Autoridade e vazio do pensamento

Autoridade e vazio do pensamento
Arte sobre obra de Tom Molloy, ‘Dúvida’, 2010 (Arte Revsita CULT)

 

Em estudo sobre a noção de autoridade, Alexandre Kojève aponta que ela é o fenômeno social que retrata a possibilidade de um agente agir sobre os outros (ou sobre um outro) sem que exista uma reação, que seria possível se os submetidos à autoridade desejassem. Ou seja, para Kojève só existe autoridade se o agente conseguir o que pretende sem a necessidade de mudar o seu próprio comportamento. O exemplo desse filósofo é esclarecedor: “se para fazer sair alguém do meu quarto, eu preciso usar a força, se eu devo mudar o meu próprio comportamento para realizar o ato em questão, eu acabo por demonstrar que não tenho autoridade”. Dito de outro modo, a noção de autoridade precisa ser reconhecida pelos sujeitos submetidos a ela, razão pela qual toda autoridade humana que existe deve ter uma causa, uma justificativa: uma razão de ser. É essa “razão de ser” que faz com que as pessoas reconheçam a autoridade e, consciente e voluntariamente, se submetam a ela sem reagir.

Em Platão, toda autoridade estaria ou deveria estar fundada na justiça ou na equidade. E, portanto, a imagem ideal da autoridade seria a do “juiz”, razão pela qual se exigiria que toda autoridade fosse imparcial e desinteressada. Já para Aristóteles, o modelo de autoridade seria baseado na figura do “chefe”, ou seja, aquele que seria o mais apto, o mais preparado e o mais inteligente para conceber um projeto, dirigi-lo e comandá-lo. A teoria teocrática, por sua vez, apostaria na autoridade do Pai como modelo central, uma autoridade que derivaria de Deus, por transmissão hereditária, e que exigiria o reconhecimento de limites impostos por um terceiro (o Pai). Mas qual a razão de ser de uma autoridade que despreza a imparcialidade, a inteligência ou mesmo a existência de limites externos ao exercício do poder?

Violação da imparcialidade

Imparcialidade é sinônimo de alheabilidade, ou seja, os juízes não podem ter interesse pessoal em relação ao resultado do processo, nem atuar para retirar proveito político, midiático, financeiro ou social da causa posta em julgamento. Mais do que isso: todo julgador deve ter contato com o processo em uma situação de não-saber, sem ter convicções ou certezas acerca dos fatos a serem julgador. A própria ideia de “justiça”, construída ao longo da história, nunca se afastou da exigência de um julgador imparcial. Na Bíblia encontra-se menção à imparcialidade (“justos juízos, sem se inclinarem para uma das partes”, Deuteronômio, 16, 18-20). Não se trata, portanto, de uma novidade, nem de um obstáculo à eficiência do julgamento ou à descoberta da verdade. Na realidade, a imparcialidade é a verdadeira condição de possibilidade de um julgamento justo.

O juiz fica impedido de exercer jurisdição sempre que ocorra ou que tome conhecimento de algum fato, alguma circunstância, que o torne passível de parcialidade. Assim, por exemplo, um juiz não pode julgar os seus adversários ou inimigos (ou mesmo os adversários de sua família ou de seus amigos íntimos). De igual sorte, se o juiz tem pretensão de exercer cargos políticos no poder executivo, não pode julgar causas que facilitem essa nomeação ou que gerem vantagem para seus familiares ou aliados. Apenas em uma “república de bananas” se teria por normal um juiz condenar uma pessoa (vamos imaginar um candidato a cargo eletivo), retirando-lhe as chances de vitória em uma disputa eleitoral, e, em seguida, concorrer ao mesmo cargo pretendido por aquele ou mesmo ser nomeado para cargo no governo vitorioso em razão da eliminação do concorrente.

A imparcialidade do órgão julgador é indispensável do início ao término da relação processual, isso porque o fato gerador da parcialidade pode ser posterior à instauração da relação processual. Um exemplo pode ser útil: assim, se no decorrer do procedimento, o juiz comete um ilícito contra o réu (por exemplo, vaza à imprensa, em contrariedade à legislação, a interceptação de uma conversa telefônica) torna-se evidentemente parcial e deve abandonar o julgamento. Aliás, o risco da violação à imparcialidade surgir após o início do processo torna imprescindíveis mecanismos e estratégias de manutenção da imparcialidade originária.

A maior garantia para a imparcialidade no curso do procedimento é a inércia do órgão julgador, em especial porque cabe às partes (acusador e réu) decidir as provas que pretendem produzir, o que assegura o distanciamento necessário ao julgamento e à justiça da decisão. Sempre que um juiz abandona a inércia para, em parceria com o Ministério Público, atuar no sentido de indicar provas, aconselhar o acusador ou confirmar a hipótese acusatória, tem-se clara violação da imparcialidade. Ao violar a imparcialidade, há uma mutação na figura da autoridade, uma vez que o interesse privado passa a se misturar à função exercida.

Sinais da violação à imparcialidade, portanto, podem ser percebidos ao se analisar tanto a relação de parceira entre o órgão acusador e o juiz ao longo do processo quanto a bulimia instrutória (que leva à excessos na produção probatória e, paradoxalmente, à desnecessidade de provas robustas para confirmar a hipótese a que o acusador e o juiz aderiram previamente). Também basta pensar na prática inquisitorial de alguns juízes que ficam por horas a formular perguntas ao réu durante o interrogatório na tentativa de “produzir” contradições ou encontrar elementos probatórios que não foram produzidos durante toda a instrução, para se identificar indícios de parcialidade. Em apertada síntese, sempre que o juiz adota o compromisso prévio de confirmar a hipótese acusatória tem-se clara violação à imparcialidade judicial.

O caso brasileiro deixa claro que a imparcialidade da autoridade não é uma exigência que sirva à legitimação da autoridade.

Ode à ignorância

A inteligência deixou de ser um valor exigido de quem exerce a autoridade. Há uma ode à ignorância que tem como consequência perversa o ódio dirigido à inteligência, ao conhecimento e à ciência. A ode à ignorância é funcional ao sistema de dominação, isso porque se relaciona com a ameaça do saber: um saber capaz de desmistificar, de contrastar certezas e de desvelar a ignorância que serve de base para diversos atos de poder.
Não por acaso, o anti-intelectualismo é uma característica de todo governo autoritário. O intelectual e o sistema de educação passam a ser vistos como ameaças. No sistema de justiça ocorre o mesmo. O bom juiz é aquele que julga da mesma forma que o povo desinformado e sem conhecimento teórico julgaria, mesmo que para isso seja necessário ignorar a doutrina, as leis e a própria Constituição da República.

Em meio à onda anti-intelectualista, não causa surpresa que a lógica do pensamento passa a trabalhar com categorias pré-modernas como o “messianismo” e a “peste”. O messianismo leva à construção de heróis e salvadores da pátria (seres diferenciados, incorruptíveis, bravos e destemidos, mas que não são necessariamente cultos ou inteligentes); a lógica da peste, por sua vez identifica cada um dos problemas brasileiros como um mal indeterminado, em sua extensão, em suas formas e em suas causas, mas tangível e mortal, contra o qual só Deus ou pessoas iluminadas podem resolver. Só há “messianismo” e “peste”, fenômenos típicos de uma sociedade carente de reflexão, onde desparece o saber, a informação e a educação.

O caso brasileiro, por evidente, também deixa explicito que a inteligência não é uma qualidade exigida das autoridades.

A mutação do simbólico

Pode-se perceber a substituição do indivíduo marcado pelo simbólico, pelo limite inscrito na subjetividade, pelo indivíduo em que o imaginário procura dar conta do laço social. A lei imposta por um terceiro desaparece para dar lugar à lei fundada na imagem que cada um faz do que é melhor ou mais interessante para ela. Há, portanto, uma nova economia psíquica que gera um novo mal-estar, que como o antigo mal-estar denunciado por Freud, também diz respeito à relação entre as pessoas, aos discursos e modos-de-ser no mundo da vida.

Há, apenas para citar um exemplo dessa mudança, um distanciamento inédito entre o meio social e a família. Os componentes da família (pai, mães e irmãos) fecham-se e desconfiam daqueles que não integram esse núcleo familiar. Gera-se um antagonismo em relação ao social, antagonismo potencializado por questões de classes, de gênero, dentre outras, a ponto de se transformar, em determinadas circunstâncias, em ódio.

Conforme as demais pessoas se distanciam do “ideal de eu”, dessa construção imaginária que marca o sujeito, aumenta a desconfiança de que esses outros (em última análise, o restante da civilização) são os responsáveis pelo gozo a menos, pelas restrições e pelo que falta a cada um. As frustrações de cada um passam a ser de responsabilidade do outro, um outro muitas vezes indefinido. O ódio, que nasce da presença do outro, se faz presente até quando o outro se ausenta, isso porque o que conta é o imaginário, mais precisamente a imagem de um outro que atingiu, atinge ou pode atingir o sujeito.

Existe o ódio porque existe a linguagem, existe a linguagem porque existe um terceiro. O ódio é, antes de atingir qualquer objeto, direcionado ao simbólico, o espaço da alteridade. Liga-se ao furo no imaginário, mais precisamente ao furo que se localiza na consciência narcísica. Mas, o que teria produzido essa transformação do sujeito? A resposta mais crível é a de que foi o sucesso de um tipo de racionalidade (um modo de ver e atuar no mundo) necessária ao sucesso do capitalismo.

O “sujeito moderno” começou a desaparecer no momento em que a lógica capitalista substituiu, sem enfrentar resistência, o antigo escravo por pessoas reduzidas ao estado de mercadorias, pessoas tratadas como objetos negociáveis ou descartáveis.

Essa racionalidade, por exemplo, produziu um novo tipo de julgamento, um julgamento sem Lei, um julgamento no qual o imaginário (forjado a partir das pulsões, das perversões, etc.) do julgador substitui a lei imposta por um terceiro. Diante da ausência de Lei, não internalizada, o novo sujeito-julgador cria uma “lei”, que ele mesmo encarna, voltado a dominar o outro, tratado como objeto/mercadoria.

A partir da diminuição de importância da pessoa e dos valores democráticos, que cada vez mais desaparecem diante do valor “mercadoria” e dos fins do mercado, as explicações forjadas na modernidade, que procuravam dar cota de um mundo em que o ser humano não mais seria instrumentalizado, de um mundo em que a pessoa seria o centro de referência para todos os fenômenos, se tornaram obsoletas. Na atual quadra histórica, em que tudo e todos, inclusive as pessoas, são tratadas como objetos negociáveis, as formas filosóficas pensadas na modernidade para explicar o sujeito, se ainda não foram abandonadas, são utilizadas de forma cínica. Só o cinismo e a perversão se mostram compatíveis com a forma como o outro é atualmente tratado.

A autoridade dos populistas em 2019

O que faz com que as pessoas submetidas a uma “autoridade” que não é imparcial, nem necessariamente inteligente e nem mesmo respeita limites externos ao exercício do poder não reajam a ela? Qual a “razão de ser” da autoridade de governantes populistas, que atuam a partir da manipulação das emoções mais primárias, como Trump, Bolsonaro, Erdorgan, Duterte, dentre outros. A resposta parece estar na categoria formulada por Hannah Arendt: o “vazio do pensamento”.

A característica dessa forma de vazio, como explicou Marcia Tiburi em recente artigo, é “a ausência de reflexão, de crítica, de questionamento e até mesmo de discernimento”. O capitalismo exige uma autoridade capaz de raciocinar em termos numéricos (um “governo pelos números”, como dizem alguns), em uma espécie de utilitarismo pobre em que o exercício racional é direcionado aos meios de se alcançar um objetivo determinado, e nada mais do que isso. Para se manter, além dos cálculos que devem mirar na reprodução, na acumulação tendencialmente infinita e na livre circulação do capital, é preciso que as pessoas não pensem, ou seja, que caiam no vazio do pensamento. Pensar, como lembrou Renata Nagamine, em outro importante artigo a partir de Arendt, seria algo diferente do mero raciocínio calculista: é “uma busca pela compreensão e o sentido dos atos alheios e próprios, o que demanda tornar presente o passado e elaborar sobre ele”.

As pessoas submetidas à autoridade do tipo da exercida por Trump ou Bolsonaro não podem pensar, por exemplo, que, ao destruir a natureza em busca de lucro, a própria vida passa a estar ameaçada. A autoridade, da mesma maneira que as pessoas que não reagem a ela, sabe calcular o lucro das ações governamentais, mas todos eles são incapazes de refletir em termos éticos e compreender os danos à vida provocados pela ação de destruição da natureza. Quando Trump ou Bolsonaro fazem uso do método de falar aquilo que normalmente nenhuma autoridade deveria falar, não há loucura (aliás, os loucos merecem ser respeitados), mas o emprego de uma racionalidade pouco preocupada com os valores civilizatórios ou com sentido dos seus atos (ações direcionada a um público igualmente pouco preocupado com os valores civilizatórios ou com o sentido de seus atos, inclusive no que toca às consequências do ato de votar).

Mudar esse estado de coisas passa por resgatar o pensamento e, em consequência, o potencial libertário da reflexão, da crítica, do questionamento e da ação que corresponde ao pensamento. Não há reação possível distanciada do pensamento.

RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo Freudiano

Leia a coluna Além da Lei toda segunda no site da CULT

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