Ah, essa deliciosa entreperna…

Ah, essa deliciosa entreperna…

Alguns regimes de discurso sexual nas Mil e uma noites.

 

 As estripulias sexuais anunciam-se nas Mil e uma noites desde a abertura: são os adultérios praticados pelas esposas dos dois reis irmãos, Shahzaman e Shahriyar, descritos com alguma perversidade pelo narrador. Depois se seguirão várias cenas em que práticas e jogos sexuais vêm à tona. Nada que se ombreie, desafortunadamente, com o conteúdo dos então muito disseminados tratados de erotologia, com as coletâneas geralmente cômicas do gênero makshuf, “descoberto”, e com as poesias obscenas que se produziram desde pelo menos o século 8 d.C., quer cantando as delícias do relacionamento erógeno, quer lamentando, numa espécie de “elegia priápica”, a súbita e gélida disfuncionalidade de um órgão sexual murcho. Já sexo nas Noites segue outras convenções, simples penetração básica que não é objeto de maiores problematizações ou questionamentos. Os homens invariavelmente sobem (ou planejam subir) em cima das mulheres, as mulheres seduzem ou se deixam seduzir e ponto final. A obscenidade toda está nas circunstâncias que determinam a ocorrência, ou não, do ato sexual, o que no final das contas muda o foco da ação em si para as suas preliminares, quase nunca eróticas.

Não obstante, sabe-se que o texto das Noites foi alvo de censura tanto de alguns tradutores como de editores árabes. No caso dos tradutores, conquanto pareça anacrônico falar em “censura” stricto sensu (Borges, por exemplo, prefere falar em “decoro”), pode-se lembrar justamente o primeiro tradutor do livro para o Ocidente, o francês Jean Galland, cujo notável pudor transformou seu trabalho em praticamente outro livro, ou ainda um dos tradutores ingleses, Edward Lane, este sim um abnegado apóstolo do moralismo. Curiosamente, a primeira censura realizada pelos editores muçulmanos não se pautou por critérios moralistas, mas sim gramaticais. Assim, o mais antigo editor do livro em terras árabes (pois antes houve uma edição indiana e outra européia), o egípcio ‘Abdurrahman Assifati Axxarqawi, declarou num pós-escrito à sua edição (1835) ter “polido as frases e corrigido as lições com uma revisão que tornou mais eloqüente a elaboração e mais belas as suas descobertas, afastando a precariedade dos erros ridículos e evitando conspurcar os densos significados que boiavam no mar de sua escuridão”. Todo esse floreio em árabe rimado quer dizer que ele corrigiu a gramática do texto, cuja redação primitiva se utilizava fartamente da linguagem coloquial do Levante em seus múltiplos níveis. Depois dele, outro editor egípcio, Muhammad Qutta Al‘adwi, também modificou o livro, igualmente norteado por critérios gramaticais.

A refinada arte da censura moralista, ao que parece, era desconhecida dos muçulmanos. Foi necessário esperar o início do século 20 para que árabes cristãos – o padre católico A. Salihani e o escritor Jorge Zaydan – se incumbissem de ensinar-lhes como levar a cabo tão nobre missão. O primeiro publicou em Beirute uma edição das Noites – que até hoje circula – com zelos que deixariam em êxtase seus mais exigentes pares ocidentais: ele idiotizou e infantilizou, no sentido não muito edificante do termo, o livro. Sabe-se que logo na primeira cena de alcova do livro, quando retorna ao palácio, o rei mais jovem, Shahzaman, encontra a mulher dormindo num braço que nem um pedaço do seu pode ser e acaba matando a ambos depois de algumas reflexões desenganadas. Assustado, o padre Salihani, após levar a mão à boca e se benzer, corrigiu assim: “encontrou a mulher sentada ouvindo um tocador de alaúde”. Como predecessor, Salihani contava com um ilustre padre desconhecido que, funcionário da Biblioteca do Vaticano, havia rasurado e raspado todas as obscenidades do segundo mais antigo manuscrito das Noites. Contudo – conforme registrou não sem maldade o estudioso Muhsin Mahdi –, apesar dos esforços do padre, as palavras “continuam legíveis com algum esforço”.

Já o polígrafo Jorge Zaydan, cristão libanês que viveu no Egito, deu à estampa uma edição das Noites em que o critério moralista caminha em paralelo, hélas!, ao “realista”, o último como fato que justifica o primeiro. Destarte, Zaydan pontifica no preâmbulo: “Sabe-se que o grande valor desta obra reside em sua pintura dos antigos costumes do Oriente. Porém, o livro continha coisas que fariam mesmo um letrado envergonhar-se de tê-lo em sua estante; o que dizer então de uma mocinha virgem?”. Para controlar eventuais abusos de e contra mocinhas gritalhonas e afogueadas, ele desfigurou o livro com os brios de um autêntico centurião de hímens indefesos. Em seu encalço – embora seja impreciso responsabilizar esse tosco pioneirismo por isso – vieram outras edições expurgadas, adulteradas, moralizadas etc. Era a inauguração de uma prática que culminou com fatos desabonadores, como um mandato de apreensão do livro, no Egito, na década de 1970 (logo revogado pela contra-ofensiva de grupos liberais e de esquerda). Isso para não falar de um pequeno primor que tenho em mãos: uma cópia fac-similar do primeiro volume da segunda edição de Calcutá, de 1839. Nas primeiras páginas existem quatro lugares em que visivelmente se apagou, com “branquinho”, um tabuísmo qualquer, ainda facilmente perceptível pelo contexto. Mais para adiante, no entanto, os palavrões abundam sem nenhuma restrição. Explicação que me foi dada por um assistente editorial: “Esses moralistas religiosos são preguiçosos. Dão uma espiada nas primeiras páginas, vêem que está censurado, ficam contentes e nem olham o resto”.

Semelhantes atitudes deixariam perplexos os pais fundadores da cultura muçulmana. Aljáhiz, luminar do século 9 e autor de um dos mais antigos textos obscenos que chegaram aos dias de hoje, observava que “alguns desses que afetam grande austeridade e devoção contraem-se e enojam-se ao se mencionar diante deles as palavras buceta, pau e foda. Em sua grande maioria, são homens que não possuem ciência, generosidade, nobreza ou brio, a não ser na medida desse fingimento. (…) Essas palavras só foram criadas para ser usadas pelos falantes da língua. (…) Acertou profundamente quem disse: para cada nível, um modo de dizer”. Na mesma linha andou seu contemporâneo Ibn Qutayba, que num livro de crônicas de diverso gênero e sabor alertava o seguinte: “Se chegares, caro leitor, a alguma história que mencione explicitamente uma vergonha qualquer ou genitália, ou que descreva algum ato libidinoso, que a tua piedade, ou afetação de piedade, não te leve a contrair a face e virar o rosto, pois os nomes dos órgãos não praticam nenhum crime; o crime está, isso sim, em caluniar, praticar falso testemunho e comer carne humana às escondidas (…). Tenta compreender isso e distinguir entre os dois gêneros”.

Tais palavras são aplicáveis à primeira parte da história do carregador e as três moças de Bagdá, a mais obscena do núcleo antigo do livro. Numa de suas cenas mais famosas, essas três moças, após um festim regado a muito vinho, sucessivamente se despem e se atiram na piscina, forçando, ao sair, o carregador a dizer o nome de seus órgãos sexuais; depois, ele também mergulha e as obriga a dizer o nome de seu órgão sexual. A cena toda é cômica pela repetição exaustiva, em linguagem coloquial, de tabuísmos e de seus sinônimos, aos quais se impõem definições inocentes na aparência, mas que afinal constituem uma charada obscena: os órgãos sexuais das moças se chamam, na devida ordem, “pensão de Abu Masrur”, “manjericão das pontes” e “sésamo descascado”; já o do rapaz é “burrico espertalhão”, com a seguinte justificativa: “entra e sai da pensão de Abu Masrur, devora o manjericão das pontes e debulha o sésamo descascado”.

A cena pode ser tomada como exemplo do que a convenção árabe chama de discurso do mujún, espécie de anedota obscena e fortuita na aparência, cujo objetivo é, obviamente, divertir. Diversos autores árabes antigos praticaram o gênero, justificando-o com argumentos ético-religiosos, como o de que o próprio profeta teria aconselhado a diversão para que os espíritos não se tornassem demasiado aborrecidos. Entretanto, a preceptiva igualmente apresentava regras para que a mudança de gênero não se desse de modo abrupto, pois, como pondera o mesmo Aljáhiz, “se o discurso estiver no nível do riso e da diversão, dentro dos limites do cômico, e o ridículo for trocado pelo sério, a situação se transtorna, e tal discurso, cujo objetivo inicial fora alegrar os espíritos, passa a aborrecê-los e incomodá-los”. Não é o que sucede na história do carregador e das três moças, que do cômico passa ao sério, e tal inobservância pode ser indicativa da existência de outras codificações – não escritas ou perdidas – que regiam a composição das Noites e de obras congêneres.

Na realidade, a explicação encontra-se na própria tendência das letras árabes de remanejar continuamente a sua divisão de gêneros, num processo que evidencia a constante busca de adequação de princípios. Principal paradigma desse pendor, as Noites contêm textos do gênero mujún, mas não apenas. Com base em seu núcleo antigo, pode-se imaginar que, ali, as cenas de alcova obedecem, esquematicamente, a três predeterminações: ou pertencem ao antes referido mujún, puro e simples, ou servem como alegoria da ruína que se avizinha, ou derivam, com maior ou menor intensidade, da produção misógina à qual a unificação denominada Idade Média, em sua quase totalidade, não foi estranha.

O mujún em estado puro situava a mimese na esfera do meramente sensível; sua motivação, em última instância, era a deleitação dos sentidos, conforme as preceptivas que o definem. Por sua vez, a utilização do obsceno como alegoria percorria outros trajetos, transitando com maior requinte pela esfera do inteligível. É o que ocorre, ao menos caso se levem em consideração as análises de Muhsin Mahdi, com as supracitadas cenas de alcova do prólogo-moldura, em que a traição perpetrada pelas rainhas em conjunto com os servidores do palácio funciona como prenúncio de ruína da civilização sassânida, em cuja temporalidade o autor árabe decidiu situar a ação. Prevista nos tratados políticos, essa alegoria do devir-ruína opera em chave, por assim dizer, dupla, como paradigma, respectivamente, de desequilíbrios no espaço doméstico, de um lado, e no próprio reino, de outro. Para tanto, é inevitável que se efetue nos espaços da realeza, como se dá também na história do rei das Ilhas Negras. Resumidamente, pode-se generalizar observando que o risco implícito do rei traído é ter o seu reino tomado ou destruído.

Quanto à tendência misógina, ela se observa nas obscenidades que provocam a ruína imediata de personagens masculinos propostos como imanentes, sem outra alegoria que não a do universal – o universal masculino enganado pelo universal feminino. São histórias nas quais prepondera o elemento da sedução em geral exercida com intenções velhacas e desonestas. É o caso, dentre outros, das histórias de alguns dos irmãos do barbeiro de Bagdá, conduzidos à ruína pelas tramóias das mulheres que os seduzem, mulheres essas que agem a serviço de terceiros – é o caso do quinto irmão, enganado por uma prostituta e uma alcoviteira –, ou por perversidade – é o caso do segundo, tapeado pela filha de um vizir e por ela submetido aos maiores vexames num dos episódios mais obscenos do livro –, ou por conluio com o marido – é o caso do primeiro, apaixonado por uma mulher que, junto com o marido, explora-lhe o trabalho – ou por prazer mesmo – é o caso do sexto, flagrado em cima da esposa de seu seqüestrador e em seguida mutilado.

Devem-se observar, entretanto, duas coisas: a primeira é que esses apontamentos são evidentemente interpretativos e pressupõem que de fato o texto tenha sido produzido ou lido assim em sua contemporaneidade, e isso é impossível de estabelecer; a segunda, que dizem respeito à versão mais antiga do livro, chamada de “ramo sírio” pela crítica filológica, e que só chegou a 282 noites. O número de noites do livro passou a corresponder ao seu título somente no dito “ramo egípcio”, o qual, recorrendo a histórias de fontes distintas e muitas vezes bem antigas, “completou” o número de 1001 noites – a façanha foi de um letrado egípcio do século 18. Conquanto os poucos estudos a respeito sejam pontuais, pode-se comentar, grosso modo, que as histórias obscenas aí incluídas se inclinam, antes do mais, para a tópica da misoginia relativizada por uma que outra nuance alquímica. Exemplaríssimos, nesse sentido, são dois relatos de um açougueiro chamado Wardán sobre duas jovens: a primeira apaixonada por um urso e a segunda, por um macaco. Ambas fazem sexo amiúde com esses animais, a primeira por sem-vergonhice, e a segunda por estar sob o domínio de uma entidade malfazeja que se manifesta na forma de vapores introduzidos em seu órgão sexual pelo escravo que a deflorara. No primeiro caso, o açougueiro mata a mulher e o urso, e no segundo mata o macaco, mas salva e se casa com a jovem, a qual, de modo bem oportuno, além de bonita era filha de rei.

Para concluir, registre-se que a cultura muçulmana, conforme escreve o pesquisador tunisiano Abdelwahab Bouhdiba em A sexualidade no Islã (a ser lançado no Brasil em breve), apresenta uma rica tradição de celebração do prazer e do gozo. Embora esteja longe de ser o representante mais típico dessa tradição, o Livro das mil e uma noites possui inúmeros pontos de contato com ela – isso passando ao largo da evidente homenagem à vida que são as suas histórias. Seria importante reter que a imagem contemporânea do Islã – um conjunto frio, boçal e desprezível de rituais despidos de lógica aos quais se deve obedecer sem discussão, a negação pura e simples do prazer e da alegria de viver, a mortificante negação do gozo, enfim – não encontra respaldo na civilização por ele engendrada, ao menos naquela que pode ser entrevista nas páginas das Noites e de incontáveis outros livros e tratados.

Mamede Mustafa Jarouche
professor de Língua e Literatura Árabe na Universidade de São Paulo – USP

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