Homicídios, polarização política e representações da polícia: o Brasil à deriva

Homicídios, polarização política e representações da polícia: o Brasil à deriva
(Foto: Divulgação PMBA)

 

Há anos, a violência urbana é reconhecida pelos brasileiros como um dos principais problemas sociais do país. Isso quer dizer que foi colocado na frente da fila daquelas circunstâncias para as quais se espera que as autoridades ofereçam urgentemente uma solução. E no interior do guarda-chuva temático da violência urbana, um problema desponta como a emergência das emergências, o que mais nos estarrece e o que mais causa ansiedade, que são as altíssimas taxas de mortes violentas intencionais e, por consequência, a alta probabilidade de se morrer assassinado nas cidades brasileiras.

Talvez seja hoje o problema social que mais impacto tem sobre a qualidade de vida, a saúde mental e os projetos de cada brasileiro. Os pobres, sem esperança, atados aos lugares onde mais se mata, submetidos ao aliciamento de seus filhos pelo crime organizado e à brutalidade policial, vivem no Brasil como quem vive numa zona de guerra: torcendo para não ser quem vai morrer esta noite, mas já sabendo que algumas pessoas morrerão violentamente em algum lugar ao seu redor. As classes médias e altas, apavoradas com a visita cada vez mais frequente da morte violenta em seus próprios espaços, alimentam os sonhos de que seus filhos migrem, não importa para onde, desde que possam viver sem o risco cotidiano de serem assassinados.

O crime afeta a todos, embora o faça de diferentes modos e com diferentes níveis de impacto. É natural, pois, que se tenha tornado uma das pautas que definem decisões de voto nas eleições, a manutenção ou a retirada de apoio a governantes e até, como vimos recentemente, preferências ideológicas. De fato, grande parte da surpreendente movimentação ideológica no país na última década tem certamente a ver com a percepção disseminada, entre os vários estratos demográficos, sobre qual é a posição da esquerda, do centro, da direita e da extrema direita sobre causas e soluções para o problema dos homicídios em nossas cidades.

Assim como sobre o juízo específico que cada segmento ideológico faz acerca dos principais atores envolvidos nesse fenômeno: polícia, Justiça, facções criminosas, bandidos, direitos humanos. Todo mundo acredita que consegue estimar o que cada uma das posições ideológicas considera certo ou errado no comportamento de cada um desses atores e o modo como isso se alinha ou se dissocia dos juízos de valor emitidos pelo próprio eleitor e cidadão.

De fato, os cidadãos podem vacilar em questões sobre a conveniência de se explorar petróleo na foz do Amazonas ou se o arcabouço fiscal proposto por Haddad vai melhorar a vida de todos, mas a respeito da epidemia de mortes violentas intencionais e do risco crescente de se morrer assassinado em nossas cidades, algo que afeta tragicamente a vida de todos, não há pessoa no Brasil sem convicções formadas e posições assumidas.

Não tenho dúvida de que as respostas dadas e as perspectivas adotadas sobre o tema das mortes violentas foram uma das causas da movimentação eleitoral que, a partir de 2016, moveu o país para o mais longe possível da esquerda, para a extrema direita. E que fez com que parte desse contingente eleitoral abandonasse a extrema direita em 2022 por se dar conta de que as alternativas oferecidas pelo bolsonarismo, no verbo e na prática, tampouco levavam a algum lugar.

A esquerda sempre ofereceu a ideia-limite de que quando houver igualdade social a violência urbana cessará; a extrema direita apareceu no mercado vendendo a ideia-limite de que, se a polícia não for impedida de matar ou prender todos os bandidos, o crime não mais compensará e voltaremos a viver em paz. Nos últimos tempos, os progressistas alimentaram as ideias de que todo dia um policial sai de casa para perpetrar o genocídio do povo negro ou de que as polícias são a causa, não o remédio, da violência. A extrema direita respondeu com a ideia de que todo policial é um herói que, cotidianamente, coloca a própria vida em risco para defender a sociedade da bandidagem, apesar de desprezado pela esquerda e pelas classes que estão bem de vida e protegidas pelos seus condomínios, apesar de ter frequentemente as mãos atadas pelo Judiciário e por “essa gente” dos direitos humanos.

O problema desses discursos é que ele dificulta uma busca de solução, não viciada ideologicamente, mas pragmática e eficiente, para um problema que se pereniza e que se aguça. E que, além disso, tornam particularmente árdua a tarefa de governantes em cujos ombros recaem todas as formas de pressão, além do ajuste de contas eleitoral como punição pelo que não foram capazes de fazer. Afinal, governadores e prefeitos têm perdido ou ganhado eleições em função da percepção que os eleitores têm da eficácia de suas propostas para lidar com os homicídios ou do resultado prático de suas gestões acerca do tema.

Por fim, tais discursos extremos findam por aumentar ainda mais a polarização de uma sociedade que precisaria de consensos mínimos para buscar soluções para um problema comum. Tal polarização se verifica, por exemplo, na contraposição entre quem sataniza e quem canoniza a ação da polícia, deixando praticamente desertas as posições intermediárias. Chegamos ao ponto em que o juízo pessoal sobre se o policial é um herói incompreendido ou um criminoso a soldo do Estado é hoje um excelente preditor estatístico do voto na extrema direita ou na esquerda. O que é lastimável, considerando-se que ambas as representações tendem a ser falsas e contraproducentes.

Além disso, a convicção arraigada e confirmada, entre as polícias e grande parte da sociedade, de que o policial não pode esperar reconhecimento ou estima por parte dos progressistas, certamente teve um peso para reforçar a inclinação policial à direita e ao autoritarismo, empurrando as tropas de maneira radical para os braços do bolsonarismo. Que não só parecia entendê-lo e apreciá-lo, mas lhe dava instrumentos para a politização partidária da própria função e uma identidade social para exibir com orgulho. O bolsonarismo, meus amigos, ofereceu aos policiais o “espaço de acolhimento”, uma irresistível oferta de “amo como você é e não como querem que se transforme” e, por consequência, um reforço em sua autoestima. O que poderia ser mais tentador e sedutor que isso?

Acelerou-se assim um círculo vicioso em que a percepção do desprezo dos progressistas justifica a radicalização e a politização das polícias, o que, por sua vez, confirma as razões do desprezo dos progressistas por uma polícia incivil e bruta, na ideologia e na prática. Isso roda em moto contínuo.

Nesta equação, esquecem a esquerda e os progressistas que não foram apenas os policiais que se radicalizaram e encontraram no bolsonarismo algo com que se identificar. Tomou a mesma rota uma parte da população que coloca a violência urbana como dimensão central de suas prioridades sociais e eleitorais, que não põe a menor fé nas alternativas para enfrentar o problema do crime oferecidas pela esquerda e que, no fundo, acha que governantes de esquerda na verdade não têm a menor ideia de como lidar com isso, para além dos clichês do “senta e espera a justiça social ser implantada na Terra” ou do “precisamos reformar as polícias”. Nada que atenda ao seu senso de urgência nem aquiete o seu desespero.

A tese de que a ação policial é basicamente, como li recentemente de um jornalista, um “campeonato de matar pobres” e pretos já está cobrando um alto preço em lugares como a Bahia, que deveria ser uma vitrine do petismo. As taxas de homicídio são as mais altas da história do estado, por conta da federalização da guerra local de facções pelo controle do tráfico de drogas e de outras atividades ilegais, mas o governador não consegue sequer achar um discurso para se explicar à população e à mídia nacional, dividido que está entre lealdade ideológica, cobranças de eficiência administrativa e a pressão dos eleitores que não compram as teses petistas sobre crimes urbanos e violência.

A população se divide entre, de um lado, os mais pobres que preferem saber que a polícia está empilhando cadáveres de bandidos do que imaginar que o crime organizado mata sem controle nem medo de punição e, do outro, os progressistas que na terça estão escandalizados porque seis cidades baianas estão entre as dez em que mais homicídios se cometem no país, enquanto na quinta condenam a polícia por ser a mais letal do país.

A confusão chegou a um ponto em que há mesmo pessoas que julgaram entender que o que se está dizendo é que a taxa estratosférica de homicídios na Bahia seria devida, pasmem, ao fato de que a polícia baiana é assassina e não porque o Comando Vermelho e o PCC, e seus aliados e rivais locais, estão em plena disputa pelo território numa guerra cruel, alastrada e fora de controle. Há duas pilhas crescentes de mortos na Bahia, a menor é pela mão da polícia, quase todos os mortos têm a ver com o tráfico, mas entre o fato e a narrativa, como se sabe, tem um mar no meio. Um mar de ideologias, de identificações e lealdades políticas, de fúria canceladora e de crença de que ou se está do lado da polícia, e com a direita, ou se está contra a polícia, e com a esquerda e os progressistas. Hesitações, paradoxos e ponderações devem ser punidas.

A mídia nacional corre à Bahia porque para continuar mantendo o enquadramento progressista de que o policial sai para matar pretos e pobres, tomando como exemplificação as chacinas de São Paulo e do Rio, é preciso uma dose de reforço de imparcialidade. Nada melhor para isso do que mostrar que o governador petista da Bahia se comporta do mesmo modo que o governador bolsonarista de São Paulo.

Do lado dos governadores, tudo parece semelhante. Tarcísio sabe que a sua base eleitoral não lhe permite segurar o enquadramento do policial matador de pretos, então recorre ao frame do policial-herói, familiar aos bolsonaristas. Contudo, precisa mitigar a crítica progressista das redações paulistanas, e então avisa que todos os exageros, se algum houver, serão punidos. Jerônimo sabe que o seu partido alimenta o frame do policial como operário do genocídio negro. Por outro lado, sabe também que o eleitor pobre da periferia e do interior, que não acompanha os progressistas nesta viagem, não tolerariam um governador frouxo que desautorize a polícia e pareça defender bandido. Então blefa que tem o controle e o comando da polícia, mas ressalva, claro, que todos os exageros, se exagero houver, serão exemplarmente punidos.

Os discursos dos governadores são similares? Sim. Mas o enquadramento crítico da mídia progressista é também um clichê, o do policial que veste a farda e sai para matar, inocentes inclusive, e contrasta com um segundo enquadramento adotado pelos mesmos jornais, de que nunca se matou tanto nesse país e nenhuma autoridade ou instituição faz qualquer coisa.

O fato real é que os governadores não estão no controle ou comando das polícias. Nunca parecem estar. São corporações fortes demais e insubmissas demais ao controle civil; em uns momentos, como agora, mais ainda. Além disso, as polícias não são capazes de controlar o ritmo de crescimento (na Bahia, no Ceará, no Amazonas) ou de retração (São Paulo) da taxa de homicídios, que são dependentes do nível de conflito ou de hegemonia territorial das grandes organizações criminosas nacionais.

Ninguém parece estar no controle de coisa alguma, em suma, mas a esquerda diz que é para desconfiar da polícia e esperar a igualdade, enquanto a direita garante que se soltarem a mão do policial isso se revolve, no mais tardar até o Natal. E, como costuma acontecer quando somos impotentes no plano da realidade, nos refugiamos nas fantasias, nos discursos, na ideologia, e travamos ali guerras fabulosas contra o crime e contra os nossos inimigos.

A ideia do policial matador de pretos e pobres é ótima para se lacrar em ambientes de esquerda, sobretudo naqueles intelectualmente rarefeitos, mas é um desastre para uma política pública realmente eficaz. Ela reduz a compreensão do problema a estereótipos fáceis e a esquemas rasteiros. Também acirra a polarização – uma vez que os mais pobres têm uma visão das coisas e duvida do realismo e da honestidade da perspectiva dos mais ricos que sabem pouco da “vida como ela é”. Ela transforma a força policial, que é parte essencial de qualquer solução imaginável para esse problema, numa caricatura grotesca de gente imprestável para a vida civilizada, quanto mais para uma sociedade democrática. Sem contar que empurra o policial, sem volta, para os braços do autoritarismo político para os quais ele já se inclina.

As respostas dos governadores bolsonaristas – baseadas em armar a população, indultar os policiais que abusam da violência e dividir a sociedade, esquematicamente, entre bandidos e homens de bem – não moveu para baixo a taxa de crimes violentos. Mas as respostas da esquerda e dos progressistas tampouco parecem capazes de conter uma violência que está há anos fora de controle e que se tornou a principal fonte de angústia e ansiedade nacionais.

O discurso da extrema direita, de que se a Justiça e a mídia deixarem soltas as mãos dos policiais a violência cessa, esvai-se ante contraprova da realidade de um país de milícias, corrupção militar e de uma força policial incapaz de conter o poder gigantesco das organizações criminosas. O discurso progressista de que a violência se resolve com igualdade social e de que a polícia brasileira é basicamente uma força bruta especializada em torturas, execuções sumárias e assassinato de inocentes, tampouco conseguirá diminuir a taxa de homicídios ou o risco, sempre maior para os pobres, de se morrer assassinado.

A ideia de que o crime se combate com tiro no coco da cabeça do bandido é uma concepção terrível e democraticamente inaceitável, mas não se ganha mais terreno com a ideia de que o policial é que é, na verdade, o bandido, o genocida, que mata seletivamente e com critério, como parte de um plano de dominação, de intimidação e controle ou – o que parece ainda pior – de extermínio de certo tipo de pessoas.

O curioso é como, nesse festival de insensatez, cada lado considera tolo “o brasileiro médio” que sucumbe ao “apelo da mídia” e acredita que a sociedade pode ser melhorada jogando-se fora as maçãs podres, como prega a extrema direita; ou quem acredita no personagem do policial degenerado que acorda, veste a farda e sai para matar inocentes nas quebradas do Brasil. Assim como impressiona o fato de que os dois lados facilmente se juntam para bater em quem disser que são duas perspectivas teoricamente inconsistentes, pragmaticamente imprestáveis e politicamente desastradas.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)


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