes contendo a matriz dos épicos antigos e modernos – os gregos, inclusive.
A biblioteca de Nínive não guardava apenas saga guerreira, mas também o estoque de uma ciência acumulada em milênios de intensa atividade investigativa na Mesopotâmia, uma ciência estrategicamente articulada com a atuação do clero e a educação dos príncipes. O período de hegemonia assíria, que se inicia nos primórdios da idade do ferro (século 12 a.C.) e adquire máxima intensidade no momento em que a Grécia ressurge das cinzas pós-micênicas (séculos 9 e 8 a.C.), significou um renascimento da cultura mesopotâmica, com um esforço de transporte e tradução das fontes e escolas outrora mais poderosas no sul, entre Babilônia e as cidades súmero-acadianas. Ou seja, falamos de um território de alta atividade cultural financiada por reis prósperos. Este gosto pela alta cultura fez de um rei assírio o fundador da primeira biblioteca de que se tem notícia, a de Assurbanipal (reinou entre 669 e 627 a.C.), em Nínive. Esta cidade está na injunção de diversas rotas que a conectam ao sul mesopotâmico e a todo o complexo cultural do crescente fértil, especialmente Egito e Fenícia, e aos caminhos que, bordejando os montes -Zagros, levam (e trazem) ao oriente, à Pérsia e às vias que por aí se expandem em direção à Índia e à China.
Esse mundo está diretamente conectado com a Jônia, na qual se transmitem à cultura grega informações preciosas, sobretudo métodos, técnicas e enciclopédias de conhecimento matemático e astrônomo-astrológico. Tales de Mileto, o primeiro filósofo, parece ter ganhado dinheiro e fama com seu conhecimento astrológico. Ele é, claramente, o elo biográfico entre o mundo oriental e o Egeu clássico. À sua volta, as cidades de Samos, Éfeso, Halicarnasso, Cós, Colofón, Clazômenas, Mitilene, cada uma delas berço de ao menos um dos sábios que mudaram o mundo entre os séculos 7 e 5 a.C.; às costas deles, o Rio Meandro, um vale convidando para o coração da Ásia menor, várias sendas levando às ruínas do Império Hitita (seus primos, indo-europeus) e ao cruzamento de muitos caminhos asiáticos.
Os cacoetes do eurocentrismo, que magnetizaram os estudos antigos por muitos séculos, já desconstruídos por severa crítica historiográfica (Campeão : Martin Bernal, 1986), não nos podem mais ocultar a orientalidade exuberante do mundo grego. As vinculações entre estas tradições têm sido sublinhadas por especialistas como Martin West, Walter Burkhert, Jean Botero, Charles Penglase e Catherine Herrenschmidt, e nos fornecem o quadro adequado para situar com amplitude histórica e cartográfica o estudo das fontes da cultura grega. Em fenômenos de difusão cultural, não se trata de vinculação institucional, mas sim de situações epidêmicas, de transmissão de mensagens culturais por contágio em processos continuados, dispersos e raramente sujeitos à determinação dos Estados. Nestes processos, a mediação tende a ocorrer através do trânsito de mercadores, aventureiros, perseguidos políticos e outros dissidentes. Não é de estranhar que estas mediações sejam poderosas transmissoras de inteligências como as da escrita, do número, da astrônomo-astrologia e de um repertório de imagens e problemas sobre o mundo.
Os gregos pareciam estar pouco cientes desta relevância mesopotâmica. Platão e -Heródoto preferiam localizar a fonte da cultura grega no Egito, impressionados pela imperecível monumentalidade e beleza desta civilização, também dotada de muitos méritos científicos e instrutores da gente grega em vários pontos. Todavia, quando a Academia de Platão tornar-se vítima da intolerância cristã, e receber de Justiniano a sentença de encerramento (em 529 d.C.), o destino deste legado trará uma indicação muito simbólica. Após um breve intercurso em Chipre, os últimos platonistas irão finalmente acomodar-se em uma pequena cidade ao norte da -Mesopotâmia. Trata-se de Haran, situada a poucas dezenas de quilômetros de Nínive, para onde, fechadas as bibliotecas do Ocidente e perseguidos seus entusiastas, migrou ciência acumulada em escolas gregas desde o século 7 a.C..
Francisco Marshall
é professor do Departamento de História e coordenador do Núcleo de História Antiga da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Autor de Édipo Tirano, a tragédia do saber (UFRGS/UnB, 2000). Criador e curador cultural do StudioClio- Instituto de Arte & Humanismo ( www.studioclio.com.br).
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Artigo sintético e profundo, desvela o eurocentrismo presente nas percepções hodiernas do pensamento grego antigo, berço complexo dos fazeres civilizatórios ocidentais.