Bolsonaro repete Trump como farsa

Bolsonaro repete Trump como farsa

 

 

 

A semana política começou com um jeito de coisa repetida, pois mais uma vez Jair Bolsonaro anunciou publicamente que o voto eletrônico é fraudulento e que ele poderia provar que eleições passadas, inclusive as que o elegeram presidente da República, tiveram o seu resultado adulterado. E mais uma vez rosnou ameaças escoradas no uso das Forças Armadas em caso de eleição perdida.

Tudo dentro de um script conhecido e copiado. Um jornalista da CNN Internacional fez uma compilação das vezes em que Donald Trump disse que não aceitaria os resultados das eleições e que não deixaria o cargo se fosse derrotado. Fez isso quase uma dezena de vezes. A alegação era exatamente a mesma de Bolsonaro: o método usado para aferir os votos dos eleitores estava projetado para desfavorecê-lo; o único resultado respeitado das eleições, portanto, seria a sua eleição. Nenhum outro resultado seria aceitável, nenhum outro resultado seria aceito.

Nenhum jornal brasileiro até agora se deu ao trabalho de listar as vezes em que Bolsonaro disse que só poderia perder uma eleição presidencial se ela fosse fraudada, ou que a urna eletrônica brasileira é viciada e programada contra ele, ou que as eleições brasileiras com urnas eletrônicas foram roubadas para favorecer o PT em 2014 e 2018. Se algum jornalista topar o desafio, sugiro que comece a pesquisar no ano de 2018, pois foi quando a propaganda bolsonarista começou a repetir histericamente que só uma fraude eleitoral retiraria o seu mito da presidência. Nos dois dias de eleição daquele ano, houve um dilúvio de fake news de denúncias de fraude eleitoral, repetindo o roteiro previamente distribuído. E mesmo ganhando a eleição, Bolsonaro se ateve à narrativa de que a teria vencido já no primeiro turno e que as urnas eletrônicas só não deram a vitória ao outro lado porque a quantidade de votos que ele efetivamente recebeu superou as expectativas dos fraudadores.

A afirmação de que não aceitará o resultado das urnas se a vitória não for sua, assim como a desqualificação prévia do método eleitoral para deslegitimar uma derrota provável,  são uma cópia infeliz do comportamento de Trump. E só este fato deveria bastar para que ele percebesse que a tática de fazer essa denúncia diante embaixadores estrangeiros em Brasília seria inócua para convencer governos e opinião pública estrangeira, se esse, efetivamente, foi o objetivo da reunião. Todos confiam na lisura das eleições brasileiras, ninguém confia em Bolsonaro.

Contudo, temos diferenças com relação a Trump. As Forças Armadas americanas entendem-se como uma instituição de Estado, que servem impessoalmente a qualquer governo legitimamente eleito, enquanto parte das Forças Armadas brasileiras se veem como uma força militar avulsa à disposição de quem governa e para servir a determinadas ideologias e determinados interesses. Trump sabia que não podia contar com as FFAA e o público-alvo da sua mensagem era os trumpistas, os seguidores que compunham o seu exército civil e capazes de um ato de sedição tão grave quanto ocupar o Capitólio. Bolsonaro, ao contrário, conta com um conjunto de generais das Forças Armadas e de coronéis da Polícia Militar que não hesitam em vir a público afiançar um projeto subversivo a serviço do malvado com quem se colocam em conluio contra a Constituição.

Para azar de Bolsonaro, contudo, esse punhado de cúmplices militares são o seu único trunfo no blefe tantas vezes repetido. Faltam-lhe algumas condições básicas para um ato de sedição bem urdido e com chances de sucesso. Primeiro, não haveria o essencial apoio americano. Biden é gato escaldado e nunca ficaria cumplice de um ato trumpista de que ele próprio foi vítima há tão pouco tempo. Segundo, o Poder Judiciário está ativo e atento. O ministro Fachin pôs na rua uma campanha de desmentido do presidente nem bem o show da segunda-feira tinha acabado.

Nos dias seguintes, juízes eleitores, promotores e procuradores com uma história de responsabilidade na condução de eleições vieram a público em grande número reiterar a sua confiança na urna eletrônica e a sua certeza de que as eleições brasileiras têm sido limpas e justas. E mesmo instituições como a PF e membros do MP assumiram claramente a defesa das eleições. Por fim, sem exceção, o jornalismo de referência assumiu a tarefa de desmentir o presidente, desmascarar suas intenções e reclamar que o comportamento adotado pela autoridade máxima da nação bem merecia uma punição exemplar.

Se lhe faltam condições para a subversão prometida, sobram-lhe, por outro lado, as condições para poder cometer crimes e violações impunemente, uma vez que tomou o cuidado de anular os poderes capazes de infligir qualquer punição: notadamente a PGR e a Câmara dos Deputados. Assim, se ele não tem como entregar a prometida sedição, em desespero e por um enlouquecido apego ao poder, ao menos tem garantida a impunidade para perturbar a eleição que começa a dar como perdida.

 

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Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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