Antonio Candido, rigor e militância

Antonio Candido, rigor e militância
O crítico literário e professor Antonio Candido (Foto Letícia Moreira)

 

Autor da Bibliografia de Antonio Candido (2002) e organizador de Textos de intervenção (2002), publicados pela Editora 34, Vinicius Dantas mostra como os trabalhos de juventude do ensaísta já apontavam para temas recorrentes em sua obra madura e para sua presença ativa na vida pública brasileira.

CULT – Qual o sentido de se fazer hoje uma bibliografia como essa?

Vinicius Dantas – Quem faz no Brasil esse tipo de trabalho pode parecer antiquado, ou diletante, em face do crescimento dos meios de busca na Internet e da informatização das bibliotecas. Desconfio porém que a chegada desses novos meios de pesquisa não sanou as tradicionais deficiências de nossos arquivos nem venceu o sumidouro de informação básica que dia a dia alimentamos no Brasil. As coleções de periódicos e jornais dos acervos públicos são desalentadoramente falhas e, mesmo no caso de períodos recentes, muita coisa já está perdida. Não existe um trabalho sistemático de catalogação de periódicos e recuperação de publicações literárias. Otto Maria Carpeaux que, seis ou sete anos após ter desembarcado no Brasil, reuniu dados para fazer a Pequena bibliografia da literatura brasileira, que até hoje é um marco indiscutível (outro sinal de atraso), costumava ironizar as dificuldades com que o estrangeiro se deparava para se informar sobre literatura brasileira, dizendo que aqui somos sempre estrangeiros. Portanto, a bibliografia é ainda um instrumento de trabalho, um suscitador de relações e um corta-caminho para se entrar em certos campos de conhecimento, mesmo que a recuperação da informação aí indicada exija outro e igual trabalho de formiga. Meu trabalho revelou a disseminação de uma atividade que não se restringiu à produção universitária, à publicação de papers em colóquios ou de relatórios. Antonio Candido preservou um estilo de atuação tradicional, mas nada convencional, que desafia a pesquisa por colaborar em suplementos de vários calibres, apoiar revistas novas, publicar em cidades remotas, solidarizar-se com agrupamentos políticos, prefaciar autores novos etc. Sua atuação não só ocorreu numa área extensa geograficamente como sobretudo denota uma esquisita falta de preconceitos, abrigando-se às vezes em folhetos, fascículos vendidos em bancas ou jornais do interior. A bibliografia permitiu flagrá-lo em qualquer circunstância sempre a dizer algo interessante que, por sua vez, tem relação com o lugar em que escreve, sempre a comparar a sua posição com os esforços anteriores, para criar uma espécie de comunidade imaginada de modo muito parecido ao que levara no século 18, segundo a Formação da literatura brasileira, mineiros e baianos a entrelaçarem suas afinidades.

Como surgiu o projeto de Textos de intervenção, quais foram seus critérios na escolha dos textos e da divisão do livro ? Ficou muita coisa de fora?

Textos de intervenção foi uma imposição editorial porque na praça desta colônia ninguém banca, nem as editoras universitárias, a publicação de uma bibliografia sobre um autor básico. Então, depois que o próprio Antonio Candido me sugeriu que eu fizesse uma seleção de sua crítica de rodapé, bolei esta antologia para não reter mais a publicação da Bibliografia. É claro que a concebi segundo a minha maneira de compreender a trajetória de Antonio Candido, colocando em primeiro plano o lado livre e inventivo de seu ensaísmo. Como privilegiei textos de combate lato sensu, foi relativamente fácil descobrir uma ordem entre eles, acentuando a coerência e a firmeza lúcida do autor. Inclusive deixei visíveis encadeamentos que sugerem de que modo o funcionamento de certas recorrências da literatura brasileira – as tendências formalistas em poesia, a crônica ou o regionalismo – ajudaram a formular a idéia de sistema literário.

O senhor acredita que a publicação de Textos de intervenção altera o entendimento do conjunto da obra de Antonio Candido?

Textos de intervenção compõe por inteiro sua figura intelectual dentro do debate brasileiro de seu tempo, com a vantagem de permitir que surja do confronto entre o crítico literário e o militante socialista uma configuração teórica mais palpável das idéias-guias que marcaram sua atuação. A novidade de integrar a crítica literária – a linha mestra – a aspectos menos conhecidos, mesmo laterais de sua obra (o militante socialista, o crítico de rodapé, o educador, entre outros), aí se justifica não só para frisar sua versatilidade e mobilidade intelectual, mas sobretudo para valorizar as muitas facetas de um mesmo escritor. Outro ponto original da minha organização é o peso que têm os anos 40 na configuração da personagem que conhecemos a partir de ensaios e livros de data posterior. Textos de intervenção sublinha a constelação desse decênio desde o momento do Estado Novo, passando pelas “Notas de Crítica Literária” (a coluna que ele assinou na Folha da Manhã e depois no Diário de S. Paulo), que eram um capítulo pouco conhecido da sua produção, até artigos de polêmica do tempo da guerra. Não é costumeiro que nos reportemos aos anos 1940 para se entender a obra de um autor que publicou seus grandes livros a partir da década seguinte; contudo, um pouco na contracorrente, estou mostrando como a confluência de vários elementos teve sobre ele um papel mais decisivo do que se cogita, e entre esse elementos posso citar o rigor da explicação sociológica, a crítica de rodapé, o socialismo democrático, a luta contra a ditadura do Estado Novo, o diálogo com a produção contemporânea da literatura brasileira, a militância anti-stalinista e a crítica ao populismo. A justaposição de matéria tão diversa, inclusive de outras épocas, textos ligeiros e circunstanciais lado a lado com textos bem acabados e longamente meditados, intenciona ressaltar tanto a liberdade espiritual do crítico quanto a força de suas soluções literárias, o que devolve à crítica o teor de criação que lhe é próprio e é frequentemente esquecido.

Como o sr. avalia o elogio que Antonio Candido faz, nos Textos de Intervenção, a alguns críticos tidos como “impressionistas” (Álvaro Lins, Plínio Barreto), tendo em vista o fato de ter sido ele o maior responsável pela formação de uma geração de autores universitários que “sepultou” esse tipo de crítica?

Antonio Candido recusou a oposição crítica impressionista/crítica universitária – oposição que promoveu as mudanças da vida literária e intelectual no século 20, e jogaria a crítica na esfera profissional de uma especialidade, distante do leitor e da sua imaginação. Entretanto, lembro que há aspectos do impressionismo que para ele são indissociáveis do ato crítico e impõem limites à despersonalização da crítica : a reação estética, a empatia pelas formas, toda a esfera psicológica em que se desencadeia a intuição, sem a qual nada é possível. Outro antagonismo mais antigo que ele não acirrou foi aquele entre crítica naturalista e impressionismo, porque na sua explicação a mediação social de materiais e técnicas literárias não se opõe à realização momentânea da forma ou do estilo. A obra literária depende tanto dos aspectos psicológicos do fazer bem quanto de processos que condicionam objetivamente a forma, ou seja, de sua matéria pré-formada. Antonio Candido procurou se beneficiar de partidos opostos, criticando-os, atualizando-os, retificando-os e ao mesmo tempo mostrando uma certa adequação histórica deles. Reduzir tudo o que existia antes da crítica universitária a “impressionismo” é uma operação de guerra da campanha de Afrânio Coutinho e de alguns neoformalistas posteriores. Todos sabemos que nas colunas de rodapé literário dos jornais aconteciam mais coisas do que um rótulo desses consegue apanhar. Foram críticos como Mário de Andrade, Barreto Filho, Sérgio Buarque de Holanda, Álvaro Lins, Sergio Milliet, Lauro Escorel, Otto Maria Carpeaux, Roberto Alvim Correa, Roger Bastide, Afonso Arinos de Melo Franco, Nelson Werneck Sodré, que renovaram a crítica brasileira entre os anos 30 e 40, praticando muitas daquelas técnicas de análise que se difundiriam depois, e fazendo mais, testando as novas teorias a partir da experiência da literatura brasileira. Álvaro Lins por exemplo é outra coisa: é uma espécie de clérigo-cidadão que tem em alta conta o debate moral e que acredita que a literatura vale como um meio de salvação do escritor, o qual imprime à obra uma personalidade autônoma; ou seja, as boas análises de sua crítica brotaram de um amálgama de crítica francesa tradicional e posições católicas avançadas. Justamente essa capacidade de dialogar com a tradição – e não sepultá-la, como você diz – mostra que o ensaísmo de Antonio Candido na literatura brasileira é uma síntese bastante complexa dos seus antecessores.

Com base nos Textos de intervenção, o sr. vê continuidade ou ruptura de Antonio Candido em relação à geração anterior ao grupo Clima

Eu gosto muito daquela passagem de Décio de Almeida Prado, citada na Bibliografia, em que ele diz: “Tendíamos a ser monógrafos em substituição aos polígrafos…” Este é o corte da geração de Clima com a tradição anterior, um salto considerável sobre o hábito então corrente de fazer crítica do jeito mais improvisado – salto tão insuportavelmente técnico que levou o tradicionalista Oswald de Andrade a combatê-lo (chato-boy – expressão criada por Oswald para designar os integrantes de Clima – era o monógrafo que não queria mais ser polígrafo, isto antes de Oswald querer se tornar ele próprio em chato-boy e professor de sua filosofia antropofágica). Contudo, a dose de especialização indispensável para o desempenho da tarefa crítica em Antonio Candido nunca se alçaria em ideologia da especialização, da ciência ou da literariedade. Esta é a diferença básica entre ele e Florestan Fernandes, entre ele e Afrânio Coutinho e os concretistas. Acredito que as seções da antologia que tratam de política e da responsabilidade do intelectual explicam justamente porque ele nunca embarcou nesses Titanics, sabendo avaliar a importância da universidade, da formação rigorosa, da disciplina científica sempre cum grano salis e muito senso do processo histórico em que estas conquistas da modernidade estavam envolvidas. Foucault fala na oposição entre os intelectuais específicos que surgiram no fim da Segunda Guerra, com a politização dos físicos, e o fim dos intelectuais universais, como Sartre, que buscavam legitimidade num sujeito amplo e transformador. Acho que Antonio Candido criou um tipo de intelectual específico do Terceiro Mundo que não deixou que sua linguagem técnica, sua especialidade menos acessível, sobrepujasse a tarefa pública e nacional que ele ainda precisava desempenhar, criando por assim dizer um público ou vários públicos que  “universalizassem” suas idéias. Cabe agora discutirmos por que isto aconteceu mais nele e menos noutros, por que nele isto favoreceu a qualidade de sua crítica e deu nitidez às suas posições. Certamente a modalidade de prosa e suas qualidades complexas de ensaísta também podem ajudar a explicar esta inscrição profunda na vida cultural, o que dispensa uma noção simplista de ruptura.

Com relação à Bibliografia, quais foram os achados? O sr. encontrou muitas referências a textos perdidos de Candido?

Bem, numa bibliografia desse tamanho quase tudo é achado… Desconfio que ficou faltando encontrar alguma coisa da Folha Socialista, do jornalzinho mimeografado Política Operária e do Resistência, no qual ele só publicou uma vez. Não encontrei o resumo do curso que ele deu no Uruguai na Universidad de La Republica em 1960, que acredito ser um texto importante porque pela primeira vez, portanto antes do boom, ele esboçou uma tentativa de compreender a unidade do processo cultural da América Latina. Localizei textos anônimos e com pseudônimo. Ficou faltando encontrar vários artigos de jornal, prefácios e programas de teatro, além de artigos sobre ele como os de Carlos Lacerda, uma entrevista de Décio de Almeida Prado por ocasião do concurso perdido para a cadeira de Literatura Brasileira da USP em 1945, uma crônica de Fernando Sabino e vários artigos da imprensa comunista contra ele. Falta também o material português sobre. É muito difícil saber o que existe de teses universitárias fora do eixo São Paulo-Rio. Espero que tudo isso apareça após a publicação do meu livro.

Com relação aos textos sobre Antonio Candido referidos na Bibliografia: quando começa a se formar uma massa crítica sobre ele, um conjunto de textos que assinalam sua centralidade na crítica da segunda metade do século 20?

Esta parte da bibliografia também pediria uma meditação em separado para se conhecer os obscuros caminhos da consagração crítica no Brasil. Toda essa massa bibliográfica demonstra a repercussão profunda que os escritos de Antonio Candido obtiveram: eles tocaram um círculo vasto de admiradores que não se limitaram obviamente a neles encontrar uma retórica, uma poética normativa ou uma teoria pronta. É um autor que formou gerações de leitores que não só admiram sua obra mas se guiam por ela, porque ela lhes transmitiu uma ideia da literatura como valor, uma ligação vital entre texto e mundo que é inusual. Por outro lado, os artigos universitários sobre ele em muitos casos preferem aferi-lo pela moda teórica prestigiosa do momento, no que inutilizam toda a inovação que sua obra tenha e a sua diferença em relação aos autores com que dialoga. O fato de ele ter se impregnado de Eliot e new criticism não o faz um eliotiano ou um new critic. Gostaria muito de escrever algo sobre esse movimento desigual de consagração de um autor importante no Brasil e buscar compreender o Antonio Candido que seus admiradores inventaram para si. Os textos mais manuseáveis sobre crítica, como os de Afrânio Coutinho e Wilson Martins, quase não registram a presença dele, que passa como um autor importante… entre outros. Um livro como Formação da literatura brasileira, que está na 10ª edição, certamente já se confundiu com a própria matéria que ele estuda etc. O leitor com um guia desses nas mãos parece ter encontrado a chave para ler o romantismo brasileiro sem se perguntar muito sobre a própria construção da obra, sobre seus conceitos centrais, sobre a teoria aí existente. Tenho por isso a impressão que muito pouco foi dito e analisado sobre a obra de Antonio Candido que, como toda obra importante da literatura brasileira, continua sempre complacentemente virgem de especulação. A mediocridade do debate sobre ele é desoladora: sequestra ou não sequestra o Barroco, repete ou não repete o ponto de vista romântico, é uma visão marcada pelo nacionalismo ou vai além dele, é uma visão sociológica da literatura (logo reducionista) ou é uma visão estética, é um autor antipatriótico a ponto de ressuscitar para o período colonial a noção de literatura luso-brasileira ou é patriótico demais porque valoriza autores menores como Casimiro. Acho que só recentemente a crítica parou para se deter na particularidade de sua explicação e nesse aspecto os textos de Roberto Schwarz são iluminadores. Aí de fato se avança na exposição do processo histórico-social que dá concretude à noção de forma de Antonio Candido, esclarecendo o contexto de alguns de seus textos fundamentais. Só agora, talvez por méritos da calamidade crescente da globalização, é que também se passa a levar em conta a densidade própria que têm uma história literária e uma crítica formuladas a partir de uma experiência nacional da periferia, porém sem concessão à apologética nacionalista (o que de passagem atesta o combate discreto que ele travou na época do terceiromundismo). Nesse momento em que as periferias terão de se encontrar, a obra de Antonio Candido certamente se abrirá a leituras que a valorizem e a transformem.


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