Apresentação
The Cleveland Museum Of Art
Desde a primeira década deste século, a realidade universitária brasileira tem passado por um profundo processo de transformação. No centro desse processo, estão as políticas de ações afirmativas que buscam promover o acesso e a permanência de estudantes negros, indígenas, com deficiência e oriundos de escolas públicas. Há muito a se avançar, em especial na pós-graduação e no corpo docente, mas, após pouco mais de duas décadas, estamos finalmente em vias de ver nos bancos dos cursos de graduação um corpo estudantil mais próximo do conjunto étnico-racial da sociedade brasileira.
A mudança de perfil dos estudantes fortaleceu as linhas de tensão e crítica que há um bom tempo põem a produção de conhecimento no Brasil em questão. Isso porque o aumento da presença negra na universidade não teve significado apenas para os estudantes beneficiados pelas políticas públicas; também deixou patente que as dinâmicas de produção de conhecimento precisavam mudar, assim como as próprias universidades. Com menor ou maior velocidade, temos visto tudo isso neste momento pelo país.
A produção acadêmica no Brasil ainda é excessivamente eurocêntrica, de modo que o conhecimento produzido por pessoas brancas para pessoas brancas é tomado como referencial universal. Porém, as linhas de tensão fortalecidas por um corpo discente enegrecido têm obtido sucesso em evidenciar a necessidade de mudanças epistêmicas, curriculares e institucionais. Esse cenário é particularmente dramático no caso da filosofia. Até o momento, ela se constituiu como a mais resistente das humanidades à presença de pessoas negras e de epistemologias não ocidentais.
É nesse cenário que se inserem os estudos filosóficos negros no Brasil. Eles são um campo de confluência das matrizes globais da filosofia – especialmente as africanas, afrodiaspóricas e latino-americanas – com a herança do pensamento negro brasileiro. Por um lado, eles se caracterizam como uma vertente de produção de diagnósticos e crítica das dinâmicas de subalternização e subjugação do mundo contemporâneo. Por outro, buscam construir alternativas de produção da vida e de transformação das instituições a partir da reflexão baseada nas tradições intelectuais negras.
Epistemologia, ética e política, nesse caso, se apresentam como linhas mestras que orientam em complementaridade o campo dos estudos filosóficos negros, geralmente com um horizonte de intervenção, sem, no entanto, abdicar do rigor intelectual. Reconhecendo a força da autonomia e da emancipação, herança da crítica ao colonialismo, é um campo que assume um inevitável conflito com círculos que promovem a filosofia brasileira como mera divulgadora das filosofias europeias.
Do ponto de vista das demandas epistêmicas do campo, é importante notar que não se trata do estabelecimento de uma espécie de princípio de diversidade esvaziado da crítica. O que está em jogo não é a criação de notas de rodapé que reconheçam a existência de uma filósofa ou um filósofo negro. A linha de tensão está, antes, no próprio modo de pensar a filosofia: o que ela é, qual é sua história, para que e para quem ela serve. Nesse sentido, os estudos filosóficos negros se mostram como uma inflexão que pode conduzir à mudança nos modos como se faz filosofia, por incorporar geografias da razão antes excluídas do debate filosófico convencional.
Desde uma perspectiva internacional, as filosofias africanas contemporâneas arquitetam há mais tempo a abertura e a experimentação filosófica que se fazem no escrutínio de uma filosofia europeia provincializada, e contra a razão colonial que tem definido o que é história, cultura e filosofia fora da Europa. Como alerta Valentim Mudimbe, as filosofias africanas, superando a armadilha da etnofilosofia, se encontram em estado de permanente construção crítica para criar um conjunto de memórias que denuncia as consequências desastrosas do colonialismo e do imperialismo sobre o continente africano. Soma-se a isso a produção crítica pelo filosofar em/com múltiplas línguas num movimento pendular no qual o tempo da tradição convive com o contemporâneo, guiando uma ética da convivialidade Ubuntu renovada.
A afrodiáspora também produz seus modos filosóficos de expressão, após séculos de acordos coloniais, de imperialismo e colonização interna neoextrativista. Investigações sobre o humano e as novas fronteiras do humanismo foram consistentemente apresentadas por filósofos que transformaram suas terras insulares em umbigo do mundo, capazes de alimentar a imaginação planetária, como fazem o martinicano Édouard Glissant e a jamaicana Sylvia Wynter. As políticas da cultura da diáspora inspiraram filosofias a toque de ritmos, que transformam o Caribe e a América Latina em lugares nos quais se dizer negro é se deixar habitar pelos vestígios infinitos das ondas do Atlântico. Definição tal que também passa pela arquitetura política impressa no primeiro sentido de liberdade: a liberdade vivida como práxis nos quilombos, palenques, cimarrones, e num legado abolicionista que se mostra como um campo ainda inexplorado pela filosofia dentro das universidades brasileiras. Ideias em movimento que contrariam o que a colonização impôs e limitou aos descendentes de africanos.
O material deste dossiê sobre os estudos filosóficos negros toca nos sentidos abertos à filosofia quando a experiência do pensamento é posta diante desses limites e possibilidades. Iniciamos o dossiê com uma entrevista com a filósofa brasileira Denise Ferreira da Silva, autora de livros que têm causado grande impacto nas humanidades, como Homo modernus e A dívida impagável. Ela explora a necessidade que sentiu de se voltar à filosofia para refletir sobre as dinâmicas raciais e de exploração contemporâneas. Sua contribuição para a filosofia é decisiva, já que suas teses têm a força de impor o aspecto racial aos problemas mais caros à modernidade e ao capitalismo, ao mesmo tempo que convoca uma nova combinação entre razão e sensibilidade.
A seguir, temos três ensaios que apresentam algumas das perspectivas exploradas pelos estudos filosóficos negros. No primeiro deles, wanderson flor do nascimento apresenta a expansão da filosofia africana contemporânea e o horizonte que se abre quando ela é mobilizada como ferramenta conceitual. Tanto no contexto global quanto no contexto nacional acumulam-se proposições que posicionam a elaboração filosófica no sentido de uma crítica não ressentida, reconduzindo as elaborações da ontologia, da epistemologia, da estética e da política. A seguir, Halina Leal percorre eventos que culminaram nas formulações do feminismo negro como campo discursivo e epistêmico, em que teorização e ativismo se reconectam para traçar uma linha de corte sobre a vida das mulheres negras em sociedades baseadas em estruturas de dominação masculina e branca. Sustentando diferentes enunciados de filósofas negras, encontra-se um projeto político comum de justiça e reparação transversal à experiência humana. No último ensaio, Teófilo Reis mergulha nos usos e sentidos da filosofia brasileira pensada por Lélia Gonzalez, Abdias do Nascimento e Sueli Carneiro. Ancoradas na realidade dos negros no Brasil, suas contribuições compõem a pedra fundamental para conceber um pensamento implicado em expor e transformar a realidade social.
Boa leitura.
Fernando Moreira-Zau é professor do Programa de Pós- -Graduação em Filosofia da UFF. Tradutor de Sobre a impassividade da mente humana e Ideia distinta do que compete à mente ou ao nosso corpo vivo e orgânico, ambos do filósofo africano Anton Wilhelm Amo. É autor do livro Schopenhauer e Nietzsche (CRV, 2019) e de artigos sobre racismo acadêmico e estudos filosóficos negros
Maria Fernanda Novo é professora de filosofia intercultural e pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Filosofia da Unicamp. Pós-doutora em filosofia na Universidade de São Paulo e visiting scholar na CUNY/Graduate Center, Nova York





