Capitalismo e imperialismo

Capitalismo e imperialismo

David Harvey reavalia as relações entre Economia e Política esboçadas por Marx

Ricardo Musse

As reações dos Estados Unidos aos atentados de 11 de setembro causaram perplexidade geral. Afinal, a disposição de invadir e ocupar o Afeganistão e o Iraque não estaria na contramão de uma política cuja hegemonia se firmara ao longo do século 20 graças ao discurso e à prática em favor da autonomia nacional? Além disso, como entender a legitimidade obtida pelo governo Bush – uma singular coalizão de militaristas, neoconservadores e cristãos fundamentalistas, acusada de fraude eleitoral – confirmada com sua escolha para exercer um segundo mandato?

As mudanças na ação externa e no cenário interno suscitaram a onda de explicações que colocou na boca de liberais e conservadores um termo que a esquerda utiliza há muito para caracterizar o Estado norte-americano: imperialismo. A ocupação neocolonial de territórios, seu denodo em determinar os rumos do capitalismo, o estado de guerra permanente (41% dos gastos do governo são destinados às atividades militares) e até mesmo o revezamento de poucas famílias no comando da nação, tudo isso aponta para o ressurgimento de um poder imperial.

Essa inusitada convergência disseminou e banalizou ao extremo a palavra “imperialismo”. Quando se debruçou sobre o tema, em 2003, David Harvey, para qualificar o debate, procurou reestabelecer as determinações conceituais e históricas da teoria marxista do imperialismo. Mas, paradoxalmente, poucos anos depois, a atualidade de The new imperialism reporta-se menos às análises de conjuntura – em geral brilhantes e muitas vezes proféticas –, do que ao arcabouço teórico que o livro desenvolve.

Ao contrário do que se crê, a discussão sobre imperialismo não é episódica no corpus marxista, resquício da “era dos impérios” e do leninismo. Quando bem dimensionada, ocupa um lugar central na compreensão teórica e histórica do capitalismo. Se Marx, por um lado, caracteriza a dinâmica desse modo de produção como o desdobramento da acumulação de capitais (numa lógica estritamente econômica), por outro lado, em um capítulo crucial de O capital (“A assim chamada acumulação primitiva”) mapeia, uma a uma, as práticas extraeconômicas que favorecem a acumulação capitalista.

O debate polarizou-se entre os que consideram a “acumulação primitiva” como uma mera etapa necessária à emergência do capitalismo e os que a situam como momento estrutural de seu dinamismo histórico. A questão, no fundo, remete às relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver em sua obra.

Harvey é um partidário decidido da segunda alternativa. Para ele, o processo de “acumulação interminável de capital”, que configura histórica e geograficamente o capitalismo, combina, de forma contraditória, a lógica econômica, os processos moleculares de acumulação e as estratégias políticas, diplomáticas e militares que denomina “acumulação por espoliação”, renomeando o arsenal de práticas que Marx chamava de acumulação primitiva.

A predecessora mais ilustre dessa posição foi Rosa Luxemburgo. Harvey compartilha com ela a tese de que é necessário algum tipo de “exterior” para manter a estabilidade da acumulação capitalista. Discorda, no entanto, que esse “outro” seja sempre uma forma de produção pré-capitalista. O próprio capitalismo, em sua geografia e história, pode produzir esse “exterior”, como no caso do desemprego em massa que amplia o exército industrial de reserva. Tampouco concorda que a sucessão de crises que perpassa o capitalismo seja explicável pelo “subconsumo”. Para Harvey, as crises advêm da dificuldade em absorver de forma lucrativa os excedentes de capital e são, portanto, “crises de sobreacumulação”. Sua resolução acarreta tanto a desvalorização de ativos e a destruição de regiões como a configuração de uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder.

Harvey não despreza os ensinamentos de Lênin sobre o imperialismo, em especial a denúncia da assimetria entre Estados no interior de um sistema global de acumulação de capital. Mas em vez de descrevê-lo como uma fase “última” do capitalismo prefere vê-lo, na fórmula de Hannah Arendt, como “o primeiro estágio do domínio político da burguesia”. A partir dessa premissa reconstitui, com alguns deslocamentos decisivos, a hipótese de uma sucessão de Estados hegemônicos desenvolvida por Giovanni Arrighi.

Entre 1870 e 1945 imperialismos rivais assentados no nacionalismo e no racismo conduziram as nações a uma série de crises e guerras. A hegemonia norte-americana após 1945 se torna incontestável, dissimulando seu domínio sob a capa de um universalismo abstrato: a defesa das classes proprietárias de todo o mundo em sua luta contra o comunismo. A partir de 1973, o modelo de acumulação altera-se completamente com a criação de um sistema monetário desmaterializado.

Nesses três períodos convivem, com pesos diferenciados, a acumulação molecular de capital e a acumulação por espoliação. Esta predominou no período 1870-1945 e voltou a prevalecer a partir de 1973, após o interregno dos “trinta anos dourados”. A face imperialista do capitalismo torna-se ostensiva nos momentos em que predomina o acúmulo por espoliação, mas nunca deixa de atuar, sobretudo porque também deriva, de forma complexa, da reprodução expandida do capital. 

Essa teoria permite a Harvey explicar de forma convincente os principais fenômenos político-econômicos dos últimos 35 anos, apresentando a financeirização, a globalização e a política neoliberal como estratégias da “acumulação por espoliação”. Seu predomínio manifesta-se na vida política por meio da cisão dos movimentos antiglobalização, divididos entre a esquerda socialista – cuja ênfase na reprodução ampliada coloca como central a luta anticapitalista –, e os novos movimentos sociais, que tendem a assumir formas difusas, fragmentárias e avessas ao controle do aparelho de Estado, já que lutam prioritariamente contra a espoliação.

Ricardo Musse
é professor no Departamento de Sociologia da USP

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