Terra clama

Terra clama
Região atingida pelo rompimento da barragem Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho/MG (Foto: Isac Nóbrega/PR)

 

Difícil escolher a cena mais impressionante da tragédia de Brumadinho. Talvez a cena dos bombeiros se arrastando para resgatar vítimas, a fim de aumentar o atrito e evitar que seus corpos fossem tragados pela lama. A visão mostra a força dessa lama que traga corpos, uma terra derretida querendo nos dizer alguma coisa.

Estamos escutando? Quem presta solidariedade ou denuncia os crimes ambientais está ocupado com tarefas mais urgentes. Ainda assim, um sussurro atrás da orelha não cala: o que aquela terra dissolvida quer nos dizer? Um limite incontornável do extrativismo é que um dia ele tem que acabar. Por bem ou por mal. Um dia, os tais recursos esgotáveis estarão, simplesmente, esgotados. Como saber quando chegou esse dia? E se já tiver chegado? Quando a sirene, aquela que não funcionou em Brumadinho, vai tocar? Vamos esperar que a lama engula que extensão de território para nos convencermos, finalmente, de que é urgente repensar do zero nosso modelo de desenvolvimento econômico?

Materiais de que são feitos nossos celulares, transportes, eletrodomésticos e medicamentos que salvam vidas são extraídos daquelas minas, afirmam especialistas. Por isso, creem ser impossível conceber nosso mundo sem mineração. Uma coisa é certa: ao admitirmos que chegou o dia, teremos que mudar radicalmente nossos modos de vida. Não necessariamente abrir mão de celulares, mas forçar que se tornem mais duráveis, trocar menos frequentemente de aparelho, usar materiais reaproveitados. Soluções não faltam, mas implicam mudar hábitos e pactos que consideramos pétreos. Tragédias como a de Brumadinho alertam, porém, que talvez tenha chegado o dia de formular perguntas difíceis: o que começar a fazer agora para em breve acabar com a mineração e com todos os outros extrativismos?

Precisamos arranjar tempo para começar a preparar esse futuro, antes que a lama nos sugue a todos. Muita gente já está se preparando, na verdade: para se safar. Trumpismo, desigualdade acachapante, concorrência desenfreada, fim do Estado de Bem-Estar Social, flexibilização de fiscalizações, injustiça fiscal e negacionismo climático são sintomas de um mesmo fenômeno: a minoria que quer se safar está buscando meios de não ser atingida pelo colapso. Mas fugir para onde? O que há de novo – mas também de assustador e fascinante – no problema das mudanças climáticas é justamente o quão englobantes são seus efeitos. Ninguém vai se safar. A renda da pessoa, o transporte que usará para fugir ou o estômago para pisotear corpos durante a fuga, nada disso fará a menor diferença. Na falta de um mundo para todos, não haverá mundo para ninguém.

O drama de nossa época é que não experimentamos mais um mundo comum. Mesmo que esse mundo comum nunca tenha proporcionado, de fato, as mesmas condições para todos, pactos mínimos (como o welfare state) davam sentido a ideais civilizatórios, comandados pelos países europeus. Ao mesmo tempo em que ex-colônias tentavam atingir um patamar comparável. Hoje o jogo virou. A precariedade não é mais prerrogativa das periferias mundiais. Está aí uma mudança total no modo como o mundo é experimentado. Com destaque para o protagonismo dos Estados Unidos em dissipar a ilusão de que a prosperidade seria capaz de eliminar as contradições. Trump é o colete salva-vidas das elites dominantes que querem se safar antes de todo mundo. Não à toa é o mais eloquente porta-voz daqueles que negam as mudanças climáticas e assumem sem a menor vergonha: que se danem os que não terão lugar nessa terra. Esse é o muro simbólico, o mais cruel, ofuscado pelo muro real, sem sentido, que quer proteger os ferrados com passaporte dos ferrados sem passaporte. Os negacionistas do clima portam, contudo, uma dolorida verdade: eles sabem, mais do que ninguém, que não haverá espaço para todo mundo.

Desigualdade obscena, desregulação (que leva à supressão de fiscalizações e controles públicos) e negacionismo climático são três faces do mesmo fenômeno, alerta Bruno Latour em livro pós-Trump, Onde aterrissar? (2017)Se já não há terra suficiente para todo mundo, como criar um mundo onde aterrissar e evitar a denegação coletiva? Ainda há tempo para se recriar um mundo comum, mas o preço será viver, desde já, de um modo radicalmente diferente. Sem mundo compartilhado, sem instituição, sem vida pública não há fatos ou verdades que façam sentido, acrescenta Latour. Um mundo comum precisa de uma esfera de sentido passível de ser compartilhada e é isso que estamos perdendo. Quanto menos sentido, mais fácil sustentar a negação das mudanças climáticas, pois isso exige revirar os modos de gerar confiança na produção de evidências, logo, afeta os fundamentos da produção de verdades científicas. Por isso, nossa crise é também epistemológica. Não adianta, contudo, retornar aos antigos ideais de cientificidade para fazer face à mudança. Um dos indícios é a manifestação do planeta, de uma Terra que clama por ser levada em consideração. Uma terra que age por meio do desastre.

“Enquanto a terra parecia estável, podíamos falar de espaço e situarmo-nos no interior desse espaço e numa porção de território que pretendíamos ocupar. Mas como fazer se o território começa, ele próprio, a participar da história, a dar um golpe atrás de outro, enfim, a prestar atenção em nós?” A terra não pode mais ser apreendida apenas como meio ambiente, como um espaço que está lá, disponível, para dele extrairmos as matérias-primas de nossos caprichos consumistas. Desastres de nosso modelo produtivo têm tudo a ver com mudanças climáticas, pois “clima” é a relação que mantemos com nossas condições materiais de existência. A terra não é um mero repositório, paisagem ou cenário, para escolhas e ações humanas. Ela precisa tomar parte, como Latour sugere há muitos anos. A criação de novas instituições que acolham os sinais do planeta é um caminho para aprofundar a democracia e ressignificar a participação política.

Terra é o nome desse mundo comum cujo abalo tem tido efeito desastroso em nossa sensação de pertencimento. Dá calafrios pensar que Carlos Drummond de Andrade tenha testemunhado, desde os anos 1980, os efeitos devastadores da mineração e como eles já afetavam a conexão íntima dos habitantes com sua terra. No caso, Itabira. Drummond testemunhava o desaparecimento de montanhas, transformadas em pó de ferro. E o minério era levado para longe em enormes quantidades, no maior trem do mundo: “O maior trem do mundo/ Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel/ Engatadas geminadas/ desembestadas/ Leva meu tempo, minha infância,/ minha vida”. O sinal estava dado.

São muitas – e desesperadas – as estratégias humanas para compensar a sensação de não pertencimento e a perda do mundo comum. Mas ainda compartilhamos a angústia de sentir a terra se dissolvendo embaixo de nossos pés. Teremos que nos arrastar até resgatarmos alguma coisa daí. O problema é que precisaremos abrir mão de nossos modos de vida. Quem está disposto a isso?


Tatiana Roque é matemática, filósofa, professora e pesquisadora da UFRJ

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