Mulherzinhas: do romance adorado ao filme que o supera
Emma Watson (Meg), Florence Pugh (Amy), Saoirse Ronan (Jo) e Eliza Scanlen (Beth) em 'Little women' (Foto: Divulgação)
Existe uma máxima que diz: escreva sobre o que você conhece. O conselho parte da premissa de que escrevemos melhor sobre o que nos é familiar. Se há quem discorde, no caso da escritora Louisa May Alcott foi esse o caminho que a consagrou: a publicação de Little women (1868), romance de inspiração autobiográfica.
Publicado no Brasil como Mulherzinhas, o livro conta a história da família March, principalmente a jornada de quatro jovens irmãs, em meio a Guerra Civil dos Estados Unidos: Josephine (Jo), Meg, Beth e Amy. Embora sejam muito unidas, as personagens também são bem diferentes entre si. Inspiradas em Alcott e em suas três irmãs, essa é apenas uma das muitas coincidências entre a obra e a vida da autora.
Alcott, como Jo, buscou autonomia financeira através da publicação de seus escritos, ainda que escrever por dinheiro não fosse algo bem visto na época. Também como sua protagonista, a autora se dividia entre a ânsia de contestar e o desejo de pertencer.
O sucesso editorial de Little women foi instantâneo, o que deu a ela a possibilidade de sustentar a família. Por outro lado, a crítica literária levou algum tempo até se interessar pelo romance. Primeiro, o livro foi considerado uma obra menor, destinado a jovens mulheres interessadas nas “pequenezas” da vida doméstica.
Essas críticas também marcaram a recepção imediata da obra de Jane Austen, anterior a Alcott. Razão e sensibilidade (1811) e Orgulho e preconceito (1813), dois de seus romances mais importantes, poderiam ser pensados do mesmo modo: são histórias sobre a vida familiar das personagens e das relações sociais e afetivas que estabelecem.
Como viria a acontecer com Alcott, os livros de Austen, a princípio, também foram negligenciados pela crítica. A ironia sofisticada, o senso de humor afiado e a complexidade com que representou as tensões socioeconômicas da aristocracia rural da Inglaterra no início do século 19, tudo isso passou batido pelos leitores mais desatentos, que classificaram seus romances como sentimentais. Ainda hoje, as adaptações para o cinema costumam valorizar mais esse aspecto do que os demais.
Mas algumas características tão admiradas em Jo, de Little women, já faziam parte da descrição de Elizabeth Benett, protagonista de Orgulho e preconceito. Se há pontos de aproximação entre as autoras, também há diferenças importantes: quanto ao valor propriamente literário dos textos, a comparação sequer parece justa — Jane Austen faz parte do time de gênios literários, é uma escritora difícil de alcançar.
Ainda assim, Alcott merece reconhecimento. Ao longo de diferentes gerações, Little women tem sido lido e elogiado não apenas por jovens mulheres em formação, mas também por leitores exigentes.
Na introdução da nova edição da Penguin, publicada no Brasil com tradução de Julia Romeu, a crítica literária Elaine Showlater cita um comentário de Simone de Beauvoir, feito quase cem anos após a publicação do romance de Alcott, na autobiografia Memórias de uma moça bem-comportada (1958):
“Existia um livro que eu acreditava ter me feito vislumbrar quem seria no futuro: Mulherzinhas […]. Identifiquei-me apaixonadamente com Jo, a intelectual”. Beauvoir completa, com entusiasmo, que ambas tinham “o mesmo horror pela costura e pelos trabalhos domésticos, e o mesmo amor pelos livros. Ela escrevia; para imitá-la completamente, escrevi dois ou três contos”.
No prefácio dessa mesma edição, a cantora e escritora Patti Smith escreve algo parecido:
“Muitos livros maravilhosos me fascinaram, mas, com Mulherzinhas, algo extraordinário aconteceu. Eu me reconheci, como num espelho, naquela menina comprida e teimosa que disputava corridas, rasgava as saias subindo nas árvores, falava gírias e denunciava as afetações sociais. […] Uma menina que escrevia. Como incontáveis meninas antes de mim, vi como modelo uma que não era tal qual as outras, que possuía alma revolucionária, mas também noção de responsabilidade. Sua dedicação à arte me deu meu primeiro vislumbre do processo do escritor e fui tomada pelo desejo de abraçar essa vocação”.
No romance A amiga genial (2011-2014), de Elena Ferrante, que originou um outro fenômeno literário chamado de “febre Ferrante”, também encontramos referências diretas a Mulherzinhas. As duas protagonistas, Elena Greco e Rafaella Cerullo (Lila), têm algo de Jo, cada qual à sua maneira. Na infância, as amigas leem juntas o livro de Alcott, que tratam como tesouro, e que inaugura em ambas o caminho da escrita. Ferrante comenta que, entre todos os personagens que a marcaram, a pioneira foi Jo: “Esse é o livro que está na origem do meu amor pela escrita”, diz em uma entrevista.
Desde a publicação de Mulherzinhas, o mundo passou por transformações importantes. Ainda assim, parte da crítica mais conservadora repete com Ferrante o mesmo julgamento que Jane Austen e Louisa May Alcott receberam: a de que escrevem histórias voltadas para leitoras mulheres e que pertencem a uma tradição de narrativas populares mais do que à tradição da “alta literatura”.
Apesar disso, para os leitores de hoje, é mais provável que a obra de Ferrante pareça mais relevante do que Mulherzinhas: por vezes, o romance de Alcott soa bastante moralista e, em alguns aspectos, talvez seja até mesmo datado. Mas é importante lembrar que quando a autora criou Jo, as mulheres sequer tinham direito a voto nos Estados Unidos — o que só aconteceria mais de 40 anos depois.
Como Simone de Beauvoir, Patti Smith e Elena Ferrante, a atriz e cineasta Greta Gerwig também atribui ao romance de Alcott a origem de seu caminho na arte. Sua nova versão de Little women (no Brasil, Adoráveis mulheres) estreou recentemente e tem sido muito bem recebida pela crítica.
Nenhuma das adaptações anteriores parece tão atenta às contradições da obra como a de Gerwig. O filme também é uma declaração de amor a ela. A cineasta pegou o que há de melhor no livro e o atualizou, sem remendos anacrônicas. Ao contrário: o que o filme oferece é o frescor de uma nova interpretação do romance. É a leitura atenta de uma cineasta que, apesar do pouco tempo de caminhada, tem um trabalho seguro e autoral.
Para falar um pouco dessa interpretação, precisaria comentar aqui algumas das cenas mais importantes do filme. Para quem ainda não assistiu, isso poderia ser um problema (ainda que a ideia de spoiler de um livro publicado em 1868 seja, no mínimo, pitoresca). Então digamos apenas que a relação de Jo com a escrita é trazida para o primeiro plano e que Gerwig propõe um final que é, ao mesmo tempo, inédito e fiel ao romance. Pode parecer um paradoxo, mas o feito está lá.
Como Jo, Alcott escrevia por vocação, por gosto, por amor à imaginação. Mas não escrevia livremente. Como tinha o objetivo de publicar as suas histórias, era preciso submetê-las aos interesses editoriais e às expectativas da época. Para isso, acabou fazendo concessões importantes. Em algumas cenas do filme, Gerwig valoriza esse impasse, como ocorre numa das passagens mais emblemáticas do romance, o capítulo “Embaixo do guarda-chuva”. O personagem de Friedrich Bhaer (interpretado por Louis Garrel) também recebe um novo tratamento. Tais escolhas oferecem uma das sobreposições mais interessantes da história das adaptações de Mulherzinhas.
Quanto ao elenco, Gerwig reuniu nomes de talento incontestável, como Meryl Streep e Laura Dern. Entre os mais jovens, estão dois dos melhores atores dessa geração: Saoirse Ronan e Timothée Chalamet. O último, em especial, tem uma presença corporal impressionante, como raramente vemos no cinema contemporâneo.
A originalidade com que Gerwig tratou uma obra tão lida, traduzida e adaptada compensa algumas perdas. Por ter construído essa atualização dando destaque a questões que parecem perdurar no tempo, sem pesar a mão, e pela direção competente de um filme repleto de desafios seria justo que Gerwig tivesse sido indicada ao Oscar de Melhor Direção.
Little women recebeu seis indicações, entre elas a de Melhor Filme. Mas, se o longa foi reconhecido como um dos melhores do ano, a sua autora, não. Aqui, vale fazer um parênteses para lembrar que, em quase 100 anos, apenas cinco mulheres foram indicadas ao prêmio de Melhor Direção e apenas uma delas venceu. Infelizmente, as estatísticas espelham disparidades que não se restringem à Academia.
Gerwig merecia a indicação não por reparação histórica. Merecia porque fez um trabalho notável, ainda mais desafiador do que em Lady bird (2018), filme pelo qual foi indicada. É verdade que temos outros diretores talentosos entre os indicados, como Bong Joo Ho, de Parasita — de fato, foi um ano bonito para o cinema —, mas também é verdade que a sua ausência será sentida.
Pouquíssimas vezes podemos dizer que um filme é melhor do que o livro que o inspirou ou que a adaptação oferece novas possibilidades de leitura da obra. Talvez esse seja um exemplo. Se Louisa May Alcott pudesse assistir ao Little women de Greta Gerwig, desconfio que estaria muito grata.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo