Aos nascidos em 1964

Aos nascidos em 1964
Soldados em manifestação no centro do Rio, 1968 (Arquivo Nacional, Correio da Manhã)

 

A morte trágica do cantor Francisco Alves, no auge da fama em 1952, provocou uma comoção nacional. Foi o maior enterro da história até então. Dois anos depois, Getúlio Vargas cometeu suicídio e a comoção nacional foi maior ainda – e o cortejo popular levando o caixão até o aeroporto foi o maior da história até hoje. O sucessor de Chico Alves teve poucos meses de glória. Era um cantor mediano, de nome João Dias, com um timbre assemelhado ao do Rei da Voz, mas sem o mesmo talento e desprovido de  carisma. O herdeiro político de Vargas foi João Goulart, que em 1955 se elegeu vice de JK com votação superior à do titular (sim, naquela época votava-se separadamente para os dois cargos). Cinco anos depois,  reelegeu-se vice de Jânio, a quem sucedeu, e ainda teria uma sobrevida política até 1964, quando caiu por incompetência. Jango era o João Dias de Vargas.

Incompetente é pouco. Jango parecia governar o mundo da Lua. Quando a conspiração fechou o cerco, em março de 64, procurou apoio nos sindicatos e nos cabos e sargentos. Àquela época, a estrutura sindical era totalmente desorganizada e desagregada, chefiada por pelegos e espertalhões em geral. As cúpulas dos sindicatos não comandavam as “massas”, como parecia crer o presidente da República. Quanto aos militares, Jango caprichou: apostou todas as suas fichas na quebra da hierarquia, jogando os oficiais superiores na oposição. Deu no que deu.

Foi a essa gente que Jango pediu apoio no célebre comício da Central, o baile da ilha Fiscal do seu mandato. Imagine a cena: um presidente sem apoio político e sem comando nas entranhas do poder, em cima de um palanque, rodeado de notórios gatunos, a clamar por democracia. Patético.

A capital estava em Brasília há apenas três anos e era no Rio de Janeiro onde as coisas ainda aconteciam – a começar pela trama do golpe. No Brasil de quarenta anos atrás as instituições eram frágeis, os meios de comunicação limitados à classe média e a tradição militarista mais forte do que nunca. Generais eram celebridades, ao contrário de hoje (um doce para quem souber o nome do atual comandante do Exército).

Foi, sim, um golpe de Estado – e no melhor estilo republiqueta. O presidente da República tomou um avião em Brasília e, antes que pousasse em Porto Alegre, o Congresso Nacional decretou a vacância do cargo. Como vacância, se o presidente não renunciou nem se ausentou do país? O presidente estava caindo sozinho, de maduro, como uma jaca que se esborracha no chão. Bastava um leve toque, não mais que um esbarrão, e foi o que aconteceu. O resto como se sabe, seguiu o manual: deu-se posse ao presidente da Câmara, um obscuro deputado paulista de nome Ranieri Mazzilli, até um colégio eleitoral parlamentar eleger o marechal Castelo Branco, que por sua vez baixou um ato institucional cassando dezenas de mandatos e cancelando a eleição do ano seguinte – para a qual JK era o grande favorito.

Começava a ditadura envergonhada, como a batizou Elio Gaspari. Tão envergonhada que não implantou a censura na imprensa, item número um do manual de qualquer ditadura que se preze. Nem precisava. Com exceção da Última Hora, de Samuel Wainer, afilhado de Vargas, toda a grande imprensa apoiou o golpe. Os canhões de Assis Chateaubriand e de Júlio de Mesquita Filho foram muito mais eficientes que os blindados do I Exército. Os repórteres de rádio Tico-Tico e Carlos Spera, das emissoras Associadas (de Chatô), ficaram 48 horas no ar, sustentando brilhantemente a logística do golpe, o que permitia a general combinar com general, ao vivo, cada passo da operação. Foi um passeio.

Durante quatro anos, a partir de 64, imperou no Brasil a mais ampla, total e irrestrita liberdade de expressão. Os jornais publicavam o que queriam. Tinham plena autonomia para elogiar a “revolução” que eles mesmos haviam feito. Na preparação do golpe, sob o pretexto de salvar o Brasil do perigo comunista, organizaram em várias capitais a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, estrondosos sucessos de público e de bilheteria. De bilheteria, sim, pois logo após o golpe os Associados inventaram o “Doe Ouro para o Bem do Brasil” – outro sucesso, com o mesmo público. Hoje pode parecer estranho, mas milhares de pessoas faziam fila na rua Sete de Abril para entregar alianças, pulseiras e colares nas mãos salvadoras de Edmundo Monteiro, o homem de Chatô em São Paulo.

Fora da imprensa, todas as demais modalidades de expressão puderam gritar à vontade, sob Castelo. Foi quando surgiu a música de protesto, com Chico Buarque e sua geração, e o teatro não menos protestante, de Boal e Guarnieri. Alguns setores do show business ficaram tão empolgados que fundaram a esquerda festiva.

Mas, como tudo na vida pode piorar, quem se queixava de 64 não sabia o que nos esperava em 68. Aí sim, com o Ato Institucional n° 5, o pau comeu. A ditadura esgotou o manual e criou em cima: implantou a censura, cassou mandatos, fechou o Congresso, suspendeu o habeas corpus, revogou a Constituição, instituiu a pena de banimento, liberou a tortura e tolerou as execuções sumárias – tudo em defesa da segurança nacional. Somados os dez anos de vigência do AI-5 com os períodos anteriores e posterior, foram 21 anos de retrocesso político.

Se Jango tivesse competência para levar o barco só mais um ano, até 1965, provavelmente JK teria cumprido um segundo mandato, até 1970. E certamente passaria o posto a alguém eleito pelo voto popular. Toda uma geração de jovens políticos em ascensão teria então seguido o curso natural de suas trajetórias. Mario Covas, por exemplo, poderia ser governador de São Paulo em 1978 e, quem sabe, presidente da República em 1982. Essa futurologia do passado serve apenas para se imaginar o tempo que o Brasil perdeu.

Saibam pois os nascidos em 1964 que a segurança das instituições que hoje usufruímos é conquista recente. Dos 504 anos de vida do Brasil, 486 foram vividos debaixo de alguma forma de autoritarismo. A Assembléia Constituinte de 1986 foi a primeira com participação dos setores organizados da sociedade. Graças a ela, a expressão “defesa da democracia” foi banida do discurso político. Não carece de defesa o que está suficientemente forte. Foi ela quem deu poderes ao Ministério Público, criou o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente e toda a proteção ao meio ambiente.

Antes disso, democracia era historicamente espasmódica, efêmera e frágil, um gesto de boa vontade dos detentores do poder com prazo de validade até o próximo golpe. Por isso, reconheça-se, a Constituição de 1988 é a certidão de nascimento da democracia brasileira.

PS: Lembrou o nome do comandante do Exército?

 


Oswaldo Martins é jornalista

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