A tenacidade da inquietude de Aníbal Quijano

A tenacidade da inquietude de Aníbal Quijano
Obra da série Geometria Brasileira, da artista Rosana Paulino (Foto: Reprodução/ Isabella Matheus)

 

Aníbal Quijano é um Miles Davis no pensamento de esquerda latino-americano: irrequieto, plural e persistente, participou com fôlego de maratonista por mais de cinquenta anos nos principais debates latino-americanos e mundiais, contribuindo com reflexões sempre pertinentes, frequentemente extraordinárias, para a compreensão do mundo em sua heterogeneidade. Nas últimas décadas, seu trabalho foi especialmente reconhecido pela teorização da “colonialidade”, neologismo necessário para evidenciar que o padrão de poder mundial, além de capitalista, moderno e eurocentrado, é marcado de forma indelével pela lógica colonial, que classificou a população mundial mediante “raças” – processo iniciado com a colonização da América, o espaço/tempo que deu origem a nosso período histórico.

Quijano nasceu em 1930 em Yanama, nos Andes centrais peruanos, onde viveu sua infância e adolescência entre os povos quéchuas, cujas terras vinham sendo usurpadas desde que, em finais do século 19, os capitais ingleses e estadunidenses haviam enriquecido os latifundiários. Com a Crise de 1929, esses capitais se retraem e as lutas camponesas vão lentamente se ampliando e tecendo redes em nível nacional até chegar nos anos 1950-60 e deixar todo o país em crise. No quintal de sua casa, Quijano assistia a reuniões em que seu pai, diretor da escola bilíngue local (quéchua-castelhano), escutava e assessorava os camponeses. A efervescência política contagiava toda a vida provinciana, infundindo em seus habitantes a segurança de que, por obra deles, e não devido aos brancos das cidades, um novo Peru estava em construção. Daí nasceu, com certeza, a confiança de Quijano na capacidade popular latino-americana de enfrentar o poder e reinventar a vida social em toda sua amplidão. 

Em 1947, Quijano se mudou para Lima, onde estudou Letras, História e Direito na Universidad Nacional Mayor de San Marcos, sendo também um dos maiores líderes estudantis contra a ditadura de Manuel Odría (1948-56), o que o levou por períodos prolongados à prisão. Apaixonado por poesia e pela narrativa, aprendeu português, francês, alemão e inglês para ler os clássicos dessas línguas no original. Custou-lhe renunciar aos estudos literários para ser cientista social, mas, se escolheu a sociologia como “sua” disciplina, foi por acreditar que ela permite o estudo de todo o social, incluindo a arte. Esteve sempre muito preocupado com as tendências sociológicas de viés empirista, que se limitam a compreender os fragmentos da vida social, assim como com as tendências que apresentam uma totalidade coerente, onde o todo e suas partes se encaixam. 

Para Quijano, toda existência social é resultado do encontro de diferentes vetores históricos, os quais se articulam de forma irregular mediante conflitos que, mesmo sendo infindáveis, passam a ter uma forma reconhecível, com alguns grupos superando outros na capacidade de determinar os rumos da vida conjunta: é o estabelecimento de um padrão de poder que outorga um caráter de totalidade a determinado espaço social, sem homogeneizar as diferenças histórico-sociais que o compõem. Tal compreensão sociológica permite um pensamento atento tanto às tendências gerais da sociedade e do poder como com as especificidades de cada fenômeno humano.

Em 1964, Quijano concluiu seu doutorado com um trabalho precioso, muito original, sobre a cholificación [No Peru, cholo(a) é a forma coloquial de denominar aqueles(as) andinos(as) que participam, também, do mundo urbanizado. O termo muitas vezes é pejorativo], ou seja, sobre o caráter indefinidamente transicional da sociedade peruana, na qual o andino e o ocidental se imbricam sem pretender uma síntese. Apesar de raras vezes ter relacionado suas pesquisas com a experiência pessoal, fica evidente que esta marcou seus escritos da época – relativos às relações urbano-rurais, às lutas camponesas e à marginalidade urbana. Alguns desses seus primeiros textos foram escritos já no Chile, quando se integrou à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), e foram de grande importância não somente para a guinada marxista na teoria da dependência, mas também para que se compreendesse que a dependência vai além do político-econômico, abarcando todas as dimensões da vida social.

Com o firme propósito de contribuir com as forças que queriam ultrapassar pela esquerda o regime militar nacionalista de Juan Velasco Alvarado, Quijano retornou ao Peru em 1971. De 1972 a 1983, dirigiu a revista Sociedad y Política, publicando análises de longo alcance sobre a realidade peruana e mundial, acreditando na possibilidade de uma iminente revolução socialista global. Com intelectuais e sindicalistas, fundou o Movimento Revolucionário Socialista (MRS), que contribuiu para o período intenso de lutas no país e cujas principais conquistas foram a greve geral de 1979 e o fim de treze anos de governos militares. Durante esse período, e principalmente a partir da participação do MRS na luta da Comunidade Autogestionada de Villa El Salvador – fundada por povos andinos na cidade de Lima – teorizou sobre a “socialização do poder”: a necessidade de que as práticas democráticas sejam constitutivas das lutas sociais. A força comunitária andina, cuja vitalidade extraordinária havia sido constatada décadas antes por intelectuais como José Carlos Mariátegui, passou a ocupar cada vez mais espaço em suas reflexões. 

No entanto, o longo período de lutas sociais no Peru, cujo início ele testemunhara na infância, foi interrompido pela rearticulação neoliberal e pela insuficiente compreensão das esquerdas sobre a mudança histórica. A ditadura de Morales Bermúdez (1975-1980) – que havia derrubado a de Alvarado pela direita e se aliado ao Plano Condor – terminou quando se iniciou o “intercâmbio terrorista” entre o Sendero Luminoso e o Exército, que por sua vez resultaria na ditadura de Alberto Fujimori, prolongada até o ano 2000. Trinta anos de repressão, assassinatos e exílios de líderes políticos e intelectuais tiveram como resultado o achatamento dos horizontes intelectuais e políticos para os peruanos. O país dos dois pensadores políticos de maior influência na América Latina durante a primeira metade do século 20, Mariátegui e Víctor Raúl Haya de la Torre, aderiu ao neoliberalismo mais empobrecedor.

Já no início dos anos 1980, Quijano compreendeu que o período de lutas se encerrava e recolheu-se, mas sem intenção de rendimento: “Foi um período de isolamento terrível, muitos de nós sentimos por mais de uma vez sermos uma minoria de um”. Aceitou que o marxismo clássico tinha suposto uma camisa de força, mas não renegou Marx e menos ainda aceitou a inevitabilidade do capitalismo. Argumentou que a hegemonia do liberalismo na América Latina não demoraria a ser contestada, pois não havia a possibilidade de que os povos a aceitassem de forma prolongada. Procura literatura sobre novas formas de organização social e parece sentir-se especialmente convocado a repensar a América Latina dentro da história mundial. Recorre a Mariátegui, a José María Arguedas, a Gabriel García Márquez e a análises históricas heterogêneas, propondo uma compreensão universal da modernidade: este período histórico revolucionário para a humanidade, no qual nossa espécie se percebe pela primeira vez como construtora de seu próprio futuro, foi certamente centralizado e impulsado pela Europa, mas esteve longe de ser uma produção exclusivamente sua. A modernidade, propõe Quijano, é uma conjunção de saberes e formas de se relacionar com o mundo, produzidas por muitas e heterogêneas vias históricas e sociais, embora sistematizada e dirigida pelo interesse de elites localizadas na Europa.

É assim que ele teoriza o eurocentrismo, não como um mero etnocentrismo que atribuiria uma superioridade da Europa sobre os povos de outros continentes, mas sim como um processo contínuo de usurpação, pelas elites europeias e seus descendentes, das riquezas imateriais e materiais produzidas mundo afora. A sorte da Europa, como tinha dito Aimée Césaire, foi ser um cruzamento de caminhos. 

A partir destas reflexões, Quijano propôs a categoria de “colonialidade do poder” para designar o elemento central sobre o qual se baseava o novo período histórico iniciado com a América: a classificação da população mundial pela ideia de raça. A inédita codificação da diferença entre colonizadores e colonizados mediante uma categoria pretensamente biológica foi o que permitiu a exploração máxima dos “indígenas” (serventes ou tributários) e dos “negros” (escravizados), gerando uma riqueza sem precedentes que permitiria aos países localizados na parte nordeste do Atlântico expandirem suas práticas colonizadoras a todo o globo terrestre, criando-se as condições para que as relações capitalistas determinassem (sem homogeneizar) as práticas econômicas e sociais mundiais.

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No Congreso Latino-Americano e Caribenho de Ciências Sociais, Equador, 2015 (Divulgação)

A ideia de colonialidade é, nesse sentido, oposta ao conceito de pós-colonial, sendo seu objetivo justamente evidenciar que o colonial persistiu para além das colônias e impregnou todo padrão de poder daí em diante. O termo raça só veio a ser impugnado quando deu lugar a um genocídio na Europa. Não faltaram, no entanto, substitutivos: cultura, etnia, civilização são comumente usados para negar a interdependência das experiências sociais, de modo que a Europa seja apresentada, ainda nos dias de hoje, como uma criação endógena, iniciada com a Grécia Antiga. Dessa forma, o resto da humanidade vê ao mesmo tempo como deslegitimadas sua história, sua contribuição no mundo contemporâneo e a dignidade de suas opções autônomas de futuro. Só assim podemos compreender, por exemplo, por que a escravidão continua se expandindo ou por que é possível destruir parcelas gigantescas de territórios indígenas sem que haja uma solidariedade internacional ampla o suficiente para impedi-lo.

Nos últimos anos, Quijano havia deixado de se considerar uma minoria de um. Não negava que as lutas contemporâneas eram ainda incipientes e incertas, mas reconhecia com empolgação que o futuro voltara: percebia uma imaginação política muito saudável, consciente da necessidade de construir, no dia a dia, um mundo inteiramente novo e aberto. Acreditava, em especial, na riqueza do encontro entre as lutas pelo território por parte dos povos indígenas e a compreensão cada vez mais generalizada de que a vida em nosso planeta está sendo ameaçada pelas elites humanas. Quijano faleceu em 31 de maio de 2018, aos 87 anos. Após a crise de 2008 evidenciar os limites do neoliberalismo, sua obra vem sido lida com um interesse ainda maior. Foi velado e enterrado ao som de música andina por dezenas e dezenas de amigos e amigas na Casona de San Marcos, o prédio histórico da universidade em que estudou, ensinou e lutou.

DANILO ASSIS CLÍMACO é doutor em Estudos Latinoamericanos pela Universidad Nacional Autónoma de México e professor de antropologia na Universidad Nacional Mayor de San Marcos 


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