Algo nos reencontra no quarto escuro: a experiência espacial do incômodo freudiano em nova tradução

Algo nos reencontra no quarto escuro: a experiência espacial do incômodo freudiano em nova tradução
Incômodo seria aquilo que não pertence ao lar, não está domesticado e não nos oferece acolhimento (Foto: Reprodução)

Da casa que, de um momento a outro, é ocupada por estranhos que não vemos no conto “Casa tomada”, de Julio Cortázar, à mansão que prende em um de seus cômodos os membros da elite que haviam sido convidados para um jantar no filme El ángel exterminador, de Luis Buñuel; do quarto em que o fantasma de Cathy aparece a Lockwood em Wuthering Heights, romance de Emily Brontë, ao quarto 237 (e ao Overlook Hotel no seu todo) em The Shining, filme de terror dirigido por Stanley Kubrick; da área a oeste da cidade fictícia de Arkham onde cai o meteorito em “The colour out of space”, de H. P. Lovecraft, à mata em A Febre, filme brasileiro com direção de Maya Werneck Da-Rin: narrativas angustiantes e surreais abundam nas artes em geral e, não raramente, elas aparecem, como nesses exemplos, relacionadas a experiências com espaços específicos.

Com Freud e seu texto intitulado “O incômodo”, em nova tradução de Paulo Sérgio de Souza Jr. e presente no livro de mesmo nome que acaba de sair pela editora Blucher, uma via fértil para a leitura de obras como essas se apresenta. Trata-se de um dos muitos textos canônicos de Freud, que se coloca na intersecção entre psicanálise e teoria estética, dialogando constantemente tanto com vivências empíricas quanto com textos literários. E ele vem, nessa edição, acompanhado de “Psicologia do incômodo”, do psiquiatra alemão Ernst Anton Jentsch, e “Das zonas do incômodo”, de Peter-André Alt, professor de Literatura Alemã Moderna na Universidade Livre de Berlim.

“Psicologia do incômodo” é um tratado publicado, originalmente, em 1906. Única referência de Freud no que diz respeito ao tratamento do incômodo na psicologia, esse texto focaliza o conceito a partir de sua relação com um tipo de falta de orientação que surgiria quando nos deparamos com algo novo, que desafia nossa compreensão do mundo e nos faz vacilar momentaneamente. É assim que o incômodo acaba aparecendo, para o autor, como algo especialmente presente para as crianças: como sua experiência e sua compreensão dos fenômenos que as rodeiam são pequenas, situações apenas um pouco mais complexas podem figurar como estranhas e inexplicáveis.

Freud, em seu texto de 1919, toma uma rota bastante diferente, ainda que sem deixar de dialogar com Jentsch. Pensar ter visto um fantasma; dar-se com um estranho e perceber, bruscamente, que, na verdade, se está encarando um espelho; perder-se e retornar, contra sua vontade, diversas vezes ao mesmo lugar são algumas das experiências evocadas pelo autor. A partir delas, ele aponta para o quanto o sentimento incômodo não parece vir somente do novo, como pensava Jentsch, mas também e principalmente de elementos bastante familiares àqueles que o experimentam. Isso se explicaria pelo fato de que aquilo com que nos deparamos teria sido escondido em algum momento, individual ou coletivamente, se tornando desagradável ao retornar. E a principal origem desses elementos seria o animismo: ideia de que entidades não humanas seriam dotadas de alma, bastante comum na cosmovisão de diversos povos indígenas, mas fortemente recalcada em nossa sociedade de modo geral.

Mantém-se, contudo, na leitura dos dois autores, uma ideia de falta de acomodação e de desnorteamento relacionada intimamente à experiência do incômodo. Relação percebida por Paulo Sérgio de Souza Jr. e que parece ter orientado sua escolha por esse termo, “incômodo”, para a tradução de Unheimlich, ela nos leva de volta ao primeiro parágrafo deste texto: seria incômodo aquilo que não pertence ao lar, não está domesticado e não nos oferece acolhimento. Ele diz respeito a algo que parece vir de um lugar outro que não o nosso e, de certo modo, nos transportar momentaneamente para lá.

Não nos parecerá distante esse nexo se nos lembrarmos da análise feita por Christian Dunker, em Mal-estar, sofrimento e sintoma (2015, p. 198-217), a respeito da ideia de “mal-estar” em Freud. Ele aponta que ela estaria relacionada a uma impossibilidade ou negação do estar, nos remetendo a uma experiência espacial, ou, mais precisamente, de perda do espaço e de ausência de lugar no mundo que nos acompanharia a todos na vida em sociedade. De modo diverso mas correlacionável, os resquícios do animismo, ressurgindo onde não esperávamos, nos conduzem a um sentimento de deslocamento, como se houvéssemos desacomodado o eixo da realidade e, de certa forma, nos encontrado com um espaço outro.

Em El ángel exterminador, por exemplo, esse encontro é acompanhado de um certo gozo pelo desmoronamento (ao menos na medida em que o espectador se identificar com os empregados, e não com os protagonistas do filme): no centro do decoro burguês, irrompe tudo aquilo que precisou ser recalcado para que aquelas pessoas pudessem cumprir seus papéis sociais. Ao se desfazer a possibilidade de transitar entre os espaços e separar interior de exterior, privado de público, a própria contingência desses papéis fica exposta em tal medida que se poderia dizer que o filme de Buñuel apresenta o mundo burguês enquanto cena ou peça teatral. Ao fazer isso e impedi-los de sair do palco, a experiência de deslocamento que temos comentado surgiria, com a onipotência do pensamento a organizar certos acontecimentos centrais e membros decepados a tomar vida, entre outros exemplos do incômodo que encontramos em Freud.

Trata-se, é claro, de um encontro bastante específico de tendências estéticas. Nem toda experiência incômoda está organizada pelos parâmetros formais do surrealismo, por projetos tão marcadamente políticos como o de Buñuel ou mesmo explicitamente relacionada à espacialidade — nesse sentido, a seleção de exemplos feita no primeiro parágrafo poderia ser ainda mais diversa. Mas o filme nos ajuda a perceber linhas de força que tendem a perpassar experiências incômodas de modo geral. Não deve ser coincidência, por exemplo, que a região focalizada em “The colour out of space” — “out of space”, é interessante notar, pode ser traduzido como “vinda do espaço”, no sentido de extraterrestre, mas também traz uma ideia de algo que “não cabe” — seja habitada por pessoas “rústicas”, nos termos do narrador, e que seja uma área na qual se planeja construir um reservatório. Da mesma forma, não deve ser coincidência que o hotel em The Shining tenha sido construído sobre território indígena, e tampouco que a tensão de A Febre esteja relacionada à mesma tomada violenta do espaço, bem como à imposição a que pessoas indígenas vivam conforme uma ideia muito específica de civilização, de trabalho e de (não) relação com a terra.

Mas voltemos ao livro. Fechando a edição, temos “Das zonas do incômodo”, texto de Peter-André Alt publicado pela primeira vez como capítulo de uma biografia de Freud em 2016 e que aparece, agora, como posfácio. Nele, entre outras coisas, Alt recupera a história do psicanalista Viktor Tausk, que havia trabalhado como médico de combate durante a Primeira Guerra Mundial, ficando profundamente marcado pelos traumas que sofreu nesse período e tendo se suicidado somente alguns dias depois de “O incômodo” ter sido escrito. Pela heterodoxia de seus estudos e pelo fato de, ao que parece, haver colocado Freud no lugar de uma figura paterna, Tausk não somente era malquisto pelo pai da psicanálise, mas também teve seu pedido de ser analisado por ele negado.

Para além do ambiente insólito produzido pela guerra, percebemos a impossibilidade de Viktor se posicionar novamente tanto no mundo de modo mais geral quanto no interior da psicanálise enquanto campo teórico — e termos como “posicionar” e “campo teórico” não estão aqui aleatoriamente: existe uma ideia de espaço em jogo. Da mesma forma, o incômodo parece ter se dado também da parte de Freud, que não conseguiu aceitar aquele que talvez fosse encarado como um duplo distorcido de si, não vislumbrando um lugar para ele em sua vida, em sua teoria e em sua clínica.

São diversas as formas do incômodo, mas todas parecem indicar que existe uma porosidade em nosso mundo que, por mais que se tente extinguir, não pode desaparecer. O deslocamento, a falta de norte, o impossível que se nos apresenta no quarto escuro: arte e psicanálise se encontram nesse lugar. Que possamos nos perder nele com Freud — e mesmo tomando caminhos que ele não pôde tomar, se o caso for, mas conhecendo os seus.

Vinícius de Oliveira Prusch é graduando em licenciatura em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisa sobre neoliberalismo e estética por uma perspectiva dialética e tem interesse em literatura brasileira, música popular, cinema e psicanálise.

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