Arcas de Babel: Lubi Prates traduz Maya Angelou

Arcas de Babel: Lubi Prates traduz Maya Angelou
Lubi Prates e Maya Angelou (Fotos: Mayara Barbosa e Divulgação)

 

A poesia leva ao que há de mais singular em cada língua e desafia a experiência da tradução. Entretanto, muitas e muitos poetas traduzem, e às vezes a escrita poética surge junto com um olhar estrangeiro para a própria língua, vem com a consciência de sua singularidade, entre tantas outras. Esse estranhamento intensifica as forças de transformação no interior das línguas, estendendo seus limites, ampliando seus horizontes. E nunca precisamos tanto dos horizontes que a poesia projeta, agora que uma nuvem pesada encobre perspectivas de futuro… Talvez traduzir poesia seja um modo de contribuir para a construção, não de uma torre, mas de uma ponte ou de uma arca utópica que nos ajude a atravessar o dilúvio. Que nela, aos pares, as línguas se encontrem, fecundas.

A série Arcas de Babel acolhe semanalmente traduções de poesia e está aberta também a testemunhos sobre a experiência de traduzir.

Nesta quinta Arca, Lubi Prates nos traz a poesia de Maya Angelou, que ela também apresenta.

Lubi Prates (1986, São Paulo/SP) é poeta, tradutora, editora e curadora de Literatura. Tem três livros publicados (coração na boca, 2012; triz, 2016; um corpo negro, 2018). “um corpo negro” foi contemplado pelo PROAC com bolsa de criação e publicação de poesia e está em processo de publicação, em 2020, na Argentina, Colômbia, Estados Unidos, Espanha e França, além de ser finalista do 4º Prêmio Rio de Literatura e do 61º Prêmio Jabuti. Tem diversas publicações em antologias e revistas nacionais e internacionais. Organizou os festivais literários para visibilidade de poetas, [eu sou poeta] (São Paulo, 2016) e Otro modo de ser (Barcelona, 2018) e também participou de outros festivais literários no Brasil e em outros países da América Latina. É sócia-fundadora e editora da nosotros, editorial, e é editora da revista literária Parênteses. Dedica-se à ações que combatem a invisibilidade de mulheres e negros. Atualmente, é doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento Humano, na Universidade de São Paulo.

***

Maya Angelou (Marguerite Annie Johnson) foi uma poeta, escritora, condutora de bondes (a primeira negra contratada para a função), atriz, cantora, dançarina, diretora de cinema e ativista pelos direitos dos negros, ou seja, teve uma vida recheada de histórias – que ela gostava de contar e repetir, e que lhe renderam sete autobiografias – sucessos mundiais.

Com a poesia, Maya conquistou o Pulitzer com o livro Apenas me dê um copo de água gelada antes que eu morraaa e três Grammy com álbuns de poesia falada, e essa era uma relação especial porque foi através da poesia que Maya conseguiu romper com um trauma vivido na infância. Quando tinha 7 anos, Maya foi estuprada pelo namorado de sua mãe. Ela compartilhou o acontecido com seu irmão, Bailey, que contou para o resto da família – dias depois, o estuprador foi encontrado morto. Com isso, Maya acreditou que sua voz tinha matado aquele homem e que, portanto, poderia matar qualquer um, por isso parou de falar e esse mutismo durou anos, sendo quebrado pela provocação feita por uma amiga da família, a senhora Flowers, com quem Maya passava algumas tardes. A senhora Flowers lia para Maya uma infinidade de poetas (Shakespeare, Dickens, Poe) que, depois, se tornaram referências para ela. “Maya, você não gosta de poesia… Você nunca vai gostar até que a recite, até sentí-la rolar pela sua língua, sobre os dentes, através de seus lábios. Você nunca vai gostar”. Diante disso, cinco anos depois que decidiu parar de falar, Maya tentou recitar um poema. Essa relação que criou com a poesia, Maya explicava como “a prova de que algo bom pode nascer de uma situação ruim”. Desse momento em diante, mesmo com diversas atividades simultâneas, Maya sempre enxergou a poesia como seu ofício.

Publicou cinco livros de poesia: Apenas me dê um copo de água gelada antes que eu morraaa; Oh, reze para que minhas asas me caiam bem; E ainda assim eu me levanto; Shaker, por que você não canta? e Eu não serei levada, além de diversos poemas avulsos que foram traduzidos por mim e publicados, no Brasil, em março de 2020, na sua Poesia completa.  Seus poemas falam sobre a condição da mulher negra estadunidense, que ama, viaja, trabalha, tem fé, resiste e luta – como dizia: “afiando a ponta da caneta nas cicatrizes que existiam no seu próprio corpo”. Com a chegada desta publicação ao país, é possível, ainda, se tratando de uma existência particular, encontrar diversas relações entre a vida da Maya e as vidas de tantas mulheres negro-brasileiras. Abaixo, os poemas e suas traduções. Lubi Prates

 

Minha culpa

 

Minha culpa são “as correntes da escravidão”, por muito tempo
o barulho do ferro caindo ao longo dos anos.
Este irmão vendido, esta irmã que se foi,
tornam-se uma cera amarga tapando os meus ouvidos.
Minha culpa fez música com as lágrimas.

Meu crime são “os heróis mortos e esquecidos”,
Vesey, Turner, Gabriel, mortos,
Malcolm, Marcus, Martin King, mortos.
Eles lutaram pesado e amaram bastante.
Meu crime é estar viva para contar.

Meu pecado é “estar pendurada numa árvore”,
Eu não grito, isso me deixa orgulhosa.
Decidi morrer como um homem.
Faço isso para impressionar a multidão.
Meu pecado é não gritar mais alto.

 

My guilt

 

My guilt is “slavery’s chains,” too long
the clang of iron falls down the years.
This brother’s sold, this sister’s gone,
is bitter wax, lining my ears.
My guilt made music with the tears.

My crime is “heroes, dead and gone,”
dead Vesey, Turner, Gabriel*,
dead Malcolm, Marcus, Martin King.
They fought too hard, they loved too well.
My crime is I’m alive to tell.

My sin is “hanging from a tree,”
I do not scream, it makes me proud.
I take to dying like a man.
I do it to impress the crowd.
My sin lies in not screaming loud.

Nota: Vesey, Turner e Gabriel, assim como os também citados (e mais conhecidos) Malcolm X, Marcus Garvey e Martin Luther King, foram lutadores pela liberdade dos negros.

 

Chamada

 

Ele era chamado de homem de cor
depois de responder a um “ô, preto”.
Isso é um salto gigante,
seja lá o que você pensa.
Ó, gata, olha a minha fumaça.
De homem de cor para Preto,
Com P maiúsculo,
era como dizer Japonês
em vez de dizer Japa.
Digo, na época da guerra.
O grande passo seguinte
foi uma mudança real,
de Preto com P maiúsculo
para judeu.
Agora, canta, Yiddish Mama.
Pele clara, amarela, marrom
e marrom-escuro
Eram cores ok para
descrevê-lo naquela época.
Ele era um buquê de rosas.
Ele mudou suas estações
como um almanaque.
Agora, você vai se machucar
se não chamá-lo de “Negro”.
Preto, dessa vez não tô brincando.

 

The Calling of Names

 

He went to being called a colored man
after answering to “hey, nigger”.
Now that’s a big jump,
anyway you figger.
Hey, Baby, watch my smoke.
From colored man to Negro,
With the N in caps,
was like saying Japanese
instead of saying Japs.
I mean, during the war.
The next big step
was a change for true,
From Negro in caps
to being a Jew.
Now, Sing, Yiddish Mama.
Light, Yellow, Brown
and Dark-brown skin,
were okay colors to
describe him then.
He was a Bouquet of Roses.
He changed his seasons
like an almanac.
Now you’ll get hurt
if you don’t call him “Black.”
Nigguh, I ain’t playin’ this time.

 

Sobre o proletariado progressista branco

 

Eu não estou pedindo pela Legião Estrangeira
Ou qualquer um para conseguir minha liberdade
Ou para lutar minha batalha melhor do que eu.

Enquanto houver algo pelo que chorar
Haverá pelo que morrer
Essa é a responsabilidade de todos.

Eu receio que eles tenham que provar primeiro
Que vejam o homem negro mover-se primeiro
para, então, segui-lo com fé ao reino que virá.
Esta estrada não é asfaltada para nós,
Então, eu acreditarei na ajuda dos progressistas para nós
Quando eu vir um branco carregar a arma de um negro.

 

On Working White Liberals

 

I don’t ask the Foreign Legion
Or anyone to win my freedom
Or to fight my battle better than I can,

Though there’s one thing that I cry for
I believe enough to die for
That is every man’s responsibility to man.

I’m afraid they’ll have to prove first
That they’ll watch the Black man move first
Then follow him with faith to kingdom come.
This rocky road is not paved for us,
So, I’ll believe in Liberals’ aid for us
When I see a white man load a Black man’s gun.

 

Amarelinha do Harlem

 

Um pé para baixo, pule! É quente.
Boas coisas para quem tem.
Outro pulo, agora para a esquerda.
Todo mundo por si só.

No ar, agora com os pés para baixo.
Já que você é negro, não fique por aqui.
A comida acabou, o aluguel venceu,
Xingue e chore, depois dê dois pulos.

Todo mundo desempregado,
Conte até três, depois gire e arranque.
Cruze a linha, e eles te excluem.
É disso que o jogo se trata.

Pés no chão, o jogo acabou.
Eles pensam que eu perdi. Eu penso que venci.

 

Harlem Hopscotch

 

One foot down, then hop! It’s hot.
Good things for the ones that’s got.
Another jump, now to the left.
Everybody for hisself.

In the air, now both feet down.
Since you black, don’t stick around.
Food is gone, the rent is due,
Curse and cry and then jump two.

All the people out of work,
Hold for three, then twist and jerk.
Cross the line, they count you out.
That’s what hopping’s all about.

Both feet flat, the game is done.
They think I lost. I think I won.

 

Mais uma rodada

 

Não há pagamento mais doce sob o sol
Do que o descanso depois de um trabalho bem feito.
Eu nasci para trabalhar até morrer
Mas eu não nasci
Para ser escrava.

Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.

Papai molda o aço e Mamãe mantinha a guarda,
Nunca os ouvi reclamando porque o trabalho era pesado.
Nasceram para trabalhar até morrer
Mas não nasceram
Para morrer escravos.

Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.

Irmãos e irmãs sabem as tarefas diárias,
O trabalho não fez com que perdessem a cabeça.
Eles nasceram para trabalhar até morrer
Mas não nasceram
Para morrer escravos.

Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.

E agora vou contar qual é minha Regra de Ouro,
Eu nasci para trabalhar, mas não sou nenhuma mula.
Eu nasci para trabalhar até morrer
Mas não nasci
Para morrer escrava.

Mais uma rodada
E viramos o navio,
Mais uma rodada
E viramos o navio.

 

One more round

 

There ain’t no pay beneath the sun
As sweet as rest when a job’s well done.
I was born to work up to my grave
But I was not born
To be a slave.

One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.

Papa drove steel and Momma stood guard,
I never heard them holler ’cause the work was hard.
They were born to work up to their graves
But they were not born
To be worked-out slaves.

One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.

Brothers and sisters know the daily grind,
It was not labor made them lose their minds.
They were born to work up to their graves
But they were not born
To be worked-out slaves.

One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.

And now I’ll tell you my Golden Rule,
I was born to work but I ain’t no mule.
I was born to work up to my grave
But I was not born
To be a slave.

One more round
And let’s heave it down,
One more round
And let’s heave it down.

 

Por que eles estão felizes?

 

Arreganhe seus dentes, maldito,
agite seus ouvidos,
sorria enquanto os anos
correm
do seu rosto.

Levante as bochechas, garoto negro,
enrugue seu nariz,
sorria enquanto os seus dedos
cavam
o seu túmulo.

Revire esses olhos grandes, garota negra,
emborrache seus joelhos,
sorria quando as árvores
se curvarem
com seus parentes.

 

Why are they happy people?

 

Skin back your teeth, damn you,
wiggle your ears,
laugh while the years
race
down your face.

Pull up your cheeks, black boy,
wrinkle your nose,
grin as your toes
spade
up your grave.

Roll those big eyes, black gal,
rubber your knees,
smile when the trees
bend
with your kin.

 

Ainda assim me levanto

 

Você pode me marcar na história
Com suas mentiras amargas e torcidas
Você pode me esmagar na própria terra
Mas ainda assim, como a poeira, eu vou me levantar.

Meu atrevimento te perturba?
O que é que te entristece?
É que eu ando como se tivesse poços de petróleo
Bombeando na minha sala de estar.

Assim como as luas e como os sóis,
Com a certeza das marés,
Assim como a esperança brotando,
Ainda assim, eu vou me levantar.

Você queria me ver destroçada?
Com a cabeça curvada e os olhos baixos?
Ombros caindo como lágrimas,
Enfraquecidos pelos meus gritos de comoção?

Minha altivez te ofende?
Não leve tão a sério
Só porque rio como se tivesse minas de ouro
Cavadas no meu quintal.

Você pode me fuzilar com suas palavras,
Você pode me cortar com seus olhos,
Você pode me matar com seu ódio,
Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar.

Minha sensualidade te perturba?
Te surpreende
Que eu dance como se tivesse diamantes
Entre as minhas coxas?

Saindo das cabanas da vergonha da história
Eu me levanto
De um passado enraizado na dor
Eu me levanto
Sou um oceano negro, vasto e pulsante,
Crescendo e jorrando eu carrego a maré.

Abandonando as noites de terror e medo
Eu me levanto
Para um amanhecer maravilhosamente claro
Eu me levanto
Trazendo as dádivas que meus ancestrais me deram,
Eu sou o sonho e a esperança dos escravos.
Eu me levanto
Eu me levanto
Eu me levanto.

 

Still I Rise

 

You may write me down in history
With your bitter, twisted lies,
You may trod me in the very dirt
But still, like dust, I’ll rise.

Does my sassiness upset you?
Why are you beset with gloom?
’Cause I walk like I’ve got oil wells
Pumping in my living room.

Just like moons and like suns,
With the certainty of tides,
Just like hopes springing high,
Still I’ll rise.

Did you want to see me broken?
Bowed head and lowered eyes?
Shoulders falling down like teardrops,
Weakened by my soulful cries?

Does my haughtiness offend you?
Don’t you take it awful hard
’Cause I laugh like I’ve got gold mines
Diggin’ in my own backyard.

You may shoot me with your words,
You may cut me with your eyes,
You may kill me with your hatefulness,
But still, like air, I’ll rise.

Does my sexiness upset you?
Does it come as a surprise
That I dance like I’ve got diamonds
At the meeting of my thighs?

Out of the huts of history’s shame
I rise
Up from a past that’s rooted in pain
I rise
I’m a black ocean, leaping and wide,
Welling and swelling I bear in the tide.

Leaving behind nights of terror and fear
I rise
Into a daybreak that’s wondrously clear
I rise
Bringing the gifts that my ancestors gave,
I am the dream and the hope of the slave.
I rise
I rise
I rise.


> Assine a Cult. A mais longeva revista de cultura do Brasil precisa de você

Deixe o seu comentário

TV Cult