Benjamin, Bolsonaro e a munição para o antifascismo em três escritos

Benjamin, Bolsonaro e a munição para o antifascismo em três escritos
O filósofo Walter Benjamin, Paris, 1938 (Foto Gisèla Freund)

 

Uma máxima brechtiana:
não partir do antigo bom, mas do novo ruim.
Walter Benjamin, Conversas com Brecht, Anotações de Svendborg

 

Como vimos apontando em intervenções recentes, o resgate da contribuição benjaminiana acerca do fascismo – sintomaticamente pouco comum na maioria dos trabalhos brasileiros que auscultam sua teoria – nos parece inadiável num momento de avanço da fascistização à brasileira, com digitais históricas impressas em nossas instituições, durações, classes e sentimentos. No tempo-de-agora, atualizar a crítica antifascista é tão decisivo quanto combater a catástrofe deste fenômeno que não cessa, porque condição dos intentos históricos de hegemonia da burguesia.

Alinhavando três escritos de Walter Benjamin ainda assombrosos, uma vez que rosas dos ventos de uma época e do que ela ainda traria, almejamos robustecer perspectivas antifascistas desta hora resgatando neles três trilhas. A oitava das teses Sobre o conceito da História (1940), Experiência e pobreza (1933) e Teorias do fascismo alemão (1930). No primeiro, temos o estado de exceção fascista como temporalidade, concepção de história e hegemonia; no segundo, há a esterilização da experiência partilhável sob o capitalismo nos mais diversos territórios da cultura; e finalmente, o último trabalho se esmera na relação guerra-decadência, antevendo Hiroshima e alertando quanto ao irracionalismo capaz de separar técnica e moral, barbárie e humanidade.

Este ensaio recente de fascistização, tendo na eleição de Bolsonaro – o governante da extrema-direita mundial com traços fascistas mais evidentes – uma nova e mais dramática etapa, não pode ser compreendido, como apontamos no início, se defenestramos das reflexões as matrizes (neo)coloniais, escravistas, ultraliberais, a violência estrutural, a autocracia burguesa, os fascismos de nova roupagem. Todavia, mantendo o foco destas considerações, planteamos que a leitura de Benjamin nos trabalhos destacados nos permite inventariar traços fascistas históricos – na ordem, o estado de exceção, a corrosão da experiência e a generalização da guerra como condição -, mas também oferecem uma rota do antifascismo, não regras que em conjunto apresentam um molde, mas críticas ontológicas do fascismo num momento em que muitas pessoas vão até Mussolini para entender a anatomia do horror presente, e não em Bolsonaros (e as vontades coletivas de mais violência que encarna) para lançar luz sobre o incêndio do Reichstag em 1933 ou a guetificação de minorias na Alemanha. Na Tese VIII, escreve:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o “estado de exceção” em que vivemos é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que corresponda a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. A hipótese de ele se afirmar reside em grande parte no fato de os seus opositores o verem como uma norma histórica, em nome do progresso. O espanto por as coisas a que assistimos “ainda” poderem ser assim no século 20 não é um espanto filosófico. Ele não está no início de um processo de conhecimento, a não ser o de que a ideia de história de onde provém não é sustentável.

A tese VIII é o momento mais explícito em que Benjamin aborda o estado de exceção, que no nazifascismo encontra seu modelo mais letal. Conteúdo concreto da democracia contemporânea, o estado de exceção materializa a indistinção entre ordem e desordem, legitimando a violência sem logos e a indeterminação entre lógica e práxis. Com a exceção sendo regra, temos a experiência da democracia sempre como impossibilidade no capitalismo, que opera exatamente na demarcação frágil e incerta entre direito e exceção, democracia e absolutismo.

Sua oitava sentença anuncia ao mesmo tempo uma (i) postura antifascista, ao identificar este fenômeno histórico como permanência nas formas de sentir e enquanto hecatombe que se movimenta no tempo, e um (ii) plano de ação contra o fascismo que exige não subestimá-lo, compreendê-lo enquanto temporalidade e construção de um pensamento/linguagem, erigir um estado de exceção subalterno, dos vencidos, que possa rememorar e continuar as batalhas ainda insepultas, identificando este ainda e o tornando um GPS para os derrotados que permanecem combatendo.

Em Experiência e pobreza temos a dissolução da experiência vinculada ao aprendizado, à alteridade, aos horizontes da solidariedade como resultado da barbarização pela guerra, do fenecimento da intimidade pela arquitetura, da pobreza cultural que se expressa no ocaso da narrativa e na taxidermia dos sentidos críticos. É sobre o capitalismo que este breve escrito se debruça, publicado poucos meses após os episódios que permitiram Adolf Hitler líder da nação alemã. Não se trata do fim da Erfahrung, a experiência sensível e plena, mas uma internação compulsória que, mantendo-a ligada em aparelhos, impede movimentos capazes de identificar a dominação burguesa e suas dinâmicas patológicas de subjetivação.

Teorias do fascismo alemão, que aborda temas como nacionalismo, imperialismo, guerra química, idealismo e, por suposto, fascismo, é também uma reflexão sobre o capitalismo em sua dimensão bélica e a respeito da desumanização que transmuta o combatente em burocrata do necropoder e transforma a linguagem e a razão em “arroto dos morteiros”, obscurantismo.

Sendo uma crítica da obra Guerra e Guerreiros, coletânea de Ernst Jünger reunindo escritos de ex combatentes da Primeira Guerra Mundial, o trabalho de Benjamin posiciona-se pujantemente contra a fetichização da guerra – estimulada pelo nacionalismo -, o culto da técnica, a ideologia da virilidade guerreira como ethos. Além disso é um alerta quanto ao caráter sem fim da guerra imperialista. Em oposição a toda e qualquer naturalização do genocídio, o intelectual marxista permite ler o nexo orgânico entre decadência do espírito e incremento da barbárie, de onde o fascismo é emblema.

Bolsonaro e a pulsão coletiva que materializa é o novo ruim de Brecht. Partir dele exige-nos primeiramente admitir o fascismo entre nós. Como experiência decadente e como decadência da experiência. O segundo passo, com a prancheta de Benjamin (trazidas aqui nos escritos em destaque), é buscar compreender o máximo possível as dobradiças existentes entre o estado de exceção burguês e a percepção do tempo, a experiência e a cultura, a violência pela guerra e a irracionalidade. A elevação destas etapas a um novo nível pode se dar exatamente com o terceiro e mais decisivo movimento qual seja a tessitura da resistência antifascista, mais dramática nestas terras do sul coloniais-escravistas-tardias, todavia obrigatoriamente mais inventiva porque exigente dos vencidos mais vencidos, das memórias mais desmemoriadas, mas também das sínteses mais parecidas com mosaicos que se deslocam do que com totens imóveis.

“Encontrar palavras para aquilo que temos diante dos olhos é qualquer coisa que pode ser muito difícil. Mas, quando chegam, batem com pequenos martelos contra o real até arrancarem dele a imagem, como de uma chapa de cobre”. A observação de Benjamin em San Gimignano desenha uma imagem dialética que assume aqui a feição de amarra do que vimos elaborando. Identificar o fascismo como duração, encontrar na luta de classes as zonas limítrofes entre a experiência carcomida e a Erfahrung em potência, posicionar-se frontalmente, sob o espectro cultural e político do antifascismo, contra a brutalização epidêmica e a incivilidade que encontra no cinismo seu dínamo. Dos derrotados temos os martelos. Cabe à inteligência armada saber onde as palavras podem se metamorfosear em mais deles.


Eduardo Rebuá é doutor em Educação pela UFF, professor adjunto de Pedagogia na UFPB e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF

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