Antonio Gramsci e a linguística
(Arte Andreia Freire)
Ao leitor dos Cadernos do cárcere pode acontecer muitas vezes de se encontrar com notas e apontamentos que parecem particularmente extravagantes, e em qualquer caso, muito longe dos motivos que o levaram às páginas de Gramsci. O efeito pode aumentar grandemente para aqueles que olham para cadernos a partir de continentes distantes, que não têm familiaridade especial com a cultura italiana, e talvez se interessem principalmente pelos aspectos estritamente políticos de reflexão que ocorrem lá. Não é difícil pensar que alguns tenham lido os nomes de Alfredo Oriani, Alfredo Panzini, Mino Maccari apenas nos escritos de Gramsci na prisão, e estejam interessados neles somente para tentar entender o significado de certas passagens desses textos. Certamente, os três literatos recém-nomeados caíram em um esquecimento merecido na segunda metade do século 20, como muitos dos participantes da sociedade literária dos anos de fascismo. No entanto, os seus debates constituíram para Gramsci o movimento vivo do próprio presente, sem o qual, para ele, não seria possível interpretar o passado e ter uma ideia realista da história italiana: “o presente contém todo o passado e do passado realiza-se no presente aquilo que é ‘essencial’ sem nenhum resíduo de um ‘desconhecido’ que seria a verdadeira ‘essência’. O que foi ‘perdido’, ou seja, o que não foi transmitido dialeticamente no processo histórico, era, em si, irrelevante”.
Entre as notas mais desconcertantes para um leitor não especialista, existem aqueles que se dedicam à linguística. A razão é diferente da que se acabou de ver: os nomes dos estudiosos aos quais Gramsci se refere – Antonino Pagliaro, Matteo Bartoli, Giulio Bertoni, Giacomo Devoto, Vittore Pisani – ainda estão presentes nas bibliografias atuais da linguística histórica. Seus nomes e suas obras, no entanto, são conhecidos apenas pelos especialistas nessa disciplina. Deve-se considerar que, apesar de Gramsci escrever sobre muitos temas na prisão – política, história, filosofia, economia, literatura, folclore, religião, jornalismo… –, havia recebido uma formação profissional apenas em linguística. Isto é claramente visível nos juízos específicos que formula sobre as personalidades nomeadas acima, todas geralmente muito agudas e em sua maioria confirmadas pela tradição posterior.
Linguística histórica
Gramsci foi em sua juventude um estudante de linguística histórica: formado na Universidade de Turim, sob a orientação de Matteo Bartoli, uma das maiores personalidades da linguística na Itália da época. Recentemente foi editada, de forma crítica, na edição nacional dos escritos de Gramsci publicada pelo Istituto della Enciclopedia Italiana, a apostila do curso ministrado por Bartoli no ano letivo de 1912-1913. Essa brochura, com a qual os alunos daquele ano tiveram que se preparar para o exame de glotologia (termo usado na grade curricular italiana para denominar a linguística histórica), foi impressa originalmente com a técnica da litografia a partir de uma matriz manuscrita. A mão que redigiu a matriz gráfica é claramente identificável com a do jovem Antonio Gramsci (que também assinou a única cópia conhecida), então um estudante que havia frequentado aquela disciplina universitária, e que tinha sido encarregado pelo professor para transcrever o conteúdo das lições. Na primeira parte desse livro fala-se de fonologia e morfologia histórica românica, com referência à conjugação verbal dos franceses. A segunda parte expõe um grande esboço da situação linguística da Península Balcânica: com referências ao romeno, ao veneziano, ao judaico-espanhol presente nos Bálcãs depois da migração sefardita da Espanha, do eslavo, do albanês e do grego. O tema constituía uma das áreas nas quais Bartoli havia se especializado como um estudioso do dálmata, uma antiga língua românica presente na costa do Adriático oriental, extinta entre os séculos 19 e 20. A partir das cartas de Gramsci desses anos, é possível saber que ele havia começado alguns estudos sobre o sardo, sua língua nativa, e tinha, em particular, a intenção de realizar um trabalho sobre as “palavras e coisas” dedicadas à tecelagem, terminologia que incluiria todo o processo de produção, do cultivo à fiação do linho e ao tear. Também a partir de sua correspondência, sabemos que ele havia sido encarregado de conferir os vocábulos sardos reunidos por Wilhelm Meyer-Lübke, o professor de linguística românica de Viena com o qual Bartoli estudara, para seu dicionário etimológico românico (Romanisches Etymologisches Wörterbuch, primeira edição em Heidelberg entre 1911 e 1920).
A entrada da Itália na guerra, em 1915, provocou em Gramsci, no entanto, um gradual distanciamento dos estudos e, embora ainda em 1918 esperasse se formar em linguística, nunca teria sucesso nesta empreitada, dedicando toda sua energia à atividade revolucionária. Desde o final de 1915, na verdade, ele havia começado sua colaboração com o jornal do Partido Socialista Italiano, o Avanti! e em 1917 se tornou o diretor de Il Grido del Popolo, uma pequena revista dos socialistas de Turim, que Gramsci transformou gradualmente em um verdadeiro instrumento de luta cultural e teórica. Mas é com o fim da guerra e o retorno a Turim dos companheiros de universidade que estavam na frente de batalha – incluindo Umberto Terracini, Palmiro Togliatti e Angelo Tasca – que Gramsci pode unir sob sua liderança um núcleo ideológico coeso com o qual lançou uma revista própria. Nascia assim L’Ordine Nuovo e os estudos linguísticos foram por algum tempo colocados de lado.
Questão nacional
O interesse em problemas de linguagem ressurgiu em Gramsci, por razões totalmente inesperadas, durante a longa viagem feita entre 1922 e 1924 na Rússia revolucionária e na nova república austríaca. Em Moscou, ele pôde presenciar o debate sobre a questão nacional, o tema principal do debate político que acompanhou a fundação da União Soviética em 1923. O novo Estado revolucionário tinha de fato assumido uma forma federalista, com base nas diferentes identidades nacionais dos povos soviéticos, cada uma delas estabelecida com base em critérios linguísticos. Além disso, lançara uma grande campanha de alfabetização com o objetivo ambicioso não só de ensinar a população, em grande parte analfabeta, a ler e escrever, mas também de alfabetizar cada cidadão soviético na sua língua materna. Assim, a direção bolchevique teve de enfrentar o problema das relações com as muitas dezenas de línguas presentes na União, para o qual não podia encontrar indicação na tradição marxista a respeito da reflexão sobre a linguagem e a própria linguagem. As competências de Gramsci, então um quadro político e intelectual da Internacional Comunista, mas proveniente dos estudos linguísticos, não passaram despercebidas.
A abordagem soviética para a questão nacional foi acolhida prontamente por Gramsci e adaptada por ele para a Itália em seus escritos de 1923-1926, período no qual assumiu a liderança do Partido Comunista Italiano. A carta enviada de Moscou, em setembro 1923, para a fundação do jornal diário do partido, L’Unità, terminava com a palavra de ordem da “República federativa de operários e camponeses”. A Itália passara a ser lida por Gramsci com as lentes da questão nacional. Mesmo a tradicional questão do Mezzogiorno italiano era definida como uma questão nacional no notável escrito de 1926 redigido pouco antes de encarceramento, Note sul problema meridionale, embora fosse uma “nação sem uma linguagem” de acordo com a fórmula de Marx e Engels.
Filosofia da práxis
Mas foi em seus Cadernos do cárcere que as reflexões sobre a relação entre linguagem e a dimensão popular-nacional foram elaboradas mais plenamente. Gramsci dedicou ao tema uma série de notas de conteúdo estritamente linguístico, relativas ao processo de formação das grandes línguas da cultura europeia e sua influência mútua.
Mas ele também se concentrou em um tema incomum para o marxismo até o momento: como desenvolver uma teoria da linguagem no âmbito do materialismo histórico. Ou como imprimir uma guinada linguística ao marxismo. Sobre esta questão, Gramsci elaborou algumas sugestões presentes na obra de Antonio Labriola: sua reflexão é organizada especialmente no caderno mais teórico e sistemático, aquele que recebeu o número 11 na edição atual.
O parágrafo introdutório deste caderno é que lemos hoje, com o número 12 (Gianni Francioni demonstrou que este caderno foi iniciado por este parágrafo). Aqui Gramsci coloca uma questão fundamental: a filosofia não é a arte de um pequeno grupo profissional (“a atividade intelectual própria de uma certa categoria de cientistas especializados e de filósofos profissionais e sistemáticos”), mas é inerente a todo ser humano. A diferença entre a filosofia profissional e aquela “espontânea”, entre a filosofia dos doutos e a dos simples, é que enquanto a primeira é processada de forma crítica e consistente, a segunda é repleta de contradições e visões conflitantes do mundo. A primeira, portanto, permite a direção das grandes massas enquanto a última não é capaz de fazer os grupos subalternos saírem da passividade ou, no máximo, inspira a ação descoordenada de pequenos grupos. A prova de que todos os homens são filósofos é indicada na linguagem, “um conjunto de noções e certos conceitos, não apenas palavras gramaticalmente vazias de conteúdo”. O processo de elaboração crítica da filosofia começa a partir da linguagem e encontra duas conclusões lógicas. A primeira Gramsci localiza no caderno 29, dedicado à política linguística: se o ambiente linguístico é o primeiro educador, ele pode sempre ser educado por meio de uma ação de language planning, como se diria hoje.
A segunda conclusão se encontra naquele caderno 11, nas notas dedicadas à tradutibilidade das linguagens científicas e filosóficas. Aqui, Gramsci trata das três partes tradicionalmente constitutivas do marxismo, apresentadas primeiramente por Engels no Anti-Dühring: a filosofia, a economia e a política. O relacionamento delas não está definido por Gramsci em termos de uma identidade, como o marxismo precedente (em especial, indicando a identidade entre a filosofia e política) tradicionalmente pensava, ou na fórmula leninista da “política como a economia concentrada”. Gramsci fala de uma “tradutibilidade” mútua, garantida pelo fato de que todas são atividades de linguagem e, portanto, podem ser traduzidas em uma na outra pela linguagem: “Filosofia-política-economia. Se essas três atividades são os elementos constitutivos necessários de uma mesma concepção do mundo, necessariamente deve haver, em seus princípios teóricos, a convertibilidade de uma na outra, tradução recíproca na própria linguagem específica de cada elemento constitutivo”. A filosofia da práxis de Gramsci, portanto, é também uma filosofia da linguagem.
TRADUÇÃO Alvaro Bianchi
Giancarlo Schirrù é professor de Linguística na Univesitá di Cassino e del Lazio Meridionale, na Itália