A supremacia da dúvida sistemática

A supremacia da dúvida sistemática

Eduardo Socha

A acepção mais corriqueira do termo “cético” não esconde um certo preconceito: “cético” seria aquele incrédulo radical, privado de opinião sobre qualquer assunto, o descrente inflexível que, não raro, se converte na imagem burlesca do ranzinza duvidando de tudo e de todos. Tal acepção, além de manifestar uma caricatura injusta do cético, tende a ocultar os vestígios de um trajeto filosófico rigoroso que se toma em direção ao ceticismo, compreendido não como atributo, mas como atitude metódica a ser conquistada.

Uma rápida descrição etimológica do termo evitaria as frequentes distorções: sképsis significa, afinal, “investigação”, “exame”, “observação atenta, reflexão”, não havendo, portanto, um caráter negativo originalmente associado à palavra. Ao buscar uma verdade ulterior, o cético inspeciona seus próprios juízos e impressões, observa o conflito e as contradições internas das diferentes interpretações filosóficas sobre a realidade, e em seguida denuncia a falência de todo sistema que pretenda, de maneira dogmática, se apresentar como a própria expressão da verdade.

Mas reduzir o ceticismo a um esquema rígido também não esclarece suas intenções. Isso porque a definição mesma de ceticismo não está livre de impasses, pois de fato não há, na atitude cética, nenhuma referência propositiva a uma “teoria” ou a um “sistema”, a ponto de legitimar o emprego do “-ismo”.

Talvez por conta desta aparente fragilidade conceitual (que traz consigo, por outro lado, um poderoso benefício epistemológico), o termo acabou adquirindo a conotação problemática junto ao senso comum que vê no ceticismo apenas a obstinação radical, quase cega, pela dúvida (principalmente quando relacionada a questões de ordem religiosa). No interior da Filosofia, entretanto, o ceticismo refere-se ao procedimento investigativo de suspensão do juízo diante dos problemas clássicos colocados pela própria Filosofia, da Metafísica à Política; procedimento este que consolidou uma longa e importante tradição cuja reciprocidade de influências foi decisiva para a formação de algumas das figuras centrais do pensamento ocidental, como Santo Agostinho, Montaigne, Descartes, Hume, Kant, Hegel, Diderot, Nietzsche, Wittgenstein. Ou seja, não se trata propriamente de uma escola filosófica monolítica e acabada, mas antes de um espírito de investigação que não recua diante da imposição dogmática de argumentos de autoridade. De acordo com Sexto Empírico, filósofo grego cujo trabalho despertou o interesse moderno pelos céticos antigos, o ceticismo “é a habilidade que opõe as coisas que aparecem e que são pensadas de todos os modos possíveis, com o resultado de que, devido à força igual dos raciocínios opostos, somos levados à suspensão (epoché) das explicações e depois à tranqüilidade (ataraxia)”.  Atualmente, o ceticismo dialoga, por exemplo, com as principais linhas de pesquisa no campo da epistemologia contemporânea e da filosofia da mente, como no caso do externalismo (ver o artigo na pág. 48, “Não saber de si”), ou com a relação entre filosofia, linguagem e experiência comum – diálogo inevitável, mesmo que seja para a eventual contraposição teórica.

Neste dossiê, CULT expõe as características gerais desta atitude e suas contribuições para a Filosofia Antiga e moderna, além de trazer uma homenagem ao introdutor dos estudos sobre Filosofia antiga e ceticismo no Brasil, Oswaldo Porchat.

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