Dossiê | Benedito Nunes, o mestre que ria

Dossiê | Benedito Nunes, o mestre que ria
Benedito Nunes e seus manuscritos (Foto Luiz Braga)

 

Benedito Nunes ria bastante, contava piadas, “causos”, com detalhes às vezes surpreendentes. Gostava de cachorros. Sempre tinha um cachorro ou uma cachorra na casa dele. Lembro, em especial, da Martinha, nos idos da década de 1970, quando o conheci. Certa vez, por volta dos meus 18, 19 anos, numa das inúmeras aulas que tinha com ele no seu escritório, Martinha latia, latia bastante em direção a mim, sentado numa cadeira à esquerda do sofá onde o professor Benedito estava. Reclamei com ele, que então me disse, entre o sério e o brincalhão: “Também, estás sentado na cadeira dela!”. Rindo muito, entre desculpas e afagos na cachorra, me levantei, sentei em outra cadeira, deixando a cadeira dela livre. Quieta, meio dorminhoca, mas também atenta ao que dizíamos, Martinha se tornou, por alguns anos, a minha companheira de sala de aula.

Conheci Benedito Nunes em março de 1976, eu, um garoto de 18 para 19 anos. Ele, o professor titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Pará. Pequeno, atrás de uma mesa, olhos graúdos e curiosos por trás das lentes, o professor Benedito presidia a banca do processo seletivo para a monitoria da disciplina Introdução à Filosofia. Nunca o tinha visto antes e, confesso, tampouco sabia quem ele era, nada sabia de seu já reconhecimento como grande intérprete de Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, mas também de Heidegger e Sartre. Passei no processo seletivo e me tornei o monitor de uma disciplina obrigatória para o então ciclo básico da área das ciências humanas, que antecedia o ciclo profissional, de acordo com a reforma do ensino superior então recém-implantada pela ditadura civil-militar brasileira. Eram turmas grandes, de 50, 60 alunos, compostas de alunas e alunos, que iam de Administração a Serviço Social. Minha preparação para a tarefa da monitoria, que envolvia preparar os textos para sempre rodados no stencil ou, ainda, o material para as provas – folhas de papel pautado, carimbadas com a insígnia da UFPA e divididas em grandes envelopes –, incluía as aulas na casa do professor Benedito, no seu pequeno escritório abarrotado de livros e com algumas fotografias na parede. Entre elas, um único filósofo deixava-se ver: Nietzsche, por incrível que pareça um Nietzsche sereno, com seus grandes bigodes.

Minha convivência com Benedito Nunes se transcorreu praticamente entre livros, seja numa conversa simples, seja em grandes e às vezes infindáveis discussões teóricas. Curioso, demasiado curioso e desde a infância um leitor obsessivo, eu tinha diante de mim alguém que acolheu uma demanda por saber. E a acolheu, desde sempre e sem que acerca disso eu tivesse qualquer suspeita, de certa forma praticando um exercício de maestria muito próximo daquele com que, numa passagem de Assim falou Zaratustra, o personagem Zaratustra nos fala da sua relação com seus discípulos, aqueles a quem  pensava ensinar, transmitir a sua doutrina: contra Sócrates e contra Jesus, Zaratustra dizia que retribui-se mal a um mestre simplesmente repetindo o que ele diz; ao contrário, é preciso que o mestre permita que seu discípulo o negue, o renegue, quantas vezes for necessário (não apenas três, como o fez o apóstolo Pedro, em célebre passagem bíblica), para que possa entre eles se firmar uma relação na qual a busca e o domínio do saber e da verdade já não estejam estabelecidos de antemão.

Benedito Nunes nunca se quis criador de uma “escola”, nunca se quis cercado de “discípulos” repetidores, aduladores, bajuladores. Sua generosidade, sua gentileza, sua simpatia para com seus alunos, que ele adorava receber no seu escritório-biblioteca, ao contrário, tinha por finalidade tornar possível que cada um de nós encontrasse seu próprio caminho. É claro que, com sua perspicácia e acuidade, ele sempre dava ótimos palpites e excelentes indicações bibliográficas e, sempre que necessário, corrigia uma imprecisão e sempre nos colocava a imperiosa necessidade do trabalho conceitual. Nesse diapasão, Benedito Nunes me deu, de início, dois presentes, em dois momentos distintos de meu percurso formativo, mas que me foram fundamentais, presentes na forma de indicações incisivas, quase uma ordem, mas ditas com muita doçura. A primeira, em meados de 1980, quando havia ganhado uma bolsa para sair de Belém e fazer mestrado em São Paulo, ele sugeriu que eu estudasse As palavras e as coisas, de Foucault, cujas conferências em Belém, em novembro de 1976, intermediadas pelo próprio professor Benedito, eu assistira, sem entender patavina; deu no que deu, e mesmo que meu mestrado sobre Foucault não tenha seguido sua indicação, até hoje leio e estudo o pensamento do filósofo, para decepção de meus velhos amigos e amigas marxistas e sartrianos e sartrianas. A segunda, creio que por volta de 1985, 1986, quando precisei ler algumas passagens do Discurso filosófico da modernidade, de Habermas, ainda na edição alemã; lhe pedi socorro e ele então me disse uma frase que, salvo engano de minha memória, já teria ouvido de alguém: “aprender alemão é o serviço militar da filosofia”. Deu no que deu: me tornei tradutor de Nietzsche, de Benjamin e de Freud. Quiçá um dia, do Homem sem qualidades, de Robert Musil!

Com Michel Foucault, na praia de Mahrau, ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, novembro de 1976 (Foto Edna Castro)
Com Michel Foucault, na praia de Mahrau, ilha de Mosqueiro, próxima a Belém, novembro de 1976 (Foto Edna Castro)

Foi com muita emoção, muita honra, que aceitei a proposta de Daysi Bregantini para organizar este dossiê. A intenção primeira era dar a conhecer às novas gerações um pouco da obra desse grande pensador brasileiro. De minha parte, era também a oportunidade de convocar a “prata da casa” para participar junto comigo dessa empreitada. À exceção de Marco Aurélio Werle, todos os outros colaboradores são paraenses, embora Henry Burnett tenha deixado Belém há 20 anos. Seria impossível, é claro, abarcar todas facetas do múltiplo trabalho de Benedito Nunes, em especial como teórico e crítico literário. Se no campo da filosofia seus estudos se vinculam, em especial, a Heidegger, o leque de escritores, escritoras e poetas, dos quais ele se ocupou é bem maior: Clarice, Oswald, Pessoa, Guimarães Rosa, Max Martins, Mário Faustino, Dalcídio Jurandir, João Cabral, Haroldo Maranhão, entre outros. O importante, e disso não devemos nunca nos esquecer, é que a obra de Benedito Nunes, queiramos ou não, concordemos ou não com seus pressupostos teóricos e filosóficos, com suas escolhas no campo da filosofia e da literatura, ocupa um lugar imprescindível no cenário cultural brasileiro, de tal modo que ele se tornou um interlocutor fundamental no campo dos estudos de estética e filosofia da arte, por exemplo.

Neste dossiê (e a partir daqui não farei, deliberadamente, nenhum grande spoiler), José Denis Bezerra, professor do Instituto de Ciências da Arte da UFPA, apresenta-nos uma faceta quase inteiramente desconhecida do grande público, que foi o engajamento de Benedito Nunes no teatro, ele que foi um dos fundadores da que hoje se chama Escola de Teatro e Dança da UFPA, numa parceria, em especial, com sua esposa Maria Sylvia Nunes. Num estudo ainda por ser feito, será importante mostrar como o interesse de Benedito Nunes pelo teatro (assim como pelo cinema, pelas artes plásticas e pela fotografia) estão inteiramente ligados aos seus estudos na filosofia e na teoria e crítica literárias. Sílvio Holanda, professor do Instituto de Letras e Comunicação da UFPA, por sua vez, nos apresenta as diretrizes gerais da recepção de Guimarães Rosa por Benedito Nunes e, com isso, escolha difícil, deixamos de lado a recepção de Clarice Lispector, já bastante estudada e conhecida. Estamos aqui, portanto, também diante de um tema muito pouco explorado nos estudos rosianos e que Sílvio Holanda, que foi orientando de Benedito Nunes no mestrado em Letras da UFPA, nos desvela com conhecimento de causa.

Marco Aurélio Werle, professor do Departamento de Filosofia da USP, retoma a importância dos estudos de Benedito Nunes sobre Heidegger, mas não apenas para nos apresentar as principais linhas de força desses estudos, como também para mostrar, de maneira tão apropriada a importância desses estudos para sua própria formação. Lilia Chaves, professora do Instituto de Letras e Comunicação da UFPA, nos fala de uma maneira especial da história da amizade entre Benedito e Mário Faustino, amizade marcada pela troca de papéis, ou seja, pelo fato de que um e outro foram divulgadores da obra do amigo, tendo como pano de fundo a experiência memorável de um grupo de jovens envolvidos com a literatura, na Belém do imediato pós-Segunda Guerra. Finalmente, convidei dois amigos cujos caminhos particulares se cruzaram de maneiras diferentes, mas com a mesma intensidade e com grandes consequências para seus respectivos métiers: Henry Burnett e Paulo Vieira.

Henry, professor da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da UNIFESP desde que essa instituição federal de ensino superior criou o campus de Guarulhos em 2006, foi o aluno sem nunca ter sido, aquele cuja entrada no curso de Filosofia da UFPA coincidiu com a aposentadoria definitiva do professor Benedito. Paulo, hoje professor de Literatura da UFPA no campus de Altamira, é poeta de mão cheia, cuja poesia encantou definitivamente Benedito Nunes, que, aliás, escreveu a apresentação do primeiro livro de poemas do Paulo e de vários outros. Henry e Paulo homenageiam Benedito Nunes à sua maneira, seja pela memória dos raros encontros fora da condição de aluno institucionalmente falando, seja por meio da poesia.

A terceira lição que Benedito Nunes me deixou veio no dia triste e doloroso de seu velório, no final de fevereiro de 2011. Eu chorava muito, abraçado à sua esposa. Maria Sylvia, serena, pegou meu rosto em suas mãos e me disse: “Não chore, Ernani, o Bené viveu como ele quis”.

Minha convivência com Benedito Nunes foi facilitada mais ainda pelo fato de que morávamos próximos, no mesmo bairro, seja quando aluno, morando na casa de meus pais, seja mais tarde, como professor. Entre 1976 e 1978, o professor Benedito me levava para a UFPA de carona no seu Fusca azul. Hoje, algumas vezes, devido ao sinal luminoso da esquina próxima a sua casa, meu carro fica parado, esperando o sinal abrir, em frente ao muro coberto de hera da casa que tantas vezes visitei. Daquela garagem, há muito não sai mais o Fusca azul. Nesses momentos, sou invadido por uma imensa saudade. Mas ainda posso ouvir seu riso largo e franco, o mesmo riso que juntos dávamos quando, mais adiante, num muro qualquer a caminho da universidade, nos deparávamos com uma propaganda do “Baratão das Calcinhas”! Esse foi Benedito Nunes, o mestre que ria. Esse era, pelo menos, o professor Benedito que guardo na minha memória. Por fim, fim mesmo, gostaria de dedicar esse dossiê à memória de Maria Stella Faciola Pessôa, que a morte levou em meio à escrita de sua tese de doutorado sobre o pensamento social de Benedito Nunes, ou seja, sobre o Benedito Nunes intérprete da Amazônia ou, pelo menos, de um certo Brasil.


Ernani Chaves é doutor em Filosofia pela USP e professor titular do departamento de Filosofia da UFPa


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