A via crucis do escritor gay

A via crucis  do escritor gay

O autor do romance Trem fantasma, de temática homossexual, fala das dificuldades que um escritor gay enfrenta para conseguir editar suas obras, vencer a resistência dos livreiros e a má-vontade da crítica.

 Carlos Hee

 A pergunta que se faz, quando se analisa uma obra literária de temática homossexual, é: existe, no Brasil, uma literatura gay? A resposta é simples: não, principalmente porque não foram editados tantos livros sobre o assunto para se dizer que há uma vertente em nossa literatura que se possa chamar de homossexual. Mas deveria existir, levando-se em conta o expressivo número da população homossexual brasileira. O país, no entanto, ainda vive décadas de atraso quando o assunto é homossexualismo. O preconceito contra homossexuais, que era escancarado há alguns anos, passou a ser velado, assim como o preconceito racial o é, depois que o movimento e a militância gay começaram a tomar forma no país e porque, hoje, não é socialmente correto ou educado exibir a homofobia publicamente. E todos sabemos que os sentimentos homofóbicos continuam atuantes, na medida em que homossexuais são assassinados única e exclusivamente por suas orientações sexuais.

Se a sociedade ainda vê o homossexual com restrição, sua voz tende a ser abafada. Ou seja, não tem a oportunidade de publicar seus escritos, um livro, com a mesma facilidade que um heterossexual. Principalmente quando se trata de escritores iniciantes, que têm de enfrentar uma via crucis pelas editoras que, invariavelmente, resultam em espera inglória, frustração e um trabalho engavetado. Poucos são os autores que, mesmo sendo homossexuais, se aventuraram pela temática homossexual. Muitos escritores homossexuais preferiram “mudar o sexo” de suas histórias para conseguir uma publicação e até mesmo para não serem tachados de homossexuais, continuando, apesar de se tornarem pessoas públicas, “dentro do armário”.

Podem ser contados nos dedos os escritores homossexuais que produzem literatura homossexual. Caio Fernando de Abreu, João Silvério Trevisan e Herbert Daniel são raros escritores que ousaram e ousam, no caso de Trevisan, a escrever sobre o amor que não se diz o nome. Produziram alguns dos escritos mais talentosos da literatura brasileira. Mas são exceções. Os livros de Caio Fernando Abreu estão sendo reeditados, enquanto os de Herbert Daniel sumiram completamente das livrarias.

Não é lógico que uma população tão representativa como a homossexual, que segundo Luiz Mott, professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e presidente do Grupo Gay da Bahia, representa 10% da população, cerca de 15 milhões de pessoas, não produza boa literatura.

O que se editou no Brasil que pode ser chamado de literatura homossexual tende a ser analisado, basicamente, em quatro aspectos distintos:  sentimental, testemunhal, erótico-pornográfico e os escritos sobre Aids. No primeiro tópico, estão escritores como João Silvério Trevisan, Caio Fernando Abreu, que também escreveu sobre Aids, Alexandre Ribondi, autor de Na companhia dos homens, Nelson Luiz de Carvalho, que escreveu O terceiro travesseiro. As próprias experiências escritas em livro estão em Retrato em branco e preto, de Angelo B. Pereira, e Desclandestinidade, de Pedro Almeida. O representante da literatura erótico-pornográfica é o carioca Luís Capucho, autor de Cinema Orly. A partir dos anos 80, surgiu a literatura da Aids, com Herbert Daniel e Alberto Guzik, com Risco de vida.

A questão da literatura homossexual é de mercado. Enquanto todos, editores, livreiros, escritores, sabem que existe um público em potencial, sedento por uma leitura que retrate seu próprio universo, não se fornece a esse público o que ele deseja. A opção mais fácil é ignorar essa fatia do mercado. E quando isso não acontece e um autor é premiado com a edição de seu livro, não se divulga a existência de um produto destinado a um enorme público gay. Nas poucas e raríssimas vezes em que é feita uma resenha em jornais e/ou revistas de grande circulação, o leitor enfrenta um outro problema: onde encontrar o livro. A cadeia de preconceitos começa com o editor, que não quer saber de escritores iniciantes, e termina no livreiro, que se recusa a comprar e até mesmo exibir livros homossexuais em seu estabelecimento.

Hoje, no entanto, as editoras, percebendo que o mercado homossexual pode ser promissor, iniciam a publicação de obras homossexuais. Existe até mesmo uma editora especializada, a GLS, braço da Summus, que só lança no mercado títulos gays, mas em seu catálogo o número de traduções é bem maior que os originais brasileiros. A Record criou a coleção Contraluz, para essas obras, e a Siciliano tem a Editora Mandarim, que edita alguns títulos gays. Esse comportamento do mercado editorial representa as primeiras tentativas de engatinhar. Ainda é necessário mais mudanças na rede de edição, divulgação e venda.

Quando acabei de escrever meu livro Trem fantasma, passei dois anos à espera de uma resposta, qualquer que fosse ela, sobre a possibilidade de edição. Enviei os originais para algumas editoras, inclusive a Edições GLS, e fiquei esperando dois anos por uma opinião que nunca veio. Só quando mostrei o livro para o editor da Siciliano, Pedro Paulo Sena Madureira, é que foi viável sua publicação pela Editora Mandarim. Antes disso, amarguei meses e meses de expectativa, mesmo sendo jornalista e trabalhando num grande jornal, o que é considerado no meio editorial como uma porta escancarada para novos autores. Mas Trem fantasma é um livro de temática homossexual. Ou seja, não seria lucrativo para uma editora bancar sua publicação, na medida em que os livreiros se recusam a comprar livros homossexuais e, quando o fazem, praticamente os escondem no fundo da livraria. Sem contar com o comportamento da crítica literária, que ignora solenemente livros gays de autores iniciantes, contribuindo para que a obra seja “escondida” dos leitores e, principalmente, dos leitores gays, que nem mesmo ficam sabendo da existência de um livro que poderia ser do interesse deles.

Meu livro, porém, contradiz essa postura do mercado. Como foi editado pela Mandarim, que faz parte da Siciliano, que por sua vez tem uma rede de livrarias no país inteiro, Trem fantasma ficou durante semanas nas mesas de novidades e vendeu sua primeira edição em pouco mais de seis meses, mesmo sem merecer a atenção da grande imprensa paulista e carioca. O que pode ser considerado um resultado de vendas excelente para um livro gay.

As editoras e as livrarias já sabem que existe no mercado um público interessado em literatura gay. Pessoas que desejam ler sobre um universo do qual fazem parte ou sobre o qual querem saber e que fuja da imagem estereotipada e preconceituosa que se faz do homossexual há décadas. E quem pode produzir uma literatura gay digna e real são autores que conhecem essa realidade profundamente e não têm medo de se expor como escritores de livros homossexuais. Eles também têm de se livrar dos preconceitos para que um dia se possa dizer que no Brasil se faz e se consome uma literatura gay de verdade.

(7) Comentários

  1. Compartilho da sua visão, pois enfrento o mesmo problema em relação aos meus escritos. Publico exclusivamente literatura “gay” que aborda todas as vertentes da homossexualidade masculina. Minhas obras, embora também solenemente ignoradas por editoras convencionais, são “consumidas” por centenas de milhares de leitores mundo afora. Há realmente um público ávido por esse tipo de conteúdo, mas o apoio – principalmente para um “joão ninguém” – é nulo. Parabéns pelo teu artigo…

    Moa Sipriano

  2. … apenas para constar um detalhe no comentário acima: todas as minhas obras estão em formato digital e são distribuidas gratuitamente em meu site oficial; tudo feito por mim-eu-mesmo!

  3. Eu tento a muito tempo publicar os meus escirtos… já bati em diversas editoras aqui em Goiânia… numa última a resposta foi a seguinte: “Não há publico com pedagogia para esse tipo de literatura!” Os meus escritos que são poesia estão armazenados nas minhas gavetas até um dia eu ter talvez a sorte de encontrar uma editora com coragem.

  4. Apenas para constar: acredito que os gays sejam também responsáveis por este descaso das editoras por este tipo de literatura, o preconceito ainda e latente no próprio universo homossexual, a partir do momento que mais gays, principalmente figuras publicas começarem a mostrar o poder que este tipo de consumidor, seja o que for, literatura, bens e serviços,tem, veremos cada vez mais autores de qualidade voltados para esta temática.

  5. Tambem sou escritor gay, já passei por tudo isso, e resolvi desistir temporariamente da carreira de escritor. Mas eu discordo dessa visão de que há um publico gay de quinze milhões de pessoas que produziria uma cultura
    gay de literatura e estaria ávido por consumir livros. Essa visão eh equivocada e traiçoeira. O publico gay nao gosta de literatura, porque antes de ser gay eh brasileiro, e brasileiro tem resistência cultural a ler. Um escritor gay nao pode dizer que a discriminação o impede de surfar nas ondas editoriais, pois a onda eh que em si eh muito fraca para impulsionar a prancha do surfista escritor. Eu constatei isso ao distribuir meus livros para amigos gays próximos, e pouco mais de dois ou três leram os livros ate o final. A reação desse publico me parece pouco promissora, mesmo com literatura voltada para ele.

  6. De que maneira entendemos a homossexualidade? Trata-se de um fenômeno natural e harmônico com a divindade, e que necessita somente de esclarecimento e compreensão, ou uma prática abominável, pecaminosa e condenada por Deus? Seria considerada doença, anormalidade, falha da natureza, ou apenas um ato de amor? Essas perguntas que nos dias de hoje ainda ecoam e que geram tanta polêmica, intolerância e incompreensão são tratadas no romance “O Grito – Uma História de Amor e Preconceito”.

    Livro com temática gay, o mais vendido no segmento na Livraria Saraiva

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