‘Aranhas’ e ‘rita hayworth foi a paris’: livros de leitor e alta velocidade

‘Aranhas’ e ‘rita hayworth foi a paris’: livros de leitor e alta velocidade
O escritor Carlos Henrique Schroeder, autor de "Aranhas", publicado pela Record (Foto: Thays Magalhães)

 

 

“o familiar é uma espécie de burocratização do amanhã, já que é território do mesmo, da reiteração de circuitos repetitivos. […] o que só pode ser pensado na lógica do mercado, do fluxo de valor da mercadoria, da velocidade da publicidade, das linhas de tempo que mostram sempre, como exemplos, a sabedoria do trabalho engajado defendendo, no fundo, uma teoria desenvolvimentista do progresso e a paciência e a espera como virtudes.”

Edson Luiz André de Sousa em Uma invenção da utopia

 

Logo no começo de Velocidade e política, o filósofo francês Paul Virilio anota que “a massa não é um povo, uma sociedade”, e que um contingente revolucionário não atinge uma forma ideal nos lugares de produção, mas sim na rua, quando substitui a máquina e torna-se, assim, “motor (máquina de assalto)”, ou seja, “produtor de velocidade”. É a partir daí que infere o paradoxo: “a revolução é o movimento, mas o movimento não é uma revolução”; e, depois, o conceito de dromologia que, por sua vez, sugere que a velocidade é a essência de uma fábrica de guerra total, absoluta, que não se dá mais no espaço, mas no tempo, numa cronogeografia do progresso tomado como humano e social, terminantemente técnico, industrial, militar, bélico, uniforme etc. Fácil perceber, desde que se queira, que o fascismo se autoriza numa integralidade dromocrata, como uma hierarquia da velocidade que gera, dessa maneira e sem parar, um sem número de corpos incapazes, como sugere Virilio, “do pedestre ao foguete, do metabólico ao tecnológico”.

Nessa doce ilusão do movimento, quando o estatuto deflagrado é o da condecoração ordenada pela burocracia, inclusive o de uma “burocratização do amanhã”, expressão cunhada pelo psicanalista e professor Edson Sousa a partir de Ernst Bloch, o que se postula é uma segurança que só pode ser consumada através de uma única estratégia: acumular dinheiro. Aí um ponto que separa, definitivamente, num princípio quase vulgar, a ideia de trabalho da ideia de capital. Se estamos diante de uma geração que “empreende” como acumuladora, não mais de selos usados com figuras sem cabeça ou de caquinhos coloridos de louça, como a boneca Emília, mas sim de uma investida limitada e oprimida pela automação da moeda, numa corrida miniaturizada e complacente que apenas reitera circuitos repetidos e que, de todos os modos, anula o campo político porque, antes, anula o pensamento deixando estável e inabalável apenas a opinião corriqueira que circula mais simples, igual e inequivocamente.

Uma tarefa da literatura, a de tensionar o campo político da ação através daquilo que a contraria, o gesto, tem longo percurso e aparece e reaparece, principalmente, na imaginação constitutiva de personagens e seus embaraços com o espaço. Leia-se aí, radicalmente, os de Franz Kafka e Samuel Beckett, por exemplo, com uma força inventiva de contextos sem piedade e traçados na linha extrema do impossível para a construção de uma noção de povo; e, numa deriva suspeita, sem a força inventiva daqueles, alguns desenhos de Dalton Trevisan ou João Antônio, cada um a seu modo, com figuras que aparecem muito mais pela desqualificação circunscrita a cotidianos medonhos de enfado e pobreza, vida suburbana e aglomerada, manobra de massa invisível e nunca de povo. Rapidamente o que marca, nos dois primeiros, um caráter de denúncia e, nos dois brasileiros, um caráter de anúncio.

É a partir de um jogo de transparências, marcadamente latino-americano, com toda essa brevíssima conversa anterior e com muita força e esforço, que Carlos Henrique Schroeder e André Gonçalves, dois exímios e sofisticados leitores, de tudo, reabrem o compasso a partir de seus livros até agora, mas é nesses últimos que algum dissensus se alarga de vez, respectivamente: Aranhas (Record) e rita hayworth foi a paris (Quimera). Há um empenho de circunscrição que solicita ser anotado: Carlos é do sul, Santa Catarina, também editor e produtor cultural, deslocado num pequeno burgo industrial, cidade que hoje é quase plenamente bolsonarista, e publica por um grupo editorial do centro do país; André é do nordeste, Piauí, também editor e fotógrafo, deslocado de quase tudo, edita uma revista incrível, a Revestrés (esta sim, e sem respaldo banqueiro) e publica por uma editora mínima. A cada um, sem tirar nem pôr, suas táticas de guerrilha.

O que vem nesses e desses livros é um estalo contra uma massa homogênea que se nega, estratégia de mercado, àquilo que se imprime por subtração. Essa negação é o que Paulo Leminski chamava de “história mal contada”, porque entendia que a literatura brasileira mais recente (eram os anos 1980), em prosa, dizia ele, não tinha assombro, nenhum espanto, mas tinha uma pauta meramente realista e sofrível frente a essa clave de sol alienada, a do martírio sem dissuasão. Medida a anúncios, tal e qual o país que a anuncia, seu último sopro teria sido o Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. E é isso o que a diferenciava, de uma maneira inequívoca, escreve o selvagem Leminski, do que se produzia e produz na vizinhança de língua hispânica, que prefere se esmerar num entendimento de que o real é o que vem e não cessa de acontecer, tal como Lacan, e que torna-se uma alucinação à frente dos olhos quando se lança ao pensamento como uma intermitência de imagens imprevistas, heterogêneas, sem referente. Este é o ponto: escapar da banalidade que se arroga à exclusividade de tomar-se como “literatura brasileira contemporânea”.

andre goncalves Maurício Pokemon
O escritor Andre Gonçalves, autor de ‘rita hayworth foi a paris’ (Foto: Maurício Pokemon)

Em que pese a dimensão do imediato contemporâneo, o que não tem importância alguma, é mera violência veloz, e se estamos diante de dois leitores convictos – bom lembrar do Che de Ricardo Piglia, o que faz uma pausa e lê no interior da experiência em situações de ameaça e destruição, e do “leitor” de Wilson Bueno, “um animal de pequeno porte, vivo” –, estamos também diante da invenção deliberada do inacabado que se apresenta como o inespecífico da literatura a partir de quem ainda é capaz de ler para nada, apenas “porque ler é melhor do que não ler”, afirmava Italo Calvino. Edson Sousa aproxima essa invenção de uma ideia de utopia e, lendo Lacan, diz que enfrentar o real tem a ver com “o inarrável, o imponderável, o desassossego radical em que a vida nos joga”, ou seja, “dizer com um desejo de utopia”, quando ela “circunscreve um território de crise” e, muito mais, ela é a possibilidade de “uma fratura no presente”. Por isso é impressionante perceber como a realidade brasileira, e seu fosso abissal entre miséria e riqueza, projeta tanto e ainda a dissonância da luta de classes e é, ao mesmo tempo, a projeção de uma luta das imagens. Os livros de leitor, e aqui valem muito os de Carlos Henrique Schroeder e de André Gonçalves, escritos no tempo das plantas, são imensas variáveis e fraturas nesse diz-que-me-diz de uma centralidade adoecida entre quem compete e quem julga, quem julga e quem compete, sem jogo algum, no limite da totalidade do dinheiro: comprar o pão e a manteiga.

Abrir Aranhas e rita hayworth foi a paris, folheá-los, fixar os olhos de um lado a outro com o enlace amoroso entre a mão e as páginas, essa cena erótica que só pode ser reparada por quem ainda imagina profanar a vida sem saídas com o estudo, também para nada, para que o estudo se dê, apenas, pode expandir a desmesura de um texto que se faz e se refaz enquanto é escrito numa aposta visceral: a do erro. Leia-se aí, para exemplo, em pequenas narrativas de Carlos, como “Do sulco (Larinioides Cornutus)” ou “Babuíno comum (Harpactira sp)”, ou em alguma de mais tempo e sentido difusos, como “Fio-de-ouro (Nephila clavipes)”, todas compostas na seriação de uma habilidade singular à remissão do tempo para tentar profanar a dromologia com alguma velocidade inaparente. André já começa com a esticada “rita hayworth foi a paris” e persegue a imagem de “uma modesta poesia do povo”, talvez ou certamente retirada de Dino Campana, o endiabrado e impressionante escritor italiano que em 1914 publicou Novelas em alta velocidade, até coisas como “autobiografia não autorizada de maria quem”, quando a repetição poderia desdobrar-se até um infinito matemático.

O que comparece entre ambos é certamente a ausência de quaisquer outra obsessão que não seja a de fazer da escritura um gesto que salta de quem imprime a vida, o mundo, as coisas e o desamparo tal como um leitor que salta, como inscrevia Macedónio Fernandez, de quem tanto Carlos quanto André, tanto André quanto Carlos, podem ter aprendido um movediço embaraço: contra uma literatura de retórica militar que se constitui a partir de um realismo dromológico, num descompasso de possíveis, imprimir-se por subtração, nunca por acúmulo, uma literatura que vem como “motor, máquina de assalto”, e não mais como anúncio, mas numa denúncia alucinatória de corpos minimamente capazes de quebrar uma caneca de louça só porque lhes falta na coleção um caco da cor da caneca. Ou seja, o movimento, esta ilusão, que se dane, o que interessa, ainda, é somente algum princípio de revolução.

rita hayworth foi a paris (e outras histórias, talvez pedaços)
André Gonçalves
Quimera
R$ 20 (e-book)

Aranhas
Carlos Henrique Schroeder
Record
192 páginas – R$ 44,90

Manoel Ricardo de Lima é professor da Escola de Letras e do PPGMS, UNIRIO. Publicou, entre outros, Geografia Aérea (7Letras, 2014), Jogo de Varetas (7Letras, 2012), As mãos (7Letras, 2003/2012), Maria quer o mundo (Edições SM, 2015)e, no prelo, O método da exaustão (Garupa Edições).

Deixe o seu comentário

TV Cult