Carta a homens brancos de esquerda
(Arte Andreia Freire)
Eu não quero ouvir vocês. Nenhum de vocês. Estou de luto. Está doendo. Preciso de silêncio para dar espaço à dor e à raiva. Suas análises, formulações, propostas não me interessam. Preciso ouvir a mim mesma e a tantas outras mulheres negras cansadas de gritar.
Os tiros em Marielle Franco foram em todas nós. Eu sei que você sente que foi em você também. Mas não me interessa o que você sente. Não me interessa também saber que Marielle era uma negociadora e que possivelmente ela te ouviria e acolheria. Abertura para o diálogo e postura democrática não a protegeram das balas.
Pode ser que em algum momento eu queira te ouvir de novo. Espero que não. Porque eu te ouço desde que existo. E sinto que poucas vezes você parou para me ouvir. Você, com todas as boas intenções de um homem de esquerda, sempre foi contrário ao machismo, ao racismo e por isso mesmo assumiu para si o papel da revolução. Deixar isso para mulheres, ainda mais para mulheres negras, seria um erro! Você, com toda a inteligência iluminada e virilidade aguerrida que só um homem branco tem, é obviamente quem pode mostrar os caminhos para a luta política. Eu sei que você genuinamente acredita que o melhor para mim é te seguir. Mas preciso revelar uma coisa: eu não acredito nem nunca acreditei nisso. Mesmo quando balancei um sim com a cabeça, sorri ou arregalei os olhos de admiração fazendo você se sentir fantástico.
Muitas vezes te deixei discursar sem interrupção ou discordância por tática. Eu te dobrei algumas vezes desse jeito e até consegui seu apoio fingindo seguir suas diretrizes. Mas cansei de fazer desse jeito. Pelo menos por agora, essa tática não me serve mais. Porque posso me perder no meu silêncio e acreditar eu mesma, ou dar a entender às minhas iguais, que concordo, aceito ou estou deixando o espaço vazio para que você ocupe. Definitivamente, não é isso.
Além do mais, estou engasgada. E a execução de Marielle, que nunca vai ser digerida por mim, impede que qualquer outra coisa pare na minha garganta. Eu não posso mais ficar quieta. Quando as balas silenciaram Marielle, essa opção me foi arrancada. Vou falar. Vou gritar. Mesmo que eu seja ouvida apenas por mim mesma. Porque eu sou muitas.
Sou mulher negra, 27% do Brasil. Sou mulher, 52% da população. Sou eu quem cozinha, lava a roupa, limpa a privada, porque sou 92% das empregadas domésticas e também gasto o dobro do tempo que você nessas atividades. Em mais de 40% das casas, eu sou a chefe de família, apesar de ganhar 23,6% menos do que você. Eu choro sem nenhuma vergonha, cuido das minhas emoções e das suas. É do meu útero que você e seus filhos nascem. Eu preciso me ouvir. Preciso ouvir quem carrega as pessoas no ventre, nos braços e nas costas, apesar de todas as condições adversas.
Ao contrário de você, eu tenho muito mais perguntas do que soluções. Preciso formular melhor essas perguntas e direcioná-las de forma adequada. Um exemplo: sou anticapitalista e anseio por uma vida que não gere lucro para empresas e morte para as pessoas. Não sei como fazer. Na Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, a média de rendimento das mulheres negras, em 2010, foi de R$ 403,65 por mês. Essas mulheres mantêm a vida delas e a de seus filhos com relações e trocas que extrapolam as capitalistas, porque é impossível viver em São Paulo com esse valor. Essas mulheres eu quero e preciso ouvir, não você.
Mas, por favor, não fique chateado. Você pode tentar conversar com seus amigos. Talvez eles não te ouçam e aproveitem a oportunidade para um monólogo, há uma limitação neles, mas você pode tentar. Também posso te mandar umas flores ou te dar um chocolate ou postar nas redes sociais alguma frase bonita sobre você. Se isso ajudar, faço de bom grado, está bem? Me manda um e-mail bem curto, escrito “biscoito” no assunto.
Com amor,
Bianca
P.S.: Em 13 maio de 2016, durante o I Seminário de Feminismo do Iesp-Uerj, conheci Marielle Franco. Depois de minha participação na mesa sobre produção e circulação do conhecimento, Marielle levantou a mão e reforçou a importância de nós, mulheres negras, ocuparmos aquele espaço e todos os outros. Ela disse que tinha acabado de comprar a Revista CULT daquele mês, com a entrevista que fiz com Eliane Dias, minha primeira contribuição aqui. “Ocupe mesmo! E leve muitas pretas para as páginas da revista”, ela convocou. De novo, e sempre: Marielle presente!
Vozes-mulheres
Conceição Evaristo
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
De uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
No fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.