Em debate, Caetano Veloso diz que prioridade do Brasil deve ser enfrentar desigualdade
Caetano Veloso na nova sede da Mídia NINJA, em SP (Francio de Holanda/Divulgação)
“O país continua tristemente cumprindo a frase de Joaquim Nabuco: ‘a escravidão permanecerá por muito tempo como característica nacional do Brasil'”, acredita Caetano Veloso. Para o músico e compositor, “o principal problema do Brasil ainda é a desigualdade, e ter capacidade de enfrentá-la deve ser prioritário.”
O músico participou, na tarde desta segunda (16), de um debate em São Paulo junto do produtor cultural e o teórico da cultura digital Claudio Prado, com mediação da atriz e cantora Thalma de Freitas e da escritora e roteirista Antonia Pellegrino. O encontro marcou os 20 anos da publicação de Verdade tropical e a inauguração da sede do coletivo jornalístico Mídia Ninja, na casa cultural do Acadêmicos do Baixa Augusta.
Na ocasião, Caetano frisou como o principal problema do país continua sendo sua herança escravocrata. “Neste momento a gente vê que muitas coisas que foram esboçadas quando a gente era novo vieram à tona na vida política oficial”, afirmou. “Houve muito refluxo do que foi conseguido e do que foi esboçado.”
Concretizações e refluxos do que foi pensado desde a Tropicália, movimento contracultural encabeçado por Caetano em 1967, também ocupam algumas páginas da nova edição de Verdade tropical, relançado pela Companhia das Letras neste mês. No trecho inédito, o músico reflete sobre as mudanças culturais e políticas pelas quais o Brasil passou de 1997 para cá.
Para Claudio Prado, que se tornou amigo de Caetano e Gilberto Gil durante o exílio político em Londres, a principal mudança foi a revolução tecnológica. “A grande loucura é entender que a internet não pertence a ninguém, ela é livre, fura os monopólios de mídia”, disse. “Isso aqui [celular] é o coquetel molotov do século 21.”
Independentemente da mídia, Caetano acredita que a sociedade é invariavelmente marcada por forças de esquerda e direita, e não se trata de suprimir uma dessas vozes. “O conservadorismo é necessário para manter a sociedade”, argumentou. “Assim como sempre há resquícios da contracultura, desse desejo das pessoas de viverem uma vida autêntica.”
Por isso, disse, as recentes manifestações conservadores podem até ter um aspecto positivo, uma vez que “tornam claras as visões de mundo espalhadas no seio da sociedade”. “Antes a direita usava a expressão ‘maioria silenciosa’, que não faz barulho mas segura os privilégios da maioria”, disse.
Por outro lado, considera que há também perigos já que “pode haver embates inúteis e até desnecessários que venham a retardar o que precisa ser modificado”. “Mas talvez esse barulho queira dizer que eles [os de extrema-direita] são a minoria que não representam a maioria silenciosa dos conservadores, que também compõe e sustenta uma sociedade”, afirmou.
Censuras e protestos contra exposições, como os casos recentes da performance La Bête, no MAM de São Paulo, e do Queermuseu em Porto Alegre, são evidências, para o músico, dessa minoria que “faz barulho” e manipula a população. “Não é preciso ser de esquerda para perceber que há um desrespeito e uma manipulação da obra desses artistas por pessoas que sabem o que estão fazendo”, afirmou.
“Qualquer pessoa minimamente esclarecida percebe que há manipulação do tema moral pra assustar pessoas mais inocentes. A grande maioria dos brasileiros é inocente a essas coisas, mal sabe o que é um museu, nunca foi a um”, argumenta Caetano. “E tem gente que usa isso de maneira cínica, para manipular essas pessoas, pois sabem que não se trata mesmo de pedofilia, zoofilia ou qualquer coisa do tipo.”
Caetano estava em São Paulo desde sábado (14) para a série de shows em que se apresenta junto dos filhos Moreno, Tom e Zeca Veloso. Serão seis apresentações no Theatro Net com encerramento no dia 29. Após uma hora de conversa com público (que lotou o espaço), o show foi invocado por Caetano para se despedir do público.
Antes de partir, no entanto, constatou que a crise de paradigmas é geral, e não é apenas a esquerda que precisa refletir sobre suas práticas políticas. “Apenas o que quero dizer é que enfrentei a desilusão do socialismo real, e agora precisamos enfrentar a desilusão do liberalismo real.”