A “teologia” construída pela prática
Quando se conhece a história de Bento de Núrsia (480 – 543), parece inevitável o estabelecimento de algumas relações entre a sua vida e a vida de outros autores cristãos contemporâneos seus, como foram, por exemplo, Agostinho de Hipona (354 – 430) e Boécio de Roma (475 – 525).
No que diz respeito a Boécio, é muito provável que houvesse alguma relação de parentesco com Bento, porque ambos descendiam, ao que tudo indica, da mesma família romana Anícia. Quanto a Agostinho, não se pode identificar relações de parentesco, mas sim de semelhança quanto ao itinerário de vida, pois, tanto como o bispo de Hipona, Bento também viveu uma experiência interior que o levou a “retirar-se” do mundo, para, posteriormente, viver uma vida comunitária que lhe permitisse aprofundar o sentido de sua experiência espiritual. É certo que algumas diferenças também distanciam a vida de Agostinho e Bento, pois, enquanto se sabe que aquele não nega ter vivido praticamente tudo o que a vida romana lhe proporcionava em sua busca da felicidade, conta-se, entretanto, que Bento teria fugido de Roma por causa da decadência dos costumes. No entanto, assim como Agostinho quis, nos anos de Cassicíaco, “retirar-se” da vida urbana para viver uma vida filosófica de reflexão e diálogo com seus companheiros, Bento de Núrsia também decidiu tornar-se monge, tomando o hábito por um monge cenobita de Subiaco, e instalou-se secretamente em uma gruta, mantendo contato apenas com o monge que lhe impusera o hábito monástico e que se chamava, segundo consta, Romano.
Bento e a experiência da solidão
Bento viveu, assim, uma situação muito particular, porém não de todo inédita em sua época, pois se tem notícia de numerosas formas de vida intermediárias entre a vida cenobítica e o eremitismo em estado puro[1]. No caso de Bento, todavia, ao que tudo indica, a comunidade de Romano e seu abade ignoravam a existência do eremita vizinho, mas isso não impedia a relação de simbiose com o jovem anacoreta que, sendo descoberto três anos depois, foi eleito abade de um mosteiro localizado nas redondezas. Como se sabe, o tempo vivido por Bento como abade desse primeiro mosteiro não terminou muito bem, mas, quando ele desejava retirar-se novamente à solidão, uma dezena de discípulos juntou-se a ele, dando origem a doze pequenos mosteiros que se mantiveram sob a sua direção. Mais tarde, provavelmente no Monte Cassino, Bento escreve sua Regra para os monges, formalizando procedimentos comuns segundo os quais um aprendizado comunitário devia preceder normalmente a vida solitária. A prova de que a vida solitária continuou atraindo irresistivelmente a Bento parece vir do fato sugerido por seu biógrafo, Gregório Magno, segundo o qual o abade de Monte Cassino não dormia no dormitório comum, mas preferia morar numa torre, à parte, onde ele costumava orar durante a noite.
Particularidades da experiência de Bento
Consideradas essas semelhanças com algumas das personalidades cristãs de sua época, pode-se perguntar também pela diferença e as particularidades de Bento, e uma forma de impostar essa questão consistiria em perguntar por que Bento não desenvolveu uma “atividade teológica” da envergadura, por exemplo, do pensamento de Boécio e Agostinho?
Que ele possuísse uma reflexão articulada sobre Deus é algo indubitável, pois, ao elaborar sua Regra e ao servir-se da Regra do Mestre, Bento permite entrever, além, evidentemente, de um conhecimento acurado da alma humana, também grande conhecimento das Escrituras, da tradição patrística e, principalmente, da vida que circula entre a criatura e Deus quando aquela parte em busca Deste. Não deixa, assim, de ser curioso o fato de Bento não ter produzido nenhum texto “sistemático” sobre a vida divina ou sobre a sua ação na alma, mas o que explica essa curiosidade parece ser o fato de que a Bento não interessava tratar gratuitamente de questões teológicas, e sim entender como o encontro do homem e de Deus é possível. Será sempre nesse contexto que aparecerão suas afirmações sobre a vida divina.
Isso não significa, contudo, um menosprezo pela reflexão sistemática, nem algo como uma distinção (anacrônica) entre o que é especulativo e o que é ascético-místico. Ao contrário, o testemunho de Bento de Núrsia aponta para uma certeza, a de que o conhecimento de Deus não se pode reduzir a uma simples atividade teórica, mas abre o ser humano e o reorienta para a posse da felicidade em Deus. Dessa perspectiva, pode-se dizer que a “teologia” de Bento apóia-se em sua experiência: distingue-se da teologia que surgirá em outros contextos, de interesse mais acadêmico, e consiste em uma “teologia prática”, englobando toda a existência. Isso explicaria o sentido de um dos preceitos-chave da vida monástica, segundo Bento, como é o caso da obediência, que, junto com a virtude do silêncio e da humildade, constitui o tripé de sua ascese. É apenas assumindo a busca de Deus a partir da experiência daqueles que estão um pouco mais à frente neste caminho que o indivíduo pode realizar-se em Deus.
Entende-se também, por conseguinte, que a vida cenobítica preceda a vida solitária. O monge não abre mão de sua vontade, não se aliena de si mesmo, mas aceita receber o dom da fé e o aprendizado da vida monástica. Tal dinâmica permite entender o alerta de Bento para o cuidado com os monges que não foram forjados pelo sofrimento, os quais não “foram provados por nenhuma Regra que se imponha como mestra pela experiência” (Regra I, 6). E é somente dessa perspectiva que se pode entender o início de seu Prólogo, pois, caso contrário, pareceria algo anti-humano proclamar:
Escuta, filho, os preceitos do Mestre, e inclina o ouvido do teu coração; recebe de boa vontade e executa eficazmente o conselho de um bom pai, para que voltes, pelo labor da obediência, àquele de quem te afastaste (…). A ti, pois, se dirige agora a minha palavra, quem quer que sejas que, renunciando às próprias vontades, empunhas as gloriosas e poderosíssimas armas da obediência para militar sob o Cristo Senhor, verdadeiro Rei[2].
A experiência, portanto, revela aqui sua dupla face: trata-se da experiência que se transmite e que se adquire, mas se trata, também, da experiência direta que proporciona o verdadeiro conhecimento de Deus, o qual se deixa encontrar pelos ensinamentos do próprio Espírito Santo, no labor cotidiano do trabalho, da oração, do estudo e da vida fraterna. Dessa perspectiva, o teólogo será, então, aquele que conheceu o sabor de Deus e esforça-se por exprimir essa experiência. Mutatis mutandis, poder-se-ia dizer que Bento se situa nas raízes de uma das posturas que percorrerão o pensamento medieval, pois, ao lado da teologia escolástica, acadêmica, há que se considerar a teologia monástica, da experiência interior. Essa postura vê-se florescer, por exemplo, em Bernardo de Claraval, sobre quem, depois do livro de Etienne Gilson[3], não parece mais pertinente discutir se ele terá ou não sido um verdadeiro “teólogo”.
Notas
[1]. Lacoste, J.-Y. Dictionnaire critique de théologie. Paris: Presses Universitaires de France, 1998 (verbetes “Bernard de Clairvaux” e “Monachisme”).
[2]. São Bento. A Regra de São Bento. 2ª ed. Trad. de João Evangelista Enout. Rio de Janeiro: 1992, p. 13.
[3]. Gilson, E. La théologie mystique de saint Bernard. Paris: Vrin, 1934. Cf., também, Lacoste, J.-Y., op. cit., p. 161.
Juvenal Savian Filho, doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo e estagiário do Centre National de la Recherche Scientifique – Paris. É professor da Universidade São Judas Tadeu e do Centro Universitário São Camilo. Autor dos livros Fé e razão: uma questão atual? (Loyola, 2005), Boécio – Escritos (Martins Fontes, 2005) e O toque do Inefável: apontamentos sobre a experiência religiosa em Edith Stein (Edusc, 2000)