As duas faces da cidade brasileira

As duas faces da cidade brasileira

Os problemas urbanos se acumulam, prejudicam tudo e todos e a única solução possível é a sustentabilidade

As cidades brasileiras são cada vez mais marcadas pela desigualdade, fragmentação e segregação socioespacial. É possível a um visitante passar alguns dias em São Paulo sem conhecer a cidade real, achando que o único problema urbano da cidade é o trânsito infernal e alguns pedintes que encontra pelo caminho, além da poluição visual, que começa a ser enfrentada pela prefeitura.

Ele chega ao Aeroporto de Congonhas, passa pelo Parque do Ibirapuera, se hospeda em um hotel nos Jardins, freqüenta reuniões de negócios na Avenida Paulista ou na região da Berrini, faz compras na Oscar Freire ou num dos shoppings chiques da região, visita um museu ou uma galeria de arte nas imediações e se diverte à noite em bares, restaurantes ou casas noturnas da Vila Madalena ou de Moema.

No máximo, arrisca-se a ir ao centro, onde encontra marcas da memória da cidade entremeadas por edifícios vazios ou ocupados por “sem-tetos” – questões que são freqüentes em quase toda cidade do mundo onde existem áreas antigas.

Se nosso visitante não for assaltado em algum dos percursos, termina o período de visita com a impressão de que a cidade é moderna, arborizada, limpa, bem servida de equipamentos e com opções de lazer e de consumo a fazer inveja a qualquer cidade de “primeiro mundo”. Se não conversar muito sobre o assunto com os paulistanos e não ler os jornais, pode até sair com a impressão de que a cidade é segura: os índices de violência nos bairros de classes média alta e alta de São Paulo, como Jardim Paulista, Alto de Pinheiros e Moema, são um nono da média da cidade e um vinte avos dos índices verificados nos distritos mais violentos da cidade, como o Grajaú, na Zona Sul, ficando próximos dos auferidos em países como Portugal e Espanha.

Situações semelhantes podem acontecer em várias outras cidades brasileiras, embora às vezes ocorra algo parecido com o Rio de Janeiro, onde o cenário encantador da zona sul é emoldurado pelo morro repleto de barracos que não deixa ninguém se esquecer de que a pobreza urbana coabita na cidade maravilhosa.

Curitiba alimentou, por décadas, um marketing positivo que faz as pessoas comuns e até mesmo especialistas desavisados, do país e do exterior, acreditarem ser ela uma cidade modelo, onde o planejamento deu certo. City tours são cuidadosamente organizados pela prefeitura para mostrar o pedaço da cidade onde tudo parece funcionar bem. Do transporte coletivo aos parques bem cuidados, dos Faróis do Saber ao Teatro de Arame, circulando pelas ruas e avenidas planejadas, parece que ali tudo é projetado por arquitetos numa verdadeira cidade modelo. No entanto, essa cidade espetáculo, que projetou seu prefeito no mundo e é cantada em prosa e verso pelos quatro cantos do país como a exceção no cenário urbano brasileiro, guarda bem escondida uma cidade ilegal e precária que em nada difere do quadro dramático presente nas demais metrópoles do país: o aglomerado metropolitano de Curitiba apresentava em 1997 nada menos do que 753 áreas de ocupação irregular, num total de mais de 81 mil domicílios, ou seja, 12,5% do total da região.

O quadro de exclusão territorial nas cidades do Brasil contemporâneo vem aprofundando os processos de segmentação urbana, criando guetos explosivos onde predomina a pobreza, a precariedade urbana, o desemprego e a violência e ilhas de conforto e opulência – condomínios fechados, shoppings centers e edifícios comerciais inteligentes – cercados por altos muros, cercas elétricas, seguranças armados e câmaras de controle. Um modelo que lembra as cidades do apartheid da África do Sul do regime racista pré-Nelson Mandela e que, se for aprofundado, nos levará a uma cidade inviável, com o desaparecimento do espaço público, o predomínio do automóvel como o meio de transporte preponderante e um desastre ambiental que apenas se delineia.

A FAVELIZAÇÃO DA CIDADE BRASILEIRA

O exemplo de Curitiba mostra que são raras as cidades onde os pedaços bem cuidados e preservados da precariedade urbana não são ilhas de fantasia rodeadas por territórios produzidos informalmente, onde predomina a carência de infra-estrutura, irregularidade fundiária e falta de qualificação urbana. A expansão das favelas, a consolidação de cortiços e a disseminação de loteamentos ilegais e irregulares caracterizam a maior parte das cidades brasileiras no início do século 21. É muito difícil existir no país alguma cidade relevante que não apresente uma dessas marcas.

Levantamento realizado pelo Ministério das Cidades nos 5.591 municípios brasileiros mostrou que, pelo menos, 28% (1.519) deles abrigam favelas, número que atinge 90% se forem considerados apenas os municípios com mais de 500 mil habitantes. Cerca de 10% das prefeituras (540) declararam abrigar no seu território cortiços e 46% afirmaram a existência, em seus municípios, de um total de 63 mil loteamentos irregulares cadastrados, número certamente subestimado. O conjunto dessas situações delineia a desigualdade socioeconômica e cultural brasileira.

O crescimento de favelas é um dos indicadores da gravidade da situação urbana no Brasil. Enquanto a população brasileira cresceu, na última década, 1,98% ao ano, a população moradora de favelas cresceu mais de 7%, segundo os subestimados dados do IBGE, que excluem as favelas com menos de 50 barracos. O Brasil terminou o século 20 com 3.905 favelas identificadas pelo Censo, com um aumento de 22,5% em relação a 1991. Esse aumento, alarmante em termos porcentuais, esconde um crescimento ainda maior da população vivendo em favelas, que se deparara com um adensamento demográfico interno, resultante de novas construções, ampliação familiar ou da transformação de barracos unifamiliares em cortiços no interior das favelas, o que significa a sobreposição de dois problemas urbanos.

Os territórios ilegais e irregulares no país vêm se ampliando, fenômeno que se articula com o crescimento da insegurança pública. O fenômeno está longe de se restringir aos estados e cidades mais pobres. São Paulo, o estado mais rico do país, apresenta o maior número de favelas, concentrando quase 40% desse universo; a cidade de Ribeirão Preto, localizada numa região privilegiada, chamada de Califórnia Paulista, incorporou mais de 16 mil moradores em favelas na década de 1990, com um crescimento de 244%, segundo dados da própria prefeitura.

Essa tragédia tem se agigantado, em vez de diminuir com as intervenções do poder público, marcada por programas de urbanização e regularização fundiária de assentamentos irregulares que se espalham pelo país, ainda de forma tímida. As maiores cidades brasileiras, em especial as metrópoles, passaram a abrigar de 20% a 50% de sua população em favelas, crescimento este que se deu em apenas 30 anos. Durante esse período ocorreu um empobrecimento das cidades e uma intensa redistribuição populacional no Brasil, resultantes de um progressivo esvaziamento rural, de um deslocamento em direção à fronteira agrícola, bem como um contínuo e intenso fenômeno de metropolização. Em 1970, apenas 1% da população da cidade de São Paulo vivia em favelas. Em 2000, essa população saltou para números próximos a 20%. Em todas as regiões o quadro é dramático: 33% da população de Salvador vive em favelas, 28% em Fortaleza, 20% em Belo Horizonte, 13% em Goiânia, 40% no Recife e nada menos que 50% em Belém.

Nas principais cidades do país ocorre um fenômeno cruel: as áreas mais bem servidas de infra-estrutura, emprego e qualidade urbana vêm perdendo população moradora, enquanto as regiões periféricas, desprovidas de benefícios urbanos, e as áreas de proteção ambiental, que deveriam ser preservadas, crescem de forma acelerada gerando graves problemas de mobilidade e depredação ambiental.

A CIDADE EXCLUDENTE CONTRA O MEIO AMBIENTE

A terra urbanizada, localizada em regiões aptas a receber assentamentos humanos e provida de serviços, equipamentos infra-estrutura, vem se tornando cada vez mais cara e inacessível, por mecanismos de mercado, para a população de baixa renda e até mesmo de média baixa renda. Assim, os que não têm recursos são levados a ocupar irregularmente lugares cada vez mais distantes, precários e perigosos. Como as regiões de interesse ambiental – protegidas legalmente – não podem ser utilizadas para empreendimentos imobiliários de mercado, elas se tornam mais vulneráveis para abrigar os assentamentos irregulares de baixa renda. Assim, serras e terrenos de acentuada declividade, áreas de proteção de mananciais, margens dos córregos e rios, mangues e áreas públicas destinadas a praças e ao verde vêm sendo ocupadas à luz do dia, com a omissão do poder público e o interesse dos proprietários, que vêem nesse processo uma maneira de dar uso econômico a suas áreas.

Por muito tempo, o poder público, nos três níveis de governo, esteve ausente na formulação de uma política urbana e fundiária articulada com uma política habitacional de interesse social. Quando muito, a política habitacional se resumiu a produzir milhares de “casinhas” localizadas em conjuntos habitacionais como Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, e Cidade Tiradentes, em São Paulo, ambos localizadas a mais de 30 quilômetros dos centros urbanos. Esses locais ermos e desérticos, verdadeiras cidades-dormitório que se tornaram campeãs dos índices de violência, foram implantados através de terraplanagens criminosas, que geraram processos erosivos e o assoreamento de córregos e rios, com graves danos ambientais.

Não resta dúvida de que esse modelo de cidade excludente nos levará a um beco sem saída para todos. A continuar os processos em curso, os mananciais nas regiões metropolitanas ficarão comprometidos; a falta de áreas verdes – além de tornar ainda mais precárias as condições de vida urbana dos mais pobres – contribuirá para o aquecimento global; a ocupação das áreas de proteção permanente nas beiras de córregos agravará as enchentes urbanas e nas áreas de declividade acentuada levará a mais mortes por deslizamento.

Até recentemente, esses problemas foram desconsiderados, mas estamos chegando em um limite que leva a sociedade a tomar consciência da gravidade da situação. A aprovação do Estatuto da Cidade em 2001, depois de 13 anos de debates no Congresso Nacional, criou novos instrumentos urbanísticos para combater a retenção de terrenos e imóveis ociosos e fazer cumprir a função socia da propriedade. Mas nos municípios, a aplicação do Estatuto depende dos planos diretores, que devem propor como objetivo a reversão desses processos excludentes e utilizar os novos instrumentos para estimular a produção de habitação de interesse social em áreas bem localizadas.

UMA CIDADE SUSTENTÁVEL

Esse modelo de cidade é insustentável. Não só para os sofrem diretamente as conseqüencias desse processo de exclusão territorial, mas para toda a população urbana.

Ele pressupõe uma cidade baseada no automóvel, nos deslocamentos diretos das garagens dos condomínios para os estacionamentos dos shoppings e dos grandes edifícios comerciais. Pressupõe fortalezas e torres de vidros fechadas por sistemas de ar condicionado, vigiadas permanentemente. Pressupõe um crescimento horizontal ilimitado, destruindo áreas de proteção ambiental e zonas rurais, o chamado cinturão verde. Pressupõe o esvaziamento do espaço público, que vem junto com a insegurança das ruas.

São dinâmicas urbanas que não poderão se manter. No Estado de São Paulo, a frota de veículos cresceu, entre 2002 e 2006, quatro vezes mais do que a população, atingindo uma média de um veículo para cada 2,6 habitantes. Esse número só tende a crescer com o aumento da frota de carros usados e com uma pequena melhoria na renda da população: em São Caetano, na região metropolitana de São Paulo, já existe um veículo para cada 1,4 habitantes, número próximo a dos EUA, o país do automóvel. Se as cidades brasileiras não alterarem a maneira como lidam com a mobilidade urbana, priorizando o transporte coletivo e levando os motoristas a deixarem os carros em casa, as cidades se tornarão inviáveis, com congestionamentos monstruosos, alto consumo de energia e forte geração de fumaça. Tudo contribuindo para o aquecimento global.

Esse modelo de cidade que o Brasil está alimentando – tanto na parcela excluída como na integrada ao mercado – produz, como se vê, um forte impacto negativo no meio ambiente. Mas nem tudo está perdido, pois se difunde na sociedade uma consciência de que é necessário reverter esse processo, caminho que não é simples nem rápido, pois significa enfrentar fortes interesses – imobiliários e industriais – e uma cultura urbana firmemente estabelecida nas classes sociais mais privilegiadas, que vêm se acostumando a um modo de vida baseado na fragmentação, na segregação social e no culto ao espaço privado e individual.

Nabil Bonduki
é arquiteto e urbanista. Professor de planejamento urbano na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e pesquisador e consultor em política urbana e habitacional

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