‘A eleição de Trump fez com que mais pessoas se sentissem como eu me sinto a vida toda’
A escritora estadunidense Angie Thomas (Foto: Anissa Hidouk)
Há pelo menos vinte semanas liderando a lista dos livros mais vendidos do The New York Times, O ódio que você semeia, de Angie Thomas, 29, acaba de ser lançado no Brasil. A permanência no topo da lista literária mais disputada do mundo não chamaria tanta atenção, não fossem o racismo e a violência policial contra negros nos Estados Unidos os temas centrais da obra. Basta observar os pares da autora, escritores famosos entre o público jovem, e perceber que não se trata de um livro tipicamente adolescente, desses que as livrarias se acostumaram a vender (e muito) nos últimos anos.
O ódio que você semeia é sobre a tomada de consciência racial e política da protagonista, Starr, de 16 anos, moradora de um bairro pobre e violento dos Estados Unidos. Com muitas referências à cultura pop (Angie é fã de Harry Potter e se autoproclama diplomada em hip hop), a autora cria uma atmosfera de normalidade em torno de algo sombrio – o assassinato do amigo de infância, cometido por um policial. Uma trama que poderia ser considerada banal por qualquer um que acompanhe noticiários, mas que se tornou o ponto de convergência de muitas histórias reais que ainda não haviam inspirado títulos infantojuvenis.
Sobre a comoção que o livro tem causado, a autora acredita que a maneira desastrosa como Donald Trump venceu as eleições nos Estados Unidos esteja contribuindo para que as pessoas tomem ciência de um pensamento ao qual ela, jovem e negra, está exposta desde que nasceu: “As pessoas estão se voltando contra tudo o que ele representa, e isso me dá mais esperança do que eu tinha antes”.
Revista CULT – Como foi a sua experiência de crescer em Jackson, no Mississíppi? Foi uma trajetória parecida com a da Starr, protagonista do seu livro?
Angie Thomas – Minha experiência de crescer no Mississíppi foi bem parecida com a dela. O bairro onde passei minha infância foi a inspiração por trás do bairro de Starr – era conhecido por todas as razões erradas. Mas, assim como Starr, eu fui abençoada por ter uma família amorosa que fez o melhor para me proteger dos perigos do bairro. Como Starr, eu também precisei ser duas pessoas diferentes em dois mundos muito diferentes – meu bairro e minha faculdade, majoritariamente branca e de classe alta.
Como foram as reações iniciais das editoras quando você apresentou seu livro pela primeira vez? Você imaginava que faria tanto sucesso?
Tantos editores amaram o livro, e isso me surpreendeu! Treze editoras americanas, para ser exata. Eu nunca poderia ter imaginado que o livro teria tanto sucesso, especialmente por tratar de um tópico tão controverso.
Você vê algum progresso em termos de consciência quanto ao racismo entre os jovens?
Os jovens estão aprendendo com os erros das gerações anteriores. Eu vejo mais jovens se manifestando contra o racismo e se tornando mais conscientes disso. Eles me dão esperança.
Como você vê o papel das mídias sociais no engajamento de jovens em ações contra violência racial e outras violências?
Existem lados positivos e negativos quanto à mídia social e justiça social. Do lado positivo, está dando mais voz aos jovens e permitindo que a gente saiba mais – eu não sei quantas pessoas saberiam o nome Trayvon Martin [jovem negro, cujo assassinato ganhou intensa repercussão nas redes sociais em 2012] se não fosse pela mídia social. Mas, por outro lado, algumas pessoas parecem achar que um retweet de uma fotografia ou o link para uma petição é o suficiente. Não é. Um trabalho consistente precisa ser feito além da mídia social.
O que mudou nos Estados Unidos desde que o Black Lives Matter começou a atuar? A criação dessa organização indica que os jovens estão mais dispostos a pensar sobre política, sobre racismo?
O Black Lives Matter deu voz a uma questão que tem prevalecido na comunidade afro-americana há décadas, e finalmente as pessoas, especialmente os jovens, estão começando a prestar atenção e a ouvir. Ainda temos um longo caminho a percorrer.
Sei que você adora hip hop e que isso influencia o seu trabalho, incluindo o título do seu livro. A música sempre foi uma maneira poderosa de se rebelar, pensar e se divertir. O ódio que você semeia pode ocupar na literatura o espaço que o hip hop ocupa na música?
O hip hop deu a tantos jovens negros um espelho, enquanto os livros não fizeram isso. Chuck D, do Public Enemy, uma vez disse que o hip hop era a CNN da América urbana. O hip hop conta para todos sobre as coisas com as quais lidamos todos os dias. Se O ódio que você semeia e todos os meus próximos livros puderem fazer o mesmo, eu ficarei muito honrada.
Poderia descrever o impacto que a eleição do Trump teve sobre você, pessoalmente?
Como uma jovem negra americana, a eleição de Trump simplesmente fez com que mais pessoas se sentissem como eu me sinto a vida toda. Ele representa um lado dos Estados Unidos ao qual eu fui exposta desde que nasci. Mas agora, mais do que nunca, as pessoas estão falando, ouvindo e se envolvendo. Elas estão se voltando contra tudo o que ele representa, e isso me dá mais esperança do que eu tinha antes.
Como a história dos negros americanos é tratada nas escolas nos Estados Unidos? As crianças aprendem sobre os movimentos de direitos civis e outros momentos importantes da história?
Eu aprendi sobre a nossa história nas escolas onde estudei e em casa também, embora nem todas as escolas cubram o tema como deveriam. Eu tive sorte de ter uma mãe que sempre se certificou de que eu soubesse a minha história, assim como professores que sempre instilaram a importância disso.
Starr é uma personagem dividida até que finalmente encontra uma unidade em si. É parte do processo de crescimento, mas também poderia ser uma metáfora para o mundo hoje. Como podemos construir alguma igualdade de direitos em nosso mundo fragmentado?
Para termos alguma igualdade de direitos, primeiro temos de reconhecer que existe desigualdade. Muito frequentemente, presumimos que, só porque as coisas vão bem conosco, elas estão assim para todos. Não é assim. Precisamos tomar consciência disso e parar de deixar nossas diferenças nos separarem.
Você usa no livro várias referências da cultura pop que refletem o seu gosto, certo? Você é fã de Harry Potter? O que mais você leu em seus anos de formação?
Sim, eu sou muito fã de Harry Potter. Sou eternamente grata a J. K. Rowling por ter me dado um mundo para fugir quando o meu próprio mundo era brutal. Mais jovem, quando estava crescendo, eu também amava ler Roll of thunder, hear my cry, de Mildred D. Taylor, a série The boxcar children e Goosebumps.
Acredito que você esteja recebendo bastante feedback do seu público. Como as reações deles estão afetando você?
Tenho recebido uma resposta incrível dos leitores; de garotas negras que me agradecem por ter criado uma personagem tão parecida com elas, de ex-integrantes de grupos de supremacia branca, que me agradecem por ter aberto os olhos deles. Tem sido uma experiência engrandecedora e tem me dado esperança. Os livros permitem que a gente se coloque no lugar de outra pessoa e se torne outra pessoa, criando empatia. E empatia, acabo de aprender, é a ferramenta mais poderosa que temos.
ELISA ROSA é jornalista