Para quem falou Bolsonaro quando discursou na ONU?
Jair Bolsonaro discursa na 74º Assembleia Geral da ONU, na última terça (24) (Foto: Alan Santos/PR)
Em Retórica se sabe que não existe auditório universal. Quer dizer, ninguém pode falar o que quer que seja para qualquer tipo de público e em qualquer circunstância esperando os mesmos efeitos, porque cada público tem diferentes expectativas, funciona com diferentes códigos, tem uma distinta experiência da vida e sabe coisas diferentes sobre o mundo. Consciente disso, o orador precisa sempre considerar a que público se dirige antes de decidir que tipo de argumentação usar, a que ideias se referir, que vocabulário empregar, que sentimentos deseja provocar, e por que meios deve convencer os seus ouvintes.
Quando você fala na Assembleia Geral da ONU há um público ali presente, sentado, composto por chefes de Estado, chefes de governo, delegações nacionais, autoridades das próprias Nações Unidas, convidados e jornalistas. Por meio do jornalismo, em suas múltiplas plataformas, vem uma outra camada de público, ainda mais extensa e mais espalhada pelos quatro cantos do globo: mais jornalistas, especialistas, diplomatas, homens de negócios e, por fim, mas não menos importante, a opinião pública mundial.
Bolsonaro poderia ter escolhido falar para os chefes de Estado ou de governo ali presentes, para os investidores internacionais, para a mídia mundial, para a opinião pública internacional ou até para todos os brasileiros, todos esses públicos decisivos para o país, mas preferiu falar para os 12% (o número é do Datafolha) de bolsonaristas ferrenhos aqui da terrinha. São escolhas. Qualquer audiência é retoricamente possível, mas escolher bem para quem se fala e o que se fala é decisivo para alguém que é ao mesmo tempo chefe de governo e de Estado de uma nação de 200 milhões de pessoas que, para dizer o mínimo, já teve tempos melhores. Pois Bolsonaro achou que dentre todos os possíveis interessados no Brasil, o bolsonarista raiz é o que mereceria a sua atenção, a sua preocupação e os seus mimos. Bolsonaro estava em Nova York e tinha sobre si os olhos do mundo, mas discursou como se estivesse numa “live” no Facebook falando para os fiéis da sua seita.
Do ponto de vista dos objetivos e metas, Bolsonaro poderia ter escolhido usar o seu discurso para melhorar a própria imagem internacional, tão aceleradamente desgastada nos últimos meses por conta dos incêndios na Amazônia e do contencioso com o presidente francês e com o Fundo Amazônia. Podia ter decidido trabalhar a imagem do Brasil como lugar onde o dinheiro do consumidor europeu e do investidor americano são extremamente bem-vindos. Mas não, preferiu gastar os seus 31 minutos de fala diante de uma audiência mundial para vender-se aos olhos do mundo como um machão nacionalista, conservador e de extrema-direita.
As decisões de Bolsonaro em termos de público-alvo e de estratégia de comunicação estão erradas? Depende do ponto de vista. Visitando os sites dos jornais internacionais, resulta que o Brasil não ganhou nada com o discurso presidencial. A cadeia de supermercados suecos que avisou que não vende mais produtos brasileiros porque somos inimigos do meio ambiente não deve ter mudado de ideia. O parlamento austríaco que decidiu vetar o acordo da União Europeia com o Mercosul tampouco teve razões para repensar a decisão. Tudo isso é verdade, mas os bolsonaristas simplesmente a-do-ra-ram. “Que estadista!”, gritaram. “O melhor discurso de um presidente brasileiro na ONU desde sempre”, disseram.
O discurso foi infeliz sob todos os aspectos para quem não compartilha das crenças da extrema-direita. Foi uma mistura ruim de narrativa conspiratória da Guerra Fria, com pitadas de delírio paranoico sobre uma expansão geopolítica do comunismo internacional, com a afirmação tosca de um nacionalismo típico de tiranete africano dos anos 1970, com um discurso ultraconservador contra universidades, ciência, mídia, mudanças nos costumes e valores progressistas. Parafraseando uma célebre caracterização feita pelo ministro Barroso, foi “uma mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”.
Mas, que importa? Bolsonaro não falou para os chefes de Estado ou de governo, não falou para a imprensa internacional, não falou para os investidores e para os consumidores dos nossos produtos, nem falou para você, mas exclusivamente para os bolsonaristas. E para eles o que realmente importa é que o presidente falou como macho, pois foi lá e disse umas verdades na cara dos esquerdistas da ONU e dos colonialistas europeus; o que interessa é que houve alinhamento com o discurso de Trump, que veio em seguida; o significativo foi que Macron, Merkel e os noruegueses receberam nos peitos o que mereciam; o decisivo é que todos sabem agora que Bolsonaro salvou o Brasil do comunismo, que não tem vergonha de citar Deus e a Bíblia na frente daquele monte de materialistas, nem fica constrangido de se dizer conservador e de direita diante de todo o mundo. E, ainda mais importante que tudo, o que interessa é que ele teve a coragem de olhar na cara do mundo todo e dizer que “a Amazônia não é patrimônio da humanidade, zorra nenhuma! A gente tange os índios, queima aquilo tudo ou cava até achar nióbio, conforme nos apeteça, mas a zorra toda é nossa e de mais ninguém!”. Enfim, para o bolsonarista o que importa é que o mundo todo agora sabe que tem macho mandando nessa casa.
WILSON GOMES é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)