Febre Ferrante
Obra de Ferrante se localiza em algum lugar entre o que chamam de 'alta literatura' e literatura popular (Arte Sumaya Fagury)
Para Virginia Woolf, o romance era a mais maleável de todas as formas. Mas, depois de cinco séculos de literatura escrita, parece justo questionar se o gênero literário não teria atingido o limite de sua elasticidade. O que mais poderia fazer o romance para se manter relevante como produção artística e não se transformar em mero produto editorial?
A obra de Elena Ferrante, na contracorrente, parece trazer um novo fôlego para a discussão. Encantando uma parte expressiva do público e também da crítica, Ferrante pode ser considerada como um fenômeno de exceção. Premiada na Itália desde seu primeiro romance, Um amor incômodo (1992), a autora retoma, em sua obra mais célebre, a Série Napolitana (2011-2014), alguns temas e procedimentos de grandes romances, bem como recupera elementos da tragédia e da epopeia, flertando com a Antiguidade Clássica.
De outro lado, a tetralogia mimetiza a estrutura de uma autobiografia, uma das principais tendências do romance contemporâneo, e passa por questões emergentes de nosso tempo, tais como a corrupção sistêmica, a violência, o desencanto. Com um olho na tradição e outro no presente, a autora tem construído uma trajetória atípica no cenário atual: sua obra se localiza em algum lugar entre a literatura popular e o que chamam de “alta literatura”.
No artigo intitulado “A escritora genial”, publicado na revista Quatro cinco um, a Eliane Robert Moraes, professora da USP, argumenta que a qualidade da escrita de Ferrante nos obriga a deixar de lado os indicadores de popularidade para encararmos a complexidade da obra: “Para compreender esses livros é forçoso ultrapassar as evidências da mercadoria e penetrar na opacidade da matéria literária”.
A tetralogia é formada por quatro romances: A amiga genial (2011), História do novo sobrenome (2012), História de quem vai e de quem fica (2013) e História da menina perdida (2014). No Brasil, os livros foram traduzidos por Mauricio Santana Dias e publicados pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros. O último volume foi indicado ao Strega, principal premiação literária da Itália, bem como ao Man Booker International Prize.
Para Ferrante, os volumes, em conjunto, compõem uma única obra que conta a história da amizade entre duas mulheres, Elena Greco e Rafaella Cerullo. Elena, a narradora, rememora a infância, nos anos 1950, chegando até a velhice de ambas, no início dos anos 2000. A história se inicia quando Elena, tem notícia do desaparecimento da amiga, a quem chama de Lila, em circunstâncias misteriosas. Este é o fato que desencadeia a escrita do romance que lemos.
Em entrevista para a Deriva, a classicista Tatiana Faia, doutora em Literatura pela Universidade de Oxford, argumenta: “Se havia ainda uma forma épica que o romance pudesse assumir — afinal contra o que Georg Lukács tinha especulado na Teoria do Romance — então o tema tinha de ser esse e essa autora anônima a escrever fora do mundo anglo-saxônico, longe de cursos de escrita criativa e de grandes casas editoriais, conseguiu demonstrar que o romance ainda tem esse potencial épico”.
Parte do recepção entusiasmada tem sido atribuída ao fato de que Elena Ferrante pode ser pensada, ela mesma, como uma criação literária: o nome é, na verdade, um pseudônimo, e a autora tem publicado há mais de 25 anos sem participar de nenhum lançamento, festival literário ou premiação, o que destoa da era de espetacularização em que vivemos. Para alguns, o mistério teria acalentado as vendas.
Em entrevistas concedidas por e-mail, Ferrante faz duras críticas às convenções midiáticas. Ainda assim, acabou sendo alçada ao posto de celebridade literária: com mais de 5 milhões de livros vendidos em mais de 40 países, a Série Napolitana tem se tornado parte do imaginário popular. Como escreveu Terry Eagleton, a literatura pode ser “tanto uma questão daquilo que as pessoas fazem com a escrita como daquilo que a escrita faz com as pessoas”.
A comoção foi tamanha que recebeu a nomeação de “Febre Ferrante” e inspirou um documentário com o título de Ferrante Fever (2017): dirigido por Giacomo Durzi, o longa recolhe depoimentos entusiasmados de leitores ilustres, como Elizabeth Strout, escritora premiada com o Pulitzer; Ann Goldstein, editora e tradutora dos livros de Ferrante para o inglês; e Roberto Saviano, jornalista e escritor napolitano que ficou conhecido pelo polêmico Gomorra (2008), livro que documenta a atuação das máfias italianas.
A lista de admiradores é extensa e heterogênea, de Michelle Obama a Jonathan Franzen. Entre eles, também está James Wood, professor da Universidade de Harvard e um dos críticos literários mais lidos da atualidade. Em 2013, Wood publicou um artigo elogioso na revista New Yorker que foi definitivo para a recepção de Ferrante no mundo anglo-saxão.
Em 2016, Ferrante foi eleita uma das personalidades mais influentes do mundo pela revista Time e, desde janeiro deste ano, passou a assinar uma coluna semanal no jornal britânico The Guardian. É como se, sob o pseudônimo Elena Ferrante, essa instância mediadora passasse a ter voz fora dos suportes literários convencionais. Se pensarmos em Ferrante também como uma criação literária, podemos que a epopeia dessa autora-protagonista continua a se compor fora dos livros, através das entrevistas que concede por escrito e de suas colunas no Guardian. Poucas vezes uma personagem foi tão longe.
Adaptada para o teatro inglês no primeiro semestre de 2017, a tetralogia também inspirou uma série em co-produção com a HBO, prevista para estrear no Brasil no próximo dia 25 de novembro. Esse é o primeiro lançamento mundial da HBO que não foi filmado em inglês: felizmente, o texto foi mantido em italiano e, diferente do que ocorre nos romances, algumas cenas estão em dialeto napolitano. Na ficha técnica, Ferrante figura ao lado da equipe de roteiristas — de acordo com o diretor Saverio Costanzo, a autora teria trabalhado como consultora, lendo e comentando os roteiros detalhadamente por e-mail.
A princípio, serão oito episódios, todos relativos ao primeiro livro, que conta a história da infância e da adolescência das personagens, mas Costanzo não descarta a possibilidade de adaptar também os demais. Os dois primeiros episódios foram exibidos no Festival de Veneza deste ano e recebidos com entusiasmo. O nome de Costanzo (de A Solidão dos Números Primos, 2010) foi indicado pela própria Ferrante e as atrizes que representam as protagonistas são todas estreantes: Elisa del Genio e Ludovica Nasti interpretam Elena e Lila na infância, respectivamente, e Margherita Mazzucco e Gaia Girace, na adolescência.
Ler costuma ser uma experiência solitária, como pesquisar literatura em nosso país também. Mas Ferrante tem subvertido as regras de tal modo que, em pouco mais de um ano e meio de mestrado, dentro e fora da universidade, quer seja em eventos acadêmicos, quer seja em cursos livres, debates e clubes de leitura, tive a oportunidade de encontrar centenas de pessoas ávidas por conversar sobre a tetralogia, em compartilhar experiências de leitura, profundamente tocadas por suas histórias e personagens. Quem assiste de perto a essa comoção tem uma bonita amostra daquilo que, nas palavras de Terry Eagleton, a literatura pode fazer com as pessoas e é difícil ficar impassível.
FABIANE SECCHES é psicanalista e doutoranda em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo. Escreve sobre literatura, cinema e psicanálise.
(1) Comentário
Sim a literatura faz parte de quem somos , Ferrante faz parte de quem eu sou .